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Outras Ondas* – Reflexões sobre a morte

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A próxima terça-feira será previsível para muitos: um dia de silêncio e orações, com a chuva miúda batendo na janela. Ano após ano, esta é a aura que envolve o dia de Finados, feriado cristão de préstimos aos mortos. Há quem prefira homenageá-los com velas e flores no cemitério. Outros oferecem somente preces e lembranças. Em comum, todos marcam a data com o recolhimento. Talvez pela dificuldade que temos em lidar com o tema: tão questionador à própria existência, tão delator de nossas vulnerabilidades.

O 2 de novembro foi designado como o dia de reverenciá-los no século 13, pela liderança da Igreja Católica, em virtude do Dia de Todos os Santos, comemorado na véspera. Primeiro se celebra aqueles que ascenderam aos céus pelos feitos na Terra e, em seguida, roga-se para que intercedam pelas almas dos pecadores.

Ao menos uma vez por ano, somos obrigados a encarar o poder absoluto da morte. Julgada como cruel, indolente e impiedosa, ela nos surge com sua face obscura e temida. Revela como certos valores não resistem à degradação imposta pelo tempo. Biologicamente, morrer é a simples cessão dos elementos vitais do corpo. Subjetivamente, é a exposição e a avaliação dos legados construídos e posturas adotadas em vida. O desenlace não é difícil. Complicado é encarar o fim e saber que, a partir de então, não há mais como mudar a imagem moldada dia após dia. Ou pior: é o medo de ser esquecido, mesmo diante de tantos esforços. Enxergamos como declínio da vida, e não como uma conclusão. Refletir sobre isso é a ocupação das filosofias e orientações religiosas. Platão já designava o conhecimento filosófico como um ensaio para a morte.

Temos nela a única certeza humana, e de essa consciência nos diferencia dos outros animais. Mesmo assim, não conseguimos superá-los com a racionalidade. Enquanto os bichos vivem o fim de forma natural, resistimos a aceitar essa finitude e tentamos driblá-la com a medicina – ignorando, até mesmo, os limites da dignidade quando submetemos entes mais queridos às massacrantes máquinas mantenedoras da vida. Relutamos a aprender a lidar com o inevitável. A dor de morrer é pequena. Grande é a dor imposta pelo desapego dos que ficam, pela adaptação necessária para se manterem neste mundo. O temor é tamanho que sequer falamos sobre o assunto. Falar em morte é chamar a morte, mau agouro.

Na cultura oriental, o culto corriqueiro aos ancestrais é uma forma equilibrada de lidar com essa dor. Nas casas, é comum encontrar um pequeno altar com fotografias e objetos de antepassados, acompanhados por velas, incensos e frutas. No respeito demonstrado com o ritual, querem evidenciar a crença na perpetuidade do espírito: o ente deixa o corpo, mas não deixa o seio familiar. No México também encontramos o dia de Finados como momento de comemoração. Túmulos são enfeitados com cores em excesso. Comidas se espalham entre sepulturas e fazem fartas as mesas das famílias. Crianças disputam guloseimas em formato de lápides e crânios. Um choque para todos nós, brasileiros, que normalmente fazemos questão de manter uma boa distância dos nossos mortos.

Também vem do México uma curiosa crença. Um dos símbolos do catolicismo popular do país é o culto à Santa Muerte. Lá, em vez de algoz, a morte é tida como uma intercessora, capaz de realizar pedidos, digna de veneração. A imagem é tétrica: uma mescla de esqueleto e Virgem Maria, com uma foice em uma das mãos e uma balança na outra. A ela são oferecidos flores, velas, bebidas alcoólicas e fumo. Apesar de reprimida pela Igreja Católica, a adoração desperta grandes festas e ocupa capelas espalhadas por diferentes cidades.

Por aqui, temos no espiritismo e nas religiões de matriz africana manifestações de um diálogo mais franco com a morte. No primeiro, pela crença da perpetuidade do espírito, comprovada pela comunicação deles com o mundo dos vivos. No linguajar dos espíritas, o “desencarne” não representa o fim, e sim uma interpretação de liberdade do corpo físico. No candomblé, os antepassados são reverenciados pelos adeptos na cerimônia do axexê, que só se completa 21 anos depois da data do óbito. Na religião, a grande senhora pode ser chamada de Iku ou Nanã Buruku – é a grande mãe terra, que recolhe os filhos ao ventre de onde foram gerados.

Entre os cristãos, é preciso lembrar que a missão de Jesus só se completou ao privar-se a vida, como qualquer homem. E foi nesse momento em que ele duvidou e sentiu medo: mas nem a santidade que lhe revestia foi capaz de poupá-lo de seu martírio.

Quando resistimos à ideia da morte não percebemos que ela é fundamental à existência. E é justamente essa a mensagem que ela nos ensina a partir do arcano número 13 do tarot. Quando esta carta nos chega, é sinal de que devemos provocar (ou aceitar) as mudanças propostas pela vida, mesmo que, para isso, seja preciso ceifar certezas vãs – certamente elas não serão mais úteis para nossa trajetória. James Hillman, psicólogo e analista junguiano, enxerga no sono uma contrapartida simbólica ao morrer. A cada fechar de olhos para dormir, vivemos o crepúsculo de acontecimentos e a sensação de solidão de quem vislumbra o desfecho da vida. Também nos deparamos com esse símbolo a cada decisão, a cada reflexão, em todo momento que precisamos abrir mão de uma realidade em para conquistar algo novo. E só assim promovemos a renovação necessária. Morrer é aprender o valor das transformações.

Um papo com Gaiarsa

Há quatro anos, uma entrevista marcou minha trajetória no jornalismo. Apesar de nunca ter sido publicada, a conversa que tive com José Ângelo Gaiarsa me ajudou a abrir os olhos sobre as questões da família, sexualidade e da psique humana. De forma direta e simples, ele tratava de temas polêmicos e questionadores.

Infelizmente, a ideia de publicação da entrevista só surgiu depois da morte do autor, há duas semanas, aos 90 anos. Ele deixa um legado importante para a família brasiliera: o despertar para a necessidade do diálogo e da compreensão. Como uma homenagem, compartilho aqui a sabedoria de Gaiarsa.

José Ângelo Gaiarsa, o “inimigo” da família *

“São 50 anos ouvindo as mazelas humanas.” Assim o médico e psicoterapeuta José Ângelo Gaiarsa, definiu sua trajetória clínica, como orientador e pesquisador das variabilidades psíquicas humanas. No último dia 16, o doutor Gaiarsa, autor de mais de 30 livros, faleceu enquanto dormia aos 90 anos. Deixou como legado uma vasta obra, além de popularizado conhecimentos sobre sexualidade, relacionamentos e família, ao apresentar por 10 anos ininterruptos o quadro Quebra-cabeça, no programa Dia a Dia da TV Bandeirantes. Inúmeras horas de estudo e de consultório deram ao psicoterapeuta a autoridade para fazer afirmações polêmicas. Gaiarsa não negava que fosse “inimigo” da família e do casamento — pelo menos da forma como são interpretados pela sociedade. Em 2006, ele concedeu uma entrevista ao então repórter da Revista João Rafael Torres, em que falou sobre traição e defendeu o fim das ilusões. “Não dá para pensar num casamento feliz para todo o sempre. O segredo da felicidade é perceber quando ela chega na nossa vida, e aproveitá-la até que esse momento se esgote”, ensinou. A entrevista acabou não publicada. Em homenagem ao psicoteraupeuta, recuperamos esse material inédito e ofereceremos ao nosso leitor.

Por que o senhor diz que a família é o lugar mais perigoso que se tem para educar uma criança?
JOSÉ ÂNGELO GAIARSA — Quem diz não sou eu, são as estatísticas. A Unicef apurou que, só em 1998, mais de 80 mil crianças da América do Sul morreram por conta de maus tratos provocados dentro de casa. A educação se torna um escudo para que a família possa maltratar as crianças. E não é só a pancada, também existe o olhar duro, o castigo psicológico, a omissão. A verdade é que não existe escola de formação de pais, e a missão de educar uma criança é uma das tarefas mais difíceis do mundo. Para 90% dos pais, educar é repetir tudo o que aprendeu dos próprios pais — mesmo que isso implique numa educação retrógrada e conservadora. Não é à toa que as neuroses nascem sempre das relações familiares.

As relações familiares têm mudado nos últimos anos?
GAIARSA — Nasci em 1920 e recordo de muitas coisas da minha infância e adolescência. Naquela época, os pais eram mais autoritários, tínhamos menos amigos, a religião tinha um grande peso. A televisão, o rádio e atualmente a internet retiraram a família desse núcleo fechado. O cenário é outro, mas o discurso é o mesmo. Há uma grande dissociação entre o que se elogia nos outros e o que se faz na prática.

O acesso à informação não deveria favorecer uma geração mais equilibrada?
GAIARSA — As crianças que nascem hoje são muito diferentes, na medida em que tem acesso a muita informação. Hoje todos têm um conhecimento mínimo sobre qualquer assunto. Isso cria um distanciamento e uma dificuldade de compreensão entre pais e filhos como nunca havia acontecido em toda a história. Fica difícil para os mais velhos acompanhar a rapidez do raciocínio dos mais novos. Para muita gente, informação demais é tóxica. Em vez de proteger, a informação intensifica o conflito, quando a comparamos com os valores transmitidos dentro de casa. Nesse momento, a vontade de se fazer “normal” diante das pessoas se transforma noutra neurose. A preocupação com isso é tamanha que a família se transforma numa oficina de produção artesanal de “normopatas”, praticamente um minimanicômio. Como consequência, crescem os dois maiores negócios do mundo: as armas e as drogas, incluindo aí os psicotrópicos e o álcool. As pessoas buscam qualquer forma de sair desse mundo. É muito difícil aguentar a realidade.

Até que ponto a dificuldade de comunicação entre pais e filhos se estende ao sexo, aos relacionamentos afetivos?
GAIARSA — Sexo continua assunto proibido. Os pais negligenciam que o bebê já tem as primeiras manifestações sexuais no sétimo mês de vida intrauterina. Logo que nascem, as crianças são educadas de uma forma que as faz negar a expressão do próprio corpo. Passa a repetir apenas gestos estereotipados, dentro do que é convencional à sociedade. Além disso, os próprios pais não se permitem demonstrar o afetivo e o erótico entre si, diante dos filhos. Não há evidências de que se gostam, como beijos e abraços. Educação sexual é isso. Não é só dar informações sobre sexo.

Em seus livros, o senhor faz severas críticas à forma como as mães se portam diante de suas crianças. Afinal, até que ponto elas são culpadas pelas frustrações futuras dos filhos?
GAIARSA — Novamente, o problema está entre a cisão entre o discurso e a prática. As mães mudaram muito. Estão mais independentes, não exercem mais tanta influência sobre os filhos e estão mais tempo for a de casa. Graças a Deus. Mesmo assim, ainda afirmo que, juntas, elas constituem o maior partido conservador do mundo. Ensinam o autoritarismo e as chamadas grandes virtudes da família, que são uma balela na sociedade. No mundo, ninguém consegue ser educado, honesto e dizer sempre a verdade. E o que é ainda mais grave e mais grotesco: elas ainda fazem questão de se manterem sagradas diante dos filhos, como se não tivessem sexo. Com isso, os filhos aprendem que só pode existir amor da cintura para cima.

Que complicações isso pode trazer para a vida de ambos?
GAIARSA — A relação entre mães e filhos começa errada logo no nascimento. Geralmente, são separados de uma forma abrupta justamente num momento importante de identificação, dos primeiros contatos, do primeiro cheiro, do primeiro olhar. Quando saem da maternidade, vem o segundo erro: pensar que devem ficar eternamente juntos. A crença de pensar que mãe é para sempre também é um pecado. Em todas as espécies, as mães cuidam dos filhos enquanto eles precisam de cuidados. No caso dos homens, não. Ninguém está preparado para esta separação. Ao contrário, é cada vez mais comum encontrar marmanjos vivendo dentro da casa da mãe santa e eterna, com tudo à mão. E, o que é pior, ela adora isso. O terceiro tabu está em querer amar todos os filhos da mesma forma, como se eles não tivessem individualidades que os tornassem diferentes.

A dificuldade dos homens de se ligarem em relacionamentos estáveis está relacionado a esse comportamento?
GAIARSA — Na fase em que passa de menino para homem, naquele período onde o sexo é o que domina a cabeça, a educação sexual é feita pelos próprios companheiros. Eles compartilham suas “experiências” de uma forma rústica, quase animalesca. Competem entre si, ao mesmo tempo que mantêm grande cumplicidade. Para se manterem integrados, deixam de agir com naturalidade. Muitas vezes, essa experiência se perpetua nos outros relacionamentos. Por outro lado, vem aquela idéia de almas gêmeas, que é predominantemente feminino. O homem patina então pelo meio termo. Nas datas especiais, manda um buquê de flores. No auge do romantismo, escreve uma música. Isso é mais uma atitude do “normopata”, por não ter espontaneidade. As pessoas se preocupam no tal do casamento para sempre, até que a morte separe. Mas não estão preocupadas em nutrir o amor. Precisam aprender que não existe felicidade plena. O segredo é perceber quando ela chega na nossa vida, e aproveitá-la até que esse momento se esgote.

As palavras do senhor desanimam qualquer pessoa que pense em casamento…
GAIARSA — (Risos) E você, meu filho, ainda acredita em casamento? Os ditos casamentos se tornaram verdadeiras tragédias cômicas. A realidade de consultório mostra que dois terços dos sofrimentos psicológicos vêm de relações familiares. Dois terços das moléstias psicossomáticas, incluindo aí o uso de tóxicos e a depressão, vem de casamentos vazios. São pessoas que chegaram a uma certa idade e desistiram de brigar pela felicidade. Se acomodam e esperam a morte. A separação é um dos maiores dramas do ser humano, mesmo quando o casamento está lotado de problemas. O indivíduo fica encurralado: se fica dentro de casa, é infeliz; se sai de casa, se sente culpado e também é infeliz.. Eu, que já casei cinco vezes, posso dar meu testemunho. A experiência terapêutica não amenizou minha dificuldade ao me separar pela última vez. A maior parte dos casamentos dura o dobro do que deveria e só se estende pela covardia.

* A entrevista foi publicada em 28/10/2010 no blog da Revista do Correio: www.correiobraziliense.com.br

Outras Ondas* – Os sete corpos e psique

Foto: Zuleika de Souza/CB/DApress

A crença da divisão do homem em corpos sutis é tão antiga quanto a cultura: a partir do momento em que desenvolve uma crença espiritual, o indivíduo pressupõe a existência de corpos que transcendam o físico, palpável e finito. Entre as mais difundidas, está presente a teoria dos sete corpos, ou divisão setenária do homem. Ela é compartilhada por diferentes escolas oculistas e espiritualistas, como a Teosofia. A ideia de escrever sobre o tema partiu de uma conversa com a psicoterapeuta junguiana Carmelita Guimarães, amiga e inspiradora.

Na divisão setenária, a constituição do homem integral está dividida entre corpos inferiores e superiores. Os inferiores se dividem em:

1. Físico: exclusivamente material, é a sede das percepções sensoriais e veículo para a vida na Terra. É o mais denso de todos e também o menos evoluído. Nutre-se com as percepções vindas dos cincos sentidos, é primário e instintivo.

2. Etérico ou duplo: engloba a energia vital, o “sopro da vida” judaico-cristão ou chi dos chineses. Tem relação direta com o funcionamento e a manutenção do corpo físico.

3. Astral ou emocional: corresponde aos afetos, construtivos ou destrutivos, capazes de mobilizar e impulsionar as atitudes do homem. Potencializa as vivências, pois lhes dá valor (bom, ruim, feio, bonito, agradável, desagradável etc.). Tem uma relação forte com os desejos e a gratificação.

4. Mental inferior: é a sede dos pensamentos e raciocínios corriqueiros, que “ocupam” a mente. Também processa e revive as memórias e lembranças. É também a ponte entre os corpos inferiores e superiores.

Os corpos superiores correspondem à centelha divina que reside em cada um, e também à forma como conseguimos percebê-la e acessá-la. Eles são:

5. Mental superior ou filosófico: é o veículo da alma, de onde brotam as inspirações que nos favorecem a busca de sentido para ações. Se conecta com os corpos inferiores pela intuição e pela criatividade. Está sempre compromissado com a verdade, o bem e o belo. Reúne, assim, ética e estética.

6. Búdico ou crístico: é aquele que une o divino e superior ao humano e terreno. Foi atingido pelos grandes avatares ou iluminados, como Jesus e Krishna. Sua presença é capaz de transformar não só a existência do próprio indivíduo, mas também de emanar a luz da consciência para os demais seres em seu redor. Consagra os grandes mestres.

7. Átmico ou monádico: é a vivência presencial da divindade, a essência do que se é, a perfeição, o ponto de comunicação com o Todo, eterno, sublime, infinito e circular. Dá ao homem o sentido de integralidade com o si-mesmo e com o universo.

A ampliação da consciência é o canal para que a percepção das vivências ascenda na direção dos corpos superiores. A ascensão ao sétimo corpo um exercício utópico para a maioria das pessoas. O problema é que, muitas vezes, não nos permitimos sequer à percepção dos sinais desse divino que nos habita – que dirá senti-lo plenamente. Atrelamos unicamente as vivências aos corpos inferiores: agimos instintivamente para gratificar o corpo, nos guiamos por emoções que nos desnorteiam, fermentamos memórias e pensamentos vãos.

Mal nos damos conta, também, de quão correlatos são esses corpos. Para perceber isso basta evocar uma memória negativa. No mesmo instante, a mente viaja em diálogos imaginários (e intermináveis), as emoções se atualizam como se estivéssemos revivendo aquele momento desagradável e o corpo paga com sintomas referentes ao sentimento que se desperta: o coração dispara, a respiração torna-se ofegante, a voz se crispa com a ira… Com um quê de inconsciência, revivemos inutilmente tudo aquilo que mais queríamos superar. Como diria Carmelita, os papéis se invertem: a besta (o instintivo, primitivo) monta sobre o cavaleiro (o sublime, o superior).

Obviamente, precisamos dos planos físico, emocional e mental para referenciar nossas experiências cotidianas. A junção desses planos corresponde nitidamente ao ego. Na visão junguiana, o complexo da percepção do EU, o centro da consciência, a identidade pessoal. Mas é interessante como, intuitivamente, nos referimos aos atributos egóicos como algo que possuímos, e não como o próprio eu: “o meu corpo”, “a minha ideia”, “a minha raiva”… Quem seria o “dono” disso tudo, então?

Respondemos esta pergunta quando damos voz aos corpos superiores, a partir da inspiração. Para que isso flua, é preciso estar atentos aos condicionamentos advindos dos corpos inferiores – silenciar o corpo, o coração e a mente para que o espírito possa se manifestar. A melhor forma de fazê-lo é a partir da atenção plena, atributo defendido por todos aqueles que chegaram à iluminação. Basta lembrar dos ideais do não-ser budista e do cristão “orai e vigiai”: em ambos, há uma busca por manter-se pleno diante da realidade, na medida em que se distancia da ilusão. Entregar-se a esta percepção é reconhecer que as evocações primárias aos corpos inferiores podem ser compensatórias inicialmente, mas não oferecem um sentido à existência. E que é essa busca de sentido é o nosso maior propósito.

* A coluna Outras Ondas é publicada aos domingos no blog da Revista do Correio: www.correiobraziliense.com.br

Outras Ondas* – Lembro, mas não aconteceu

“A diferença entre as falsas memórias e as verdadeiras é a mesma das joias: são sempre as falsas que parecem ser as mais reais, as mais brilhantes”
Salvador Dalí.


Você jura que deixou o talão de cheques em uma determinada gaveta. É capaz de lembrar os detalhes: usou uma folha para pagar o encanador e deixou ao lado do cartão de visita da amiga decoradora. Mas você revira a gaveta, a estante, e nada. Dias depois, depois inclusive de você ter pedido um novo talão ao banco, os cheques aparecem dentro de uma bolsa há muito não usada – justo aquela que você levou para a festa de aniversário da tal amiga.

E se aquela lembrança que lhe parece inquestionável fosse, na verdade, fruto da imaginação? Meio assustador, não? O fenômeno das falsas memórias (FM) é muito mais corriqueiro do que se pode imaginar e atinge a todos, em maior ou menor proporção. Na maioria dos casos, não está relacionada a distúrbios neuropsíquicos.

O estudo das falsas memórias é objeto de investigação mundo afora, principalmente motivado pela psicologia forense: nesses casos, qualquer distorção de lembrança pode levar à condenação de inocentes. Mas não é de hoje que ela ocupa os cientistas. No início do século passado, Freud chegou à conclusão de que nem tudo que é lembrado realmente aconteceu. Na observação dos relatos dos pacientes, percebeu que a memória de eventos traumáticos narrados durante as sessões de análise podiam ser, na verdade, frutos de fantasias infantis ou de desejos primitivos. Tal conclusão se tornou um dos pilares da psicanálise. O tema deu origem ao livro Falsas memórias (Ed. Artmed), um compilado de textos de pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, organizados pela psicóloga Lilian M. Stein.

Muitas vezes, a FM é provocada por uma fragmentação no que foi vivido: a realidade perde espaço para a interpretação que temos do tema. Surge espontaneamente, a partir de associações próprias do indivíduo. Em geral, funciona como no exercício de completar as lacunas: para a compreensão de um determinado fato, as “brechas” que faltam são completadas inconscientemente com informações não-verdadeiras. Em algumas situações, porém, esses meros “detalhes” são capazes de alterar o conteúdo com grande intensidade, sem que nos demos conta disso. No processamento da memória, muitas vezes a psique prioriza a essência (sentido) do que foi vivido e não a história literal (fatos). Também é comum a troca de fontes de informação, como no exemplo citado na abertura: o talão de cheques foi tão associado à amiga decoradora a ponto de “criarmos” a FM de ter visto o cartão de visitas dela na mesma gaveta – ignoramos que o elo entre eles era a bolsa.

As FMs também podem ser sugeridas ou “plantadas” na psique por agentes externos. Assim como no dito popular, uma mentira bem contada pode se tornar uma verdade – acreditamos a ponto de ter a certeza de que aquilo realmente aconteceu. “Detalhes” narrados por outros são acrescentados naturalmente para enriquecer a história vivida. Ou, em alguns casos, nos apoderamos daquilo que sequer foi vivido. Não é simplesmente uma mentira: temos a nítida certeza de que aquela é a realidade.

Apesar de não se debruçar sobre a questão das FM, Jung fala da memória como um dos componentes indispensáveis ao funcionamento psíquico. Nem sempre é voluntária e controlável como desejamos: “…normalmente ela [a memória] é cheia de truques, assemelha-se a um cavalo ruim que não se deixa guiar”. Para ele, esse caráter arredio está relacionado à carga afetiva que cada
vivência provoca. Assim ela pode se tornar viva e constantemente atualizada na consciência a partir das lembranças. Pode também migrar para o inconsciente como conteúdos descartados, por serem banais, ou reprimidos, por serem conflituosos demais para serem lembrados.

Obviamente, é preciso observar a freqüência e a intensidade das FMs no cotidiano. Apesar de serem comuns a todos, o nível de comprometimento que elas oferecem às atividades corriqueiras e o mal estar que provocam merecem
atenção: elas podem surgir como indícios de algum distúrbio psíquicos ou neurológicos.

E você, tem certeza de tudo que se lembra?

* A coluna Outras Ondas é publicada aos domingos no blog da Revista do Correio: www.correiobraziliense.com.br

Outras Ondas* – Crianças divinas

O corpo é pequenino para uma alma tão grande. Os comportamentos refinados, as opiniões contundentes e maduras, e o olhar curioso e inquieto chegam a destoar da aparência infantil. Tudo forte demais, intenso demais – difícil até para a compreensão dos pais e demais adultos. Essa é a realidade de um número cada vez maior de meninos e meninas espalhados por aí. São as chamadas crianças índigo – gente miúda que parece estar à frente de seu tempo.

O termo foi criado em meados da década de 80 pela sensitiva e parapsicóloga americana Nancy Ann Tappe, e ganhou popularidade nos últimos anos graças à adesão do conceito por doutrinadores espiritualistas. Nancy escolheu o índigo para denominá-los pois, segundo ela, essa é a cor que emana da aura dos meninos. Uma cor até então rara, mas que vem se tornando bastante popular. Ela sugere que será deles o futuro: a nova geração, encarregada pela manutenção do planeta, maltratado pela ação do homem.

Tais crianças seriam, na verdade, a encarnação de espíritos evoluídos, vindos de outras dimensões com esse propósito salvador. Chegam aos milhões todos os anos: ela acredita que 95% dos nascidos nos últimos 20 anos têm o índigo refletido na aura. Alguns foram pioneiros e já estariam em ação: o presidente americano Barack Obama seria o mais célebre dos índigos reconhecidos por Nancy. Eles também seriam responsáveis pela criação das redes sociais que tanto marcam esse início de século 21.

O legado dos índigo está sempre associado ao desenvolvimento de grandes propósitos. São grandes facilitadores de processos, exploram tudo com criatividade e simplicidade, trazem no discurso uma franqueza desconcertante. Podem ser classificados como hiperativos ou rebeldes. A intensidade os define, o que faz com que nem sempre sejam recebidos com facilidade pelos demais. Podem apresentar dificuldades comportamentais, quando não sentem nos demais a afinidade com seus propósitos. Muitas vezes, preferem brincar sozinhos ou com adultos – sem muita paciência com os meninos da mesma idade. Além disso, questionam dogmas e regras que não lhe parecem naturais – são reis daquelas perguntinhas capazes de desconstruir a imagem de superioridade forjada pelos adultos em eventos sociais. São sui generis.

O respeito à individualidade, que deveria ser um pressuposto a todos, torna-se indispensável para a compreensão dos índigo. É consenso entre os que creem na existência dessa geração que é preciso dar atenção especial às demandas apresentadas por essas crianças. Ouvi-las para entender o que se passa em seu íntimo. O médium Divaldo Pereira Franco, autor de A Nova Geração: A visão Espírita sobre as crianças índigo e cristal (Ed. Leal) salienta que as aptidões naturais das crianças índigo precisam ter o amparo dos adultos, e não a repressão, para que elas se tornem indivíduos propensos a contribuir com a humanidade.

Independentemente de qualquer classificação espiritual, é notório que as crianças de hoje são bem diferentes das gerações que as antecederam. Acompanham, simplesmente, um mundo acelerado por tantas transformações, construídas e ansiadas por nós próprios. A adequação para esse novo padrão de comportamento exige esforço: da escola, da sociedade e principalmente dos pais. Cabe a todos nós buscar formas de atualização (no discurso e na prática) para lidar com aqueles que nos sucederão. Sem esquecer que, antes de tudo, é preciso compreendê-los.

* A coluna Outras Ondas é publicada aos domingos no blog da Revista do Correio: www.correiobraziliense.com.br

nivas gallo