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Outras Ondas* – Por que nada é por acaso

A temática mística sempre fez parte do encanto de Jung e, como tal, teve uma forte participação nos conceitos que desenvolveu ao longo da vida. Essa visão era bastante diversa da de Sigmund Freud, que enxergava nos eventos de percepção extrassensorial (PES) uma herança primitiva dos instintos humanos, sacrificada em prol da evolução. Além das religiões, Jung também deu atenção especial para os acontecimentos paralelos que transcendem a lei física de causa e efeito: fatos simultâneos, aparentemente não correlatos entre si, mas dotados de uma carga de alta intensidade afetiva, despertando um novo sentido transformador a, ao menos, um dos atores que os vivenciam. A esses fenômenos especiais, Jung deu o nome de sincronicidade.

O termo foi cunhado por ele a partir de uma observação importante: ao se descartar uma possibilidade causal que justifique a ocorrência de dois (ou mais) fenômenos que desencadeiam uma coincidência significativa, a única possibilidade de explicá-los é a contemporaneidade. Ou seja, uma espécie de coincidência no tempo, uma simultaneidade que vai além das grandezas físicas de tempo e espaço. São, assim, ocorrências sincrônicas por natureza. Mas, para diferenciá-las das coincidências puras e simples, já que estas não despertam um novo sentido após experimentadas, decidiu forjar o novo termo.

Na visão de Jung, “a sincronicidade é uma diferenciação moderna dos conceitos obsoletos de correspondência, simpatia e harmonia. Ela baseia-se, não em pressupostos filosóficos, mas na experiência concreta e na experimentação”. Ou seja, ao formular uma teoria sobre o assunto, ele tenta retirá-lo do vão da ignorância, que interpreta as coincidências significativas como algo sem valor científico. Porém, irrefutáveis.

“Todos os fenômenos sincronísticos, que têm qualificação maior do que os da PES, são em si indemonstráveis, isto é, um único caso confirmado é, em princípio, prova suficiente, assim como não há necessidade de apresentar 10.000 ornitorrincos para provar que existe esta espécie ade animal. Parece-me que a sincronicidade é um ato direto de criação que se manifesta no campo do acaso”, ensinou o psiquiatra.

Jung encontrou nos oráculos um importante objeto de estudo para abordar o tema. Ele entendia os sortilégios como expressões arquetípicas, na medida em que surgem naturalmente ao homem, inerentes ao processo de formação das culturas em diferentes eras. O termo sincronicidade foi empregado publicamente pela primeira vez no funeral de Richard Wilhelm, em 1930, aos 55 anos de Jung. No discurso que proferiu em memória ao amigo, que o havia apresentado ao oráculo chinês do I Ching, ele valida a importância de estudar a sincronicidade, já que a experiência clínica apontava que a interpretação casual era limitada demais para definir certos processos psíquicos.

Nesta segunda-feira, celebramos o cinquentenário da morte do mestre. Em sua genialidade, ousadia e sede por conhecimento, ele se arriscou por caminhos até então não percorridos pela ciência. Só o fez por entender que, para contribuir com o progresso científico, é preciso despir-se de qualquer preconceito. Jung foi prudente. A teoria da sincronicidade, por exemplo, só foi sistematizada e publicada depois de ele ingressar pelo oitavo decênio de vida. Recebeu, com ela, as críticas de uma sociedade científica que se inspirava só e unicamente nas ideias iluministas da razão. Jung, ao contrário, era plural e abrangente – não se contentava com uma forma restrita de encarar a realidade. Hoje, meio século depois da morte, as teorias junguianas ganham força a partir de teorias correlatas, como a física quântica e a nanobiologia. Deixou, assim, mais um legado: ensinou que um absurdo é somente a visão limitada diante do paradoxo.

Outras Ondas* – O começo, o fim e o recomeço

Na série sobre orixás, hoje abordo as forças primordiais de vida e morte: Ibejis e Nanã, presentes no começo e o fim da existência.

IBEJIS

Dois pequenos bonecos esculpidos em madeira representam uma das divindades mais dinâmicas do panteão afro-brasileiro: Ibejis, as crianças gêmeas. Distinguem-se dos demais orixás por apresentarem-se sempre em pares, um dependente e relacionado ao outro. Obviamente, também representam o antagonismo presente no arquétipo dos gêmeos: o que é força em um, é a fraqueza do outro; o que um quer o outro rejeita. Traduzem, desta forma, a natureza dual do homem: o desejo e a necessidade, o ser e o não-ser.

Como deuses crianças, apresentam também a docilidade e a leveza (beirando o descompromisso) como características primordiais. Ibejis são alegres, brincalhões, talentosos e perspicazes. Apontam sempre para soluções criativas, inovadoras. Afinal, é deles o poder de começar uma nova tarefa (tudo o que já existe e terá um desenvolvimento, de uma planta a um projeto, sofre influência dos Ibeijs). Mas também são caprichosos, ciumentos, egoístas e teimosos, características que se apresentam principalmente quando não são atendidos de pronto.

O culto do candomblé associa a figura dos Ibejis a outra manifestação especial: os erês, os representantes infantis dos orixás, que se apresentam junto aos neófitos desde o momento da iniciação na religião. Os erês surgem como os portadores da voz dos deuses: transmitem aos homens as suas vontades, descontraem o ambiente durante os períodos de reclusão no noviciado, ensinam e aprendem os detalhes do culto. São donos de hábitos pouco ortodoxos e pouco polidos: se não educá-los, exageram nas brincadeiras e se tornam impertinentes. No entanto, são vistos com bastante respeito, de utilidade ímpar na religião.

NANÃ

Nanã é o barro primordial, de onde foram retirados os elementos para moldar a figura do homem. É também aquela que recebe os corpos daqueles que cumpriram a trajetória de vida. Nanã é a morte temida e respeitada, mas inevitável para a manutenção da raça. Dona dos pântanos e das águas paradas, é tida como a mais velha entre as grandes mães do panteão jeje-iorubá. Também é a chuva fecunda, que oferece a renovação da existência. Seus fundamentos são cercados por mistérios, assim como a sua própria face: transmite a verdade contundente das limitações humanas, sendo assim temida pela maioria dos mortais. Muitas vezes, eles a reverenciam para evitá-la: movimento contraditório de quem tenta barganhar com a ceifadora em nome da longevidade.

A ausência do uso de metais no culto a Nanã aponta a uma existência remota, anterior ao domínio do ferro pelo homem. Assim acreditam os seguidores do candomblé, que justificam o ocorrido com a divergência existente entre a deusa e o orixá Ogun (o ferreiro). Nanã até aceita ser cultuada por homens, porém só se manifestará em iniciadas do sexo feminino. É a justiceira daquelas que sofrem nas mãos tiranas do poderio masculino.

O poder de retirar a vida também se reverte na força das sementes e grãos, que são de domínio de Nanã. Ela expressa a renovação da vida, que conduz sempre com a calma e a sensação de domínio do tempo – tudo acontece na hora certa, acredita. Conduz a vida e os compromissos com rigidez e responsabilidade, que espera encontrar nos demais. Muitas vezes, luta contra as próprias emoções para manter o controle das situações e administrar os problemas com mais justiça e em prol da coletividade. É a “avó”, ora amável e doce, ora disciplinadora e severa. Em seu olhar calmo e andar lento, Nanã nos ensina a conduzir a vida com mais serenidade.


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