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Outras Ondas* – Os divinos curadores feridos

Esse é um capítulo importante nesta série mensal sobre orixás. Nele, falamos de três orixás de extrema importância no panteão afrobrasileiro: Omolu ou Obaluaiyê, Ossain e Iroco. Todos são divindades associadas ao poder da cura dos males do corpo, da alma e do tempo. Neles, se revela a irônica impotência dos curadores: enquanto fornecem o alento às mazelas dos demais, sofrem com as dores das próprias feridas – a rejeição, a solidão e a imobilidade.

OMOLU

Omolu-Obaluaiê é um dos orixás mais cultuados no Brasil, principalmente pela associação que tem como o médico dos pobres. Ele é o dono da terra e tem forte relação com o fogo. Torna-se assim o regente das moléstias epidêmicas e infectocontagiosas, que, como lavas de um vulcão, levam a febre ao corpo. Pode propagá-las ou curá-las, a depender do humor e do senso de justiça. Ganhou essa atribuição a partir de um mito que remete à sua infância: ele teria sido contaminado pela varíola ainda enquanto bebê. A imagem terrível do filho doente teria sido forte demais para Nanã, sua mãe mítica, que decidiu abandoná-lo no mangue. Obaluaiê foi resgatado pelo instinto maternal de Yemanjá, que o acolheu e tratou. Para ocultar as deformidades provocadas pela doença, Omolu recebeu de Ogun o azê, uma espécie de capuz feito com longos fios de palha que encobrem rosto e corpo. A indumentária é usada pelos iniciados quando estão manifestados com a energia do orixá.

Apesar de Yemanjá ter promovido o reencontro de Omolu com Nanã, com quem voltou a morar, o ressentimento nunca deixou de ser uma marca no coração dele. Omolu é, ao mesmo tempo, carente e resistente a esse sentimento: não admite a pena dos demais e se desdobra em forças para não depender de ninguém – mesmo que, intimamente, sinta que mereça mais atenção. No entanto, o rancor se dissolve quando alguém tenta compreendê-lo. Torna-se um amigo extremamente fiel, capaz de sacrificar a própria felicidade para trabalhar em prol do outro. Essa aliança é celebrada na festa do Olubajé, a grande ceia de Omolu, quando ele recebe os demais orixás para um banquete – à exceção de Xangô, seu grande rival. Obaluaiyê carrega em si as dores da terra e também propicia a manutenção da vida. Ele é o pó do qual fomos feitos e para onde retornaremos.

OSSAIN

É o orixá que tem a primazia sobre as folhas, elemento indispensável para estabelecer a saúde e também para os rituais no candomblé. Ele é o grande feiticeiro, que vive entocado nas matas, naturalmente o seu grande domínio. Traz o encantamento em sua natureza selvagem. É astuto, inteligente, mas prefere o isolamento e a solidão: custa a surgir e não oferece garantias de retorno. Vestido de folhas, camufla-se com facilidade e também consegue imitar a voz dos pássaros para garantir o destino incerto.

O mistério e a liberdade são atributos genuínos em Ossain. Conta-se que um pássaro pousa sobre a cabeça dele para contar as novidades do mundo – por mais ausente que possa parecer, consegue se manter atualizado de tudo. Ele é caprichoso e mantém o domínio do que é seu. Diz o mito que, chateados com o egoísmo de Ossain, que guardava todas as folhas para si, os orixás “encomendaram” a Iansã uma grande ventania para que as espalhassem na floresta. Assim, cada um catou as folhas que pôde. Mas elas simplesmente não tinham poder quando não usadas com os encantamentos recitados por Ossain: assim, ele manteve a relação de dependência dos demais. Ossain nos ensina sobre o controle e o equilíbrio, imprescindíveis para conquistar grandes objetivos. É um extremo devoto da natureza e nos inspira a respeitá-la.

IROCO
Ao chegar em uma casa tradicional de candomblé, de longe poderá avistar uma suntuosa árvore, com copa opulenta e laços brancos enfeitando o tronco. Ali está Iroco, o deus-árvore, cultuado como o pilar que existe entre o céu e a terra. O orixá é firme como os arbustos que o representam: seguro, tradicional, determinado. Recentemente, há uma tentativa de resgatar a imagem de Iroco no Brasil, a partir da iniciação de novos seguidores a este orixá – talvez um sinal da necessidade de resgate das tradições africanas, tão corrompidas pela vaidade e pelo dito progresso.

Em algumas vertentes do candomblé, Iroco é associado ao tempo. Nos ensina, dessa forma, a entender o valor das horas, dos dias e dos anos – medidas necessárias para nos atrelarmos à realidade. Mesmo não sendo literalmente perene, ele é aquele que acompanha gerações. É a segurança presente na ancestralidade, tido por muitos como a casa dos antepassados. Nos ensina o grande valor da resistência às variações. Aquilo que é o seu grande valor também pode se transformar numa condenação: conduzir regras a ferro e fogo, ter um quê de intransigência à plasticidade das situações e sofrer com adaptações fazem parte da sina de Iroco. No entanto, observá-lo nos propicia a sabedoria para entender que raízes profundas são a segurança de um grande desenvolvimento.

Outras Ondas* – O caderno de sonhos


Sonhos. O tema é tão encantador que ocupa a humanidade há milênios: buscamos formas de entender o porquê de sonharmos todas as noites, de onde vêm as imagens e, principalmente, métodos para decifrar as mensagens embutidas em cada experiência onírica. Há um bom tempo, a ciência comprovou a importância psicofisiológica dos sonhos para o indivíduo: privados dele, somos levados literalmente à loucura. Desenvolvemos a capacidade de sonhar na vida intrauterina. Trabalhar com sonhos é uma das experiências mais gratificantes no ofício de analista. Acho, inclusive, que negligenciei a importância dos sonhos entre quem acompanha Outras Ondas: deveria ter falado sobre eles há mais tempo e, para compensar, prometo fazer novos textos sobre o assunto.

Por muito tempo, os sonhos eram vistos de uma forma dicotômica: enquanto alguns não lhe conferiam nenhuma importância, outros os valorizavam com tamanha ênfase, a ponto de beirar o fanatismo. Acreditavam que as imagens surgidas durante o sono eram um instrumento de comunicação com o invisível, um canal para a expressão de deuses, demônios, gênios e espíritos.

Os sonhos ganharam outra concepção a partir da psicanálise. Ao publicar A interpretação dos sonhos, no primeiro ano do século 20, Sigmund Freud promoveu uma importante mudança de paradigmas: o sonho aparece como uma expressão direta do inconsciente – visto por ele como a sede das repressões, recalques e experiências que não permaneceram sob o domínio da consciência. Em Freud, o sonho surge como um elemento essencialmente compensatório às frustrações da vida em vigília.

Apesar de concordar em parte com essa premissa, o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung acreditava que a função do sonho não se encerrava aí. A partir da observação dos sonhos de pacientes, ele percebeu que as vivências oníricas também podiam oferecer esclarecimentos mais claros sobre dinamismos psíquicos, além de oferecer possibilidades de encaminhamento ao tratamento terapêutico. Ao sonho também seria inerente a capacidade de indicar caminhos futuros – em alguns casos, de uma forma tão contundente e clara a pontos de enxergá-los como sonhos premonitórios.

Diferentemente do que muitos pensam, a função do analista não é de interpretar sonhos, como faziam os profetas bíblicos. Jung ensina que a melhor forma de trabalhar com o conteúdo presente nas imagens oníricas é a ampliação. No processo, tenta-se encontrar o máximo possível de associações que podem se unir ao que vem espontaneamente do inconsciente. Primeiro, a partir das associações pessoais do paciente, seguida por aquilo que é inerente à cultura vigente e, por fim, aos conteúdos arquetípicos – representações universais de valores e personagens comuns à humanidade, como a imagem da mãe, da guerra e de Deus. É a partir dessas associações que percebemos um quê mágico presente nos sonhos: eles traduzem claramente o que não conseguimos elaborar enquanto estamos despertos.

É interessante ver como até mesmo um fragmento de sonho pode ser capaz de revelar maravilhas do nosso mundo interior. Lembro por exemplo do sonho de uma cliente que, certa vez, sonhou que estava pintando os cabelos. Uma imagem tão corriqueira que ela, por pouco, não trouxe para a análise por julgá-la banal. A partir do exercício de ampliação, as associações foram dando um sentido bem maior ao sonho – capaz de fazê-lo ocupar, com destaque, toda uma sessão de análise.

Jung definiu os sonhos como “um autorretrato espontâneo, em forma simbólica, da real situação do inconsciente”. Desta forma, todo sonho é completo e correto: ele pode nos trazer o necessário para a compreensão e a avaliação do estado psíquico vigente. O grande desafio está em observar o simbolismo presente nas imagens sem tanta avidez de interpretação. É perceber, antes de tudo, que todos os elementos e personagens presentes no sonho correspondem a elementos que fazem parte do indivíduo, sem exceção.

Ao sonharmos com a vizinha fofoqueira, por exemplo, precisamos estar atentos para a projeção sombria que aí se revela: até que pontos não reprimimos em nós mesmos um quê fofoqueiro? Da mesma forma, quando sonhamos que ficamos curados ao beber água em um copo idêntico ao que víamos na casa dos avós, durante a infância, devemos ficar atentos sobre os valores familiares esquecidos não fazem falta para a solução dos problemas atuais.

A melhor forma de ganhar com os sonhos é dar atenção a eles. Uma boa dica é comprar um caderno e registrar todos que surjam a partir daí. Escreva sempre no tempo presente, como quem narra uma história, e não economize nos detalhes. Ao entender que estamos dando importância ao que produz durante o sono, o inconsciente tende a nos recompensar com símbolos mais claros e fáceis de serem decodificados – alguns parecem até ter legenda. Exercite e, tempos depois, releia os registros. Permita-se sonhar e, principalmente, aprenda com seus sonhos.

Outras Ondas* – Banidos do paraíso

“E lhe deu esta ordem: de toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque no dia em que delas comeres, certamente morrerás. (…) vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe o fruto e comeu, e deu também ao marido, e ele comeu. Abriram-se, então, os olhos de ambos; e, percebendo que estavam nus, coseram folhas de figueira, e fizeram cintas para si”.

O mito de Adão e Eva, protagonistas da criação na cultura judaico-cristã, vai além de uma explicação religiosa sobre o surgimento da humanidade. A linguagem simbólica presente nas escrituras bíblicas também nos apontam para o sacrifício inevitável à ampliação da consciência.

O fruto do conhecimento é descrito, antes de tudo, como algo bastante perigoso: ao simplesmente tocá-lo, o homem ganha a capacidade do discernimento entre o bem e o mal das coisas – e, obviamente, de si próprio. Ganhamos, com ele, a chance de discernir e julgar. Passamos a atribuir valores ao que nos cerca.
Tais atributos são despertados no homem graças à influência da serpente. No texto bíblico, ela não é apresentada como o demônio, mas sim como um fruto da criação divina – “o mais sagaz dos animais selvagens”. Ela oferece à mulher a tentadora chance de aproximar-se a Deus. Ele reinava como único detentor do poder do entendimento. Comendo do fruto, podemos entendê-lo melhor, pois sentimos a força de Sua plenitude.

Mas, antes de qualquer maravilha, a primeira percepção do homem ao comer do fruto do conhecimento é perceber a própria vulnerabilidade, expressa pela nudez. Estar despido nos remete à inocência e à naturalidade. Mas, desde Adão e Eva, interpretamos tamanha transparência como fragilidade. Ganhamos roupas, que nos protegem do julgamento alheio e promove a interação entre os iguais sem a exposição crua da intimidade.

Jung chamou essas “roupas” de personas – termo vindo do latim, usado para designar as máscaras usadas por atores na antiguidade. As máscaras são tão múltiplas quanto são os nossos campos de interação com os demais: a profissional, a amiga, a mãe, a religiosa, a ativista, a vizinha… Mudam constantemente a partir do que a situação exige. Deus presenteia o casal primogênito com peles de animais que deverão ser usadas a partir de então. Uma imagem bastante significativa: ao “nos vestirmos de animais”, associamos simbolicamente atributos inerentes aos mesmos. Tal assimilação é a base de diversas culturas religiosas primitivas. Entre elas, a dos xamãs. O exercício da consciência passa também pelo reconhecimento de cada uma dessas personas: o quanto são parecidas entre si, as dificuldades que temos em trocá-las e a confusão entre o que representam e o que realmente somos.

A morte presente na advertência de Deus sobre a árvore do conhecimento está relacionada ao fim da inocência. Ela nos limita, mas também protege. Quando somos tocados pela consciência, somos chamados a agir. Os olhos abertos não veem somente a própria nudez, mas avaliamos o cenário que nos envolve. Com tamanha percepção, fica impossível continuar vivendo no Éden. Banidos, Adão e Eva passam a observar a completude do paraíso como um desejo inalcançável, protegido por anjos que impunham espadas. Instigante, mas perigoso – assim como era a Árvore da Vida.

A consciência também impõe sobre os dois grandes sacrifícios. Para Adão, a necessidade do trabalho (“do suor do rosto comerás o teu pão”) e a consciência da morte (“até que tornes à terra, pois dela foste formado: porque tu és pó e ao pó tornarás”). Eva foi condenada a sofrer com os sofrimentos da gravidez e a dor do parto, além da submissão ao marido.

A serpente, pivô do rompimento entre Deus e homens, também recebeu punições severas. Ganhou o título de o mais vil dos animais, maldito entre todos os demais, e de eterna inimiga da mulher. Uma imagem intrigante: aquela que seduz é também a que mais amedronta o feminino. Não é a toa que a cobra e o falo estão sempre tão associados…

No mito, foi somente quando Adão e Eva foram expulsos do paraíso que puderam perceber os atributos da humanidade. Ganharam ali o livre arbítrio, a capacidade de decidir e, consequentemente, a necessidade de lidar com os resultados de cada decisão. Despertar a consciência é um exercício angustiante, mas compensador. A reflexão nos ensina sobre limites e virtudes. Se nos bane do paraíso, favorece o verdadeiro desenvolvimento. Herdamos, todos nós, as penas impostas dos pais míticos da humanidade. Mas também deles ganhamos a chance de explorar o mundo e de nos superarmos diante das adversidades. O fruto do conhecimento é doce e gratificante o suficiente para que deixemos de experimentá-lo.

* Outras Ondas é publicada aos domingos no blog da Revista do Correio: www.correiobraziliense.com.br

Outras Ondas* – Pílulas de riso


Vinícius de Morais dizia que é melhor ser alegre que ser triste. No Livro dos Provérbios, lê-se que “um coração alegre faz tão bem quanto o remédio, mas uma alma abatida seca os ossos”. No ditado popular, temos a crença que rir é o melhor remédio. Um dos gestuais mais naturais ao homem, no entanto, nem sempre é cultivado com a importância que lhe é merecida. Desprezamos assim uma importante chave de renovação de energias.

Recentemente, foi publicada no The Telegraph uma curiosa reportagem que desmistifica o grande terror dos patrões nas empresas. Cientistas canadenses atestaram que não há perda de tempo em interromper o trabalho para assistir vídeos engraçados na internet. É justamente o contrário: pessoas que fazem pausas para cultivar o bom humor e dar boas risadas apresentam um maior rendimento laboral, inclusive com soluções mais criativas e dinâmicas, se comparados com aqueles que se mantêm atentos somente ao trabalho. Motivo suficiente para desbloquear o youtube da máquina do seu funcionário ou estagiário.

Vez por outra, a ciência tenta comprovar o que já está marcado no inconsciente coletivo. Rir deve ser contemplado como um exercício terapêutico, capaz de ser treinado, vivenciado e estimulado. Considera-se a depressão como o mal do século 21. No entanto, a estratégia mais usada para sanar o problema não vem da natureza e sim da farmacologia. O composto sintético presente no comprimido faz as vezes da boa gargalhada. Atrofiamos a nossa capacidade de ver graça nas coisas quando recorremos a indutores de endorfinas e dopaminas sem a real necessidade. O riso entra aqui com ação profilática: evita que a tristeza, esquecidamente natural ao homem, se transforme em uma patologia.

Estudos americanos recentes mostram que o riso nos defende de uma série de microorganismos invasores. O Departamento de Bioquímica da Universidade de Navarra, Espanha, estima que 15 minutos diários de riso podem garantir até 4,5 anos a mais de vida, além de reduzir em até 40% a chance de infartos. Temos em Path Adams o precursor de uma abordagem que toma, aos poucos, espaço na medicina: a valorização do bom humor do paciente para fortalecer o sistema imunológico. No Brasil, o movimento está muito bem representado pelo médico Marcelo Pinto, mais conhecido como Doutor Risadinha. Ele recruta voluntários para levar a risoterapia a hospitais – além de criar o Espaço do Riso, em São Paulo, destinado a workshops sobre benefícios do riso.

Rir é relaxante, renovador e econômico: são usados 17 músculos para sorrir e 43 para franzir a testa. Abra um vídeo com a risada limpa de um bebê e veja como reage ao terminar de assisti-lo. Quer algo melhor que ir a uma comédia no teatro e sentar-se próximo ao dono (ou dona) da risada mais escandalosa da noite? Mundo afora surgem clubes do riso: locais onde as pessoas se reunem simplesmente para esbanjar sorrisos. Parece loucura, mas dá certo. Num primeiro momento, o tom parece forçado. Mas aos poucos nos deixamos envolver pelo clima de descontração e, quando menos se percebe, já estamos em cólicas. Rir é contagioso e saudável.

nivas gallo