Por que eu faço sempre o que não queria?
Que destino contínuo se passa em mim e na treva?
Que parte de mim que eu desconheço é que me guia?
Maria Bethânia, 1973
Quando a sombra se manifesta, pensamentos e emoções se tornam arredios. Acabamos por desconhecer nossos gestos e palavras proferidas. É como se algo nos tivesse possuído – “não sei onde estava com a cabeça”, “estava fora de mim” e outras frases surgem quando conteúdos sombrios irrompem do inconsciente e nos dominam… Somos surpreendidos numa dinâmica de dominação, autossabotagem e entrega franca aos instintos – sintomas da ausência de reflexão, personificados no tarot com a carta n°. 15, O Diabo.
O conceito de sombra foi defendido pelo psiquiatra suíço C.G. Jung no século passado. Recentemente, o assunto ganhou popularidade graças à literatura de autoconhecimento. Por semanas, O efeito sombra (Ed. Lua de Papel) ficou no topo dos mais vendidos, impulsionado pela popularidade dos autores, especialmente do indiano Deepak Chopra, autor de As sete leis espirituais do sucesso (Ed. Best Seller). O livro permite, a partir de exemplos e testes, reconhecer o papel e a proporção da sombra na vida cotidiana.
Apesar dos exemplos citados no início, não podemos reduzir a sombra às nossas falhas de caráter. Metaforicamente, costumo dizer que ela é como um porão, que abriga tudo aquilo que não deve estar na sala de estar, por não ter espaço ou por não estar de acordo com a decoração que planejamos para agradar às visitas. Além dos defeitos, guardamos ali o que é inconveniente ou incômodo – não necessariamente mau ou inútil. “Se as tendências reprimidas da sombra fossem totalmente más, não haveria qualquer problema. (…) Ela contém qualidades infantis e primitivas que, de algum modo, poderiam vivificar e embelezar a existência humana; mas o homem se choca contra as regras tradicionais”, ressalta Jung, em Psicologia e religião (Ed. Vozes). É, segundo ele, o parceiro no treino de boxe – que expõe falhas e aguça habilidades. Ou seja, é o mal necessário para o nosso desenvolvimento.
Recentemente, uma reportagem exibida no Fantástico ressaltou um ótimo exemplo disso no Centro Educacional São Francisco, em São Sebastião (DF). Aterrorizados com a violência de alunos, a direção criou um serviço de mediação para apaziguar brigas entre estudantes e professores. Os mediadores foram escolhidos a dedo: os alunos mais trabalhosos. O depoimento de uma das jovens envolvidas no processo emociona: a brigona inveterada se tornou uma das mais ativas na atividade. Hoje, sonha ser juíza, promotora ou coisa assim. Descobriu que a violência instintiva era, na verdade, um potencial combativo vivido de forma distorcida – hoje reconhecido como uma habilidade para lutar pela paz.
A luz da consciência é capaz de provocar mudanças como essa. Por isso que o exercício de reconhecimento da sombra tem, como pressuposto, a quebra da intransigência. Basta lembrar que as verdades absolutas são capazes de despertar grandes sombras coletivas, e geram guerras e outras manifestações de desrespeito à individualidade: xenofobia, sexismo, homofobia, fanatismo…
Conhecer e aceitar que temos uma parte obscura de extrema força é a meta do desenvolvimento pessoal. É ter coragem de descer ao porão e ali encontrar ferramentas que, mesmo negligenciadas num determinado momento, são extremamente úteis à vida atual. Quantas e quantas vezes nos enxergamos traindo velhas convicções, repetindo erros que já deveriam ter sido assimilados, falando ou fazendo tudo aquilo que mais condenamos? Estarmos atentos a isso é perceber que estamos prontos para a mudança. A sombra é o berço dos nossos maiores conflitos. Mas é justamente com eles que nos lapidamos, durante a jornada, rumo à evolução.
* A coluna Outras Ondas é publicada aos domingos no blog da Revista do Correio: www.correiobraziliense.com.br