Self

Outras Ondas* – O desafio de Pereirão

Mal estreou em Fina Estampa, Griselda Pereira, a “Pereirão, seu marido de aluguel”, já ganhou a empatia de milhões de brasileiros. Lília Cabral, protagonista da trama, dá vida a uma personagem forte, determinada, que sustenta três filhos com serviços como a mecânica, a elétrica e a hidráulica – tradicionalmente associados ao universo masculino. Graxa, macacão largo e cabelos desgrenhados completam a estratégia de retirar de Lília sua natureza e feminilidade ímpares.

Obviamente, a proposta aqui não é analisar questões de ordem sexual, ou gerar um sexismo – onde mulheres ou homens carregam papéis estanques, sem aproveitar atributos do complementar. A reflexão que proponho está associada ao feminino que sangra em prol dessa identificação. E aos danos que isso pode gerar.

Uma telenovela se faz com personagens cotidianos, porém tingidos com cores mais carregadas. Nela, vilões e bandidos aparecem com um quê maniqueísta. Da mesma forma, Pereirão reflete um dos papéis que se exige da mulher moderna. Topamos cotidianamente com aquelas que, em prol das demandas profissionais ou outras restrições da vida, acabam despertando em si uma identificação forte com os atributos masculinos. Aos poucos, se esquecem de como é ser mulher. Quanto mais identificada com esses atributos, mais difícil será embarcar naquilo que chamam de “programas de mulherzinha” – diminutivo este sinalizado como sinônimo para frivolidade, algo que não merece atenção diante na lista de prioridades.

Quando questionada pelo filho sobre as vestes e trejeitos, Pereirão retruca de forma exasperada. Logo em seguida, abre o armário e se depara com um vestido florido. Mas, agora, ela não consegue mais sustentá-lo no corpo – talvez por interpretá-lo como uma veste ingênua, boba, fraca. Acaba por escolher uma camisa larga, bem “machão”, com a qual se sente mais protegida.

No tarot, temos uma Pereirão representada na Rainha de Espadas. Ela é a mulher forte, resoluta e incisiva, que não mede esforços diante do homem. Busca esvaziar de si os sentimentos que a condicionam – mal sabe ela que esse é um atributo que perpassa todas as rainhas. Ela é a mulher identificada com a razão, com a destreza, com os conceitos. Fogem dos adjetivos e se apegam a uma tal realidade nua e crua, sincera e direta. Tornam-se eficazes, damas de ferro. Não percebem, entretanto, que, quanto mais tentem esvair a emoção, mais ela brota das entranhas. Acabam por sofrer com a ausência daquilo que mais desprezam: a solidão dói, por mais que aparentemente ela negue a dor.

O modo de viver de Pereirão não é uma escolha, mas o resultado da falta de opções. Esse dinamismo é reflete a necessidade de se manter firme e não abusada por um mundo predominantemente masculino. Ao pegar a caixa de ferramentas e intitular-se “marido de aluguel”, nossa personagem deixa claro que está ali justamente para preencher a lacuna deixada pelos homens – que, por diversos motivos, não se mantiveram fieis às obrigações. No entanto, sua atitude projeta no filho o papel do homem fraco, que prefere viver a fantasia de uma falsa fortuna a encarar a dura realidade da pobreza.

Tal dinamismo não reflete apenas uma questão de duelo entre sexos, e sim de uma adaptação ao mundo. Dentro de cada indivíduo há um oposto complementar interno, masculino ou feminino, a depender do sexo ao qual pertença. Jung os chamou de animus e anima, respectivamente. Esses princípios são formados (e transformados) ao longo da vida, na medida em que entramos em contato com imagens do sexo oposto. Tais imagens são associadas às emoções e afetos experimentados em cada vivência. Resultam assim numa espécie de organismo vivo, que dialoga constantemente conosco a partir de projeções: mulheres projetam o seu animus nos homens que a cercam, e vice-versa.

Essas projeções vão ter interferência direta na qualidade das relações estabelecidas com o mundo exterior, mas também com a autoimagem que carregamos. Quando animus ou anima se encontram “adoecidos”, surge uma clara distorção na forma como se enxerga o sexo oposto – além de dificuldade de autoaceitação e insegurança. Também é função dos opostos complementares a ligação que estabelecemos com os atributos espirituais, relacionados à ética.

Os próximos passos da história de Pereirão ainda nos são desconhecidos. Sabe-se apenas que ela mudará drasticamente a sua forma de ser durante a trama, depois que receber um prêmio na loteria. Torçamos para que ela reintegre os valores femininos perdidos. E, assim, ensine ao país a beleza e a força de ser mulher.

Outras Ondas* – A dura vida agreste

“Falta muito?, perguntou Myra, no desvio do descampado deserto, agreste de árvores cinzas da madrugada, rebanhos de ovelhas e bois com a cabeça descida à terra ocre, de fome, de sono. Falta o que falta da história. E o Sr. Kleber sorriu. Não tenhas medo, miúda. Em todas as histórias há sempre uma ponta de paraíso, um véu de clemência que estende uma ponta, fulgaz que seja.” (Maria Velho da Costa, Myra)

Sou filho de nordestinos que, felizmente, nunca passaram fome. Mas que a observaram de perto, durante a infância, em diversas situações. De certa forma, tenho um quê de aridez no sangue que me alimenta. Certamente, esse fator participou diretamente na escolha da minha atividade profissional. Enquanto terapeuta, trabalho com a tentativa diária de entender a força e a dor que a vida árida traz a cada ser.

A vida se torna árida sempre que nos percebemos com pouca ou nenhuma alternativa, quando vemos a esperança de sobrevivência em uma quantidade pouca de água salobra – bebida com a avidez de quem não pode ser negligente às oportunidades. Ela inspira palavras e gestos secos, pontiagudos e espinhentos como a vegetação da catinga e do cerrado. Folhagens duras, opacas e secas, que refletem a resistência de quem precisa sobreviver diante da restrição. A sábia adaptação transforma fauna e flora dessas regiões em vencedores, heróis por resistência diante da adversidade.

Resistentes, porém pouco maleáveis. A água é quem confere à natureza e também ao nosso mundo interior a plasticidade, a maleabilidade necessária para enfrentamentos com menos força e mais jeito. O árido confere a propriedade do recipiente que coleta, dá forma e contém a instabilidade dos líquidos. Mas são eles quem matam a sede, quem oferecem o acalanto necessário para propiciar a vida. No ambiente agreste, a água é a maior riqueza. A revolta que a sede provoca, por sua vez, pode induzir ao erro: tenta nos iludir, tirando-lhe a importância.

É quase uma ironia da natureza, mas quem apresenta couraças fortes de defesa, em geral, são povoados pela mais doce água. Assim como os mananciais mais puros se ocultam sob as mais grossas camadas de terra dura e pedras. O elemento, escasso na superfície, é abundante nas entranhas da terra. De lá, em raros momentos, brota o otimismo e a renovação, manifesta na solidariedade típica de quem sofre, na esperança de dias melhores.

Quando a seca é grande, o povo agreste se atemoriza. Não só pela morte da vida provocada pela falta de água, mas também porque a estiagem demorada aponta para um futuro impreciso: quando a chuva vier do céu, virá de forma torrencial, temerosa, inundante, desmedida. O flagelo se apresenta no muito e no quase nada. O sertanejo, precavido e temente, pede a clemência dos céus: traga, ó Deus, a medida certa – aquela que nutra, gere reserva, mas que não aumenta o meu sofrimento, que não endureçe a couraça que a vida já ofereceu.

O mundo moderno, asfaltado e concretado, transforma-nos em sertanejos de alma. Nos acostumamos com a pouca água dos afetos, saciamos nossa sede com prazeres vãos e, com o tempo, nem diferenciamos mais a água limpíssima daquela que simplesmente sacia a sede do momento. Nessa aridez do tempo e da competitividade, comparamo-nos, sem pensar, com animais que disputam uma cacimba rasa e suja, onde jaz a carcaça do companheiro-bicho que morreu antes de nós. Esquecemos de escolher uma árvore, mesmo que espinhenta, para sentar embaixo, descansar e refletir sobre as chances que esse cenário pode nos propiciar. Perdemos assim o melhor fruto que a aridez nos oferece: o amadurecimento, e não o embrutecimento.

Para que serve um sonho?

Com o que você sonhou ontem? Para muitas pessoas, a resposta a essa pergunta é bem simples: não lembro ou simplesmente não sonhei. Para outro tanto, o dia ganha um sabor especial ao tentar, logo pela manhã, decifrar o sentido oculto nas imagens oníricas. Esses encontram no sonho um norteador de caminhos, um esclarecedor de mistérios ou simplesmente uma fonte de inspiração para os sonhos – agora no outro sentido da palavra, o daquilo que almejamos para a vida.

A ciência comprova que, lembrados ou não, os sonhos povoam nossa mente cada vez que atingimos um ponto de sono profundo. É o chamado estado REM (Rapid Eye Moviments), que experimentamos em média cinco vezes a cada noite dormida. A partir de exames neurológicos, pode-se perceber uma intensa atividade cerebral durante esse momento – curiosamente, “acendem-se” áreas pouco usadas durante a vigília.

No entanto, um fator não é explicado: como é feita a seleção das imagens que nos povoam enquanto sonhamos. A tentativa de desvendar esse mistério, que intriga o homem desde o início da civilização, é um dos pilares da Psicologia Analítica, criada pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung. Para ele, os sonhos são fotografias fiéis do dinamismo psíquico: ou seja, a partir deles, podemos ter uma percepção clara dos afetos que nos povoam, dos complexos que nos regem e também das estruturas que carecem de desenvolvimento.

Em A natureza da psique (Ed. Vozes), Jung atribui aos sonhos cinco funções básicas. A primeira delas é a compensadora, compartilhada por Sigmund Freud. A partir dela, podemos entender os sonhos como um mecanismo psíquico para compensar desejos, frustrações e expectativas da vida, de forma a apresentar ao sonhador, por alusões, “todos aqueles pontos de vista que durante o dia foram insuficientemente considerados ou totalmente ignorados”, ensina. Dessa forma, o sonho “completa” o conteúdo que a consciência já abarca.

A segunda função é a prospectiva. O sonho oferece indicativos diferentes daqueles que a consciência, naturalmente limitada, é capaz de captar. É a parcela educativa do sonho: ele capacita para que solucionemos conflitos, amplia a visão de forma melhorada. Por outro lado, temos na função redutiva o contrário: há sonhos que surgem como elementos questionadores, cuja função é de destituir qualquer imagem já construída na consciência sobre determinado aspecto. Nas palavras de Jung: “O sonho redutor tende, antes, a desintegrar, dissolver, depreciar e mesmo destruir e demolir”. Ele acrescenta que o efeito desses sonhos não é necessariamente aniquilador, mas funciona como um questionamento diante de ideias e conceitos falaciosos. “Esse efeito é muitas vezes altamente salutar, porque afeta apenas a atitude e não a personalidade real.”

Os sonhos ainda podem funcionar como respostas reativas diante de acontecimentos da vida lúcida. Quando uma determinada experiência nos afeta de forma impactante, o inconsciente tende a repeti-la em imagens oníricas até que todo o conteúdo possa ser prontamente assimilado. Essa temática é bastante comum após vivências traumáticas. É como se assistíssemos pedaços de um mesmo filme várias vezes até compreendê-lo por inteiro.

Por último, Jung classifica a função mais controversa – e também certamente a mais curiosa – que os sonhos podem estabelecer: a telepatia. As experiências dos sonhos premonitórios, ou telepáticos, falam por si. Somente quem pôde tê-los sabe descrever o quanto eles podem inspirar em fascínio ou temor. Eles são a prova cabal para que entendamos que as fronteiras do tempo e do espaço são limitadores à consciência, e não ao inconsciente. Este, vive sob a ausência de uma linearidade de acontecimentos. A mesma lei que justifica a capacidade que temos de, em instantes, lembrarmos com nitidez de eventos ocorridos há décadas serviria para explicar os lampejos de futuro experimentados durante o sono.

Além de qualquer teoria, o olhar sobre os sonhos torna-se um poderoso instrumento de autoconhecimento e de busca pelo caminho pessoal. Observá-los com atenção, rigor e respeito (uma das funções no processo da psicoterapia junguiana) é um exercício contínuo para que possamos almejar ao amadurecimento do Ser.

Outras Ondas* – Teresinha e seus amores

Chico Buarque é um dos meus favoritos entre os poetas contemporâneos. Sua produção é capaz de comover, indignar, despertar a ternura. Isso porque ele consegue traduzir muito do inconsciente coletivo que nos permeia. Ao ouvir algumas de suas canções, a ilustre iyalorixá Mãe Menininha do Gantois se negava a crer que aqueles versos eram feitos por um homem, tamanha a sensibilidade e propriedade para falar da alma feminina.

Entre elas, destaco Teresinha. Criada para a peça teatral A ópera do malandro, a canção se tornou um grande sucesso na voz de Maria Bethânia – e também na paródia feita pelos Trapalhões na década de 80. O poema musicado é uma recriação de Chico para a trova infantil Teresinha de Jesus. Ela vai além de versos: ajuda a traduzir as expectativas femininas diante dos relacionamentos.

“O primeiro me chegou
Como quem vem do florista
Trouxe um bicho de pelúcia
Trouxe um broche de ametista
Me contou suas viagens
E as vantagens que ele tinha
Me mostrou o seu relógio
Me chamava de rainha


Me encontrou tão desarmada
Que tocou meu coração
Mas não me negava nada
Assustada, disse não”

A primeira proposta à Teresinha é tentadora: o homem provedor, aquele que chega dotado de ricas experiências e que a coloca em um alto patamar – distante demais de onde ela reconhece estar. Sensível, oferece o melhor – é invejável, inspira a imagem de perfeição masculina traçada na cabeça de muitas. Ele tenta cativar pelas posses e pelas possibilidades que pode proporcionar. Transforma assim a convivência em algo insustentável: distante demais de uma imagem de ingenuidade que a protagonista transparece. Ela se sufoca no jogo opressivo, que não permite qualquer autonomia. Teresinha entende que não tem chance, nem disponibilidade, para a competição que certamente se estabelecerá. Um homem que não a limita também não lhe oferece a chance de crescer. E isso não é o desejável para um relacionamento.

“O segundo me chegou
Como quem chega do bar
Trouxe um litro de aguardente
Tão amarga de tragar
Indagou o meu passado
E cheirou minha comida
Vasculhou minha gaveta
Me chamava de perdida

Me encontrou tão desarmada
Arranhou meu coração
Mas não me entregava nada
Assustada, eu disse não”

Na ânsia por um homem que a provocasse mais, Teresinha atrai para perto de si um errante: o homem rude, primitivo, machão “com pegada”. No entanto, ele supre a curiosidade despertada pelo primeiro pretendente. Diante de alguém com perfil persecutório, ela é chamada a se posicionar diante da própria realidade – é questionada e questiona-se diante dos papéis que vivencia. De alguma forma, o perfil a atrai: talvez pela fantasia da mulher curadora, a mãe capaz de corrigir passos distorcidos do companheiro. Porém a forma de ele agir a expõe de forma constrangedora. E isso a leva a crer que está despreparada para alguém tão intenso, tão forte, tão embrutecido. Desgarra-se de qualquer sentimento e, naturalmente, o renega.

“O terceiro me chegou
Como quem chega do nada
Ele não me trouxe nada
Também nada perguntou
Mal sei como ele se chama
Mas entendo o que ele quer
Se deitou na minha cama
E me chama de mulher


Foi chegando sorrateiro
E antes que eu dissesse não
Se instalou feito um posseiro
Dentro do meu coração”

O passado de Teresinha é repleto de expectativas. Primeiro, quer um homem que a resgate do mundo infantil. Em segundo lugar, busca aquele que a faça reagir diante da vida. No entanto, ela espera por modelos preestabelecidos de relacionamento: ou ela será a rainha soberana ou a serva subjugada. Desconhece assim o valor da verdadeira parceria em um relacionamento: diferenças devem inspirar à complementariedade, e não à adversidade.

Longe de qualquer modelo preestabelecido, chega o terceiro pretendente. Esse não tem nome, não tem rosto, não segue um papel preestabelecido. Da mesma forma, não exige nenhum tipo de postura: cultiva somente o espontâneo, a verdade de ser o que se é, sem fantasias. Não ilude com falsas promessas e, consequentemente, não gera frustrações como conseqüências. O diálogo é franco, de alma para alma. E, antes que se perceba ou que se tente estabelecer qualquer tipo de controle mesquinho, nasce o amor. Teresinha nos ensina que um relacionamento saudável é aquele que se despe de qualquer ilusão.

Outras Ondas* – Amy, vinte e sete

Há uma semana, a morte de Amy Winehouse contundiu admiradores em todo o mundo. Todos encaravam o fim precoce como algo inevitável diante das circunstâncias de risco que a cantora britânica se expunha. A adição de álcool e drogas participou de sua fama com a mesma proporção de sua voz, que marcou a entrada do século 21. No mesmo domingo, a imprensa já correlacionava um detalhe à notícia: a uma coincidência macabra entre a morte de Amy e a de outros importantes nomes da história da música, como Jim Morrison, Janes Joplin e Kurt Cobain. Todos tiveram vidas conturbadas pela dependência química, todos contribuíram com uma visão mais libertária do mundo a partir da contestação, todos morreram aos 27 anos. Destino ou maldição? Seria simplesmente uma coincidência?

Não há aqui uma tentativa de explicar os rumos da vida e da morte, obviamente por eles estarem fora do alcance de qualquer mortal. Mas um fator merece atenção: por que aos 27? Podemos analisar a idade a partir de um fator especial: a divisão da vida em setênios, ciclos de sete anos. O tema faz parte da visão antroposófica do desenvolvimento individual. Na crença, temos uma ressignificação da vida a cada ciclo vivido. A transição entre um e outro setênio é marcada por uma crise: somos chamados a revisar valores, a definir novas prioridades e, com isso, cultivamos uma nova autoimagem. Às vésperas de completar 28 anos, Amy e seus companheiros de sina se preparavam para adentrar no quinto setênio: aquele definido como “a crise dos talentos” por Gudrun Burkhard, autora de Tomar a vida nas próprias mãos (Ed. Antroposófica) – a bíblia do assunto, para quem se interessar pelo tema.

Costumo correlacionar os setênios aos arcanos maiores do tarot. Contando a partir de O Louco, temos no quinto setênio a imagem de O Imperador, o arcano 4. Ele nos rege dos 28 aos 35 anos, numa fase difícil onde aprendemos a lidar com a concretude do mundo. É a égide da razão, dos limites e do foco. Com o Imperador, aprendemos a colocar ordem nas coisas, somos cobrados às responsabilidades. É a hora da preocupação com o futuro, o momento das cadernetas de poupança, previdências privadas e das prestações da casa própria. Pedidos de casamento, estabilidade no emprego. Efemeridades perdem espaço para o perene. Aprendemos, efetivamente, a sermos adultos.

Mas chegamos à casa do Imperador um tanto mal acostumados. Vínhamos dos prazeres múltiplos inspirados pela Imperatriz, o arcano 3, que nos rege dos 21 aos 28. Ela nos toma pela mão para mostrar como o mundo é múltiplo, intenso e maravilhoso. Ele é nosso e temos, por dever, explorá-lo em suas infinitas possibilidades. A Imperatriz inspira-nos à multiplicidade, é fecunda: desperta assim a ilusão de que o mundo é nosso, que até os sonhos mais utópicos são possíveis de realização. Desenvolvemos nessa fase a possibilidade de crescer, ao percebermos a mágica de realizar nossos primeiros feitos. É uma fase de conquistas e experimentação, onde o futuro está distante demais para que possamos nos preocupar. Temos em nosso favor o tempo e a vivacidade da juventude – o que, às vezes, pode ser confundido isso com onipotência.

A crise na transição entre a Imperatriz e o Imperador leva um questionamento inevitável sobre o tempo. Agora, aprendemos que a dispersão não é aliada. É um período no qual buscamos um entendimento sobre o nosso verdadeiro papel: o erro fica evidente; o incômodo, intolerável. O período suscita a mudança de emprego ou profissão, contesta casamentos precoces. A vida precisa ir para frente, mas com resultados palpáveis. A ansiedade e a insegurança diante do futuro dominam. Não podemos, simplesmente, ser a mesma pessoa – mas também não temos a certeza de quem queremos ser.

Talvez a inspiração da nova fase que se aproximava fez com que Amy, Jimi e Janes se retirassem antes. Em comum, além dos 27, eles tinham a evasão pelo uso de drogas: precisavam de algo que entorpecesse a realidade, substâncias que inspirassem a fantasia e o mundo irreal. De tais viagens que faziam não retornavam apenas com inspirações geniais: traziam também os resíduos do submundo do inconsciente, que estigmatizaram o corpo e a psique com marcas danosas, levando a este triste resultado. Visitar o Imperador seria duro demais para eles, restando-lhes apenas fechar os olhos para o mundo. “Boa noite, meu anjo, durma bem” foram as palavras de despedida de Micht Winehouse, no funeral da filha.

nivas gallo