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Ler e Saber Extra: Dentro de nós

A publicação Ler e Saber Extra fez uma edição especial falando de anjos e demônios. Fui convidado a falar sobre o tema sob a perspectiva da psicologia analítica. Ficou assim: 

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Dentro de nós

Os analistas junguianos chamam os demônios e anjos interiores de complexos. Para a boa saúde emocional, o desafio de cada um de nós é aprender a conviver com eles

Texto e entrevista: Fernanda Villas-Bôas

 

Anjos e demônios podem viver dentro de nós? Metaforicamente, sim. Não se trata do espírito angelical ou da energia diabólica, mas de emoções comuns a toda a humanidade que sustentam e ajudam a explicar esses dois símbolos antagônicos. O psicoterapeuta e analista junguiano João Rafael Torres afirma que a psique abriga uma infinidade de anjos e demônios, conhecidos como complexos. O termo complexo, para os junguianos, representa um conjunto de emoções relacionadas a diferentes experiências humanas. São chamados de junguianos os estudiosos da psicologia analítica, criada pelo médico e psicoterapeuta suíço Carl Jung.

Tome como exemplo o complexo da mentira. A mentira se organiza como um complexo a partir do momento em que uma pessoa passa a interiorizar emoções despertadas nas ocasiões em que tomou a decisão de faltar com a verdade. “Esse complexo terá uma predisposição de funcionamento. Digamos que, ao longo da vida, uma pessoa tenha encontrado na mentira uma estratégia para escapar de situações das quais se sentia insegura. Quando essa pessoa estiver diante de uma situação que remeta à mentira, reagirá a partir de uma espécie de script e acabará por mentir novamente”, explica Torres. Dessa forma, o complexo irá se apropriar da consciência, já que o ato de mentir parecerá à pessoa mais forte do que ela mesma. “É como se fosse uma outra personalidade que nos possuiu”, reforça. Ou seja, anjos ou demônios, dependendo da característica do complexo.

Esse mecanismo, de acordo com a psicologia analítica, é considerado natural. Variados complexos se revezam na condução da psique, dependendo das condições em que foram formados e das vivências de cada indivíduo. O processo só se torna problemático quando um dos complexos domina completamente a consciência, impedindo que os demais se manifestem. “Na linguagem teológica, isso corresponderia à possessão demoníaca, na qual o “eu” estaria subjugado, inviabilizado de suas decisões”, ilustra o analista.

 

“Demônios” no dia a dia

Excetuando essa condição extrema ou patológica, como lidar com anjos e demônios interiores no dia a dia? Para Rafael Torres, o melhor a fazer é aceitar os sentimentos da ira, da inveja e do ciúme como emoções passageiras – e procurar aprender com elas. “Muitas dessas emoções ‘demoníacas’ têm um forte propósito na nossa existência: nos levam a uma compreensão mais plena das nossas limitações e quebram nossa prepotência de controle diante da realidade”, cita ele.

O analista salienta que não existem emoções inúteis nem inválidas. Todas contribuem para o autoconhecimento e, consequentemente, para o desenvolvimento da psique. Rafael menciona o teórico junguiano James Hillman, para o qual a saúde emocional se estabelece quando é possível construir altares para todos os deuses. Hillman chama de deuses as forças psíquicas que movimentam a humanidade.

Assim, o segredo da saúde emocional é equilibrar anjos e demônios interiores. O motivo: embora vista como um sentimento negativo, a agressividade (demônio) é importante para o amadurecimento emocional. “Sem ela, permaneceríamos sem evolução”, lembra Rafael Torres. Por outro lado, a complacência (anjo), classificada pelo senso comum como uma virtude, pode virar sinônimo de passividade, inércia. “Em excesso, a complacência nos impede de aprender com nossos próprios erros. O desafio é encontrar a medida certa para cada ‘anjo’ e para cada ‘demônio’ que nos habita”, recomenda o analista.

 

A linguagem dos sonhos

O que significa sonhar com anjos ou demônios? O analista junguiano João Rafael Torres diz que essas imagens podem simbolizar complexos ou afetos. Como esses complexos ou afetos são sombrios, confusos ou difíceis de aceitar, o inconsciente elege entidades sobre-humanas para personifica-los. Durante a terapia, os sonhos com anjos e demônios costumam ser relatados ao analista para que este auxilie o sonhador a interpretar seus significados. A partir daí, os recados dos sonhos podem ser melhor assimilados, de modo que o paciente traga o conteúdo do sonho para sua realidade, analise seus sentimentos e, eventualmente, reveja comportamentos. O livro O homem e seus símbolos, concebido e organizado por Carl Jung, com estudos deles e de seus colaboradores, destaca que os símbolos são elementos comuns nos sonhos. “Eles nos revelam nossa natureza original com seus instintos e sua maneira peculiar de raciocínio”, frisa Jung.

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A revista está disponível nas bancas ou clicando aqui, no site da editora.

 

Campus: Cartas que curam

O jornal Campus, da Universidade de Brasília, fez uma reportagem sobre o uso terapêutico do tarot e me convidaram a falar sobre o método Tarot Analítico. 

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Campus: Cartas que curam

Amanda Venício
Na penumbra de uma sala cheia de cacarecos, mãos enrugadas tocam cartas com símbolos misteriosos. A voz revela uma doença grave no futuro. A câmera corta para o rosto surpreso de uma mulher jovem. A cena, que abre o filme Cléo das 5 às 7 (1962), de Agnès Varda, mostra a faceta mais conhecida do tarô: o método divinatório, que prevê o futuro. Mas as cartas podem ser usadas para um fim bem diferente: autoconhecimento.

O tarô terapêutico não vê o destino como uma força à qual não se pode resistir. Em vez disso, mostra que cada um é capaz de criar o próprio futuro. “Fazer previsões só degrada os consulentes [quem consulta as cartas] a frangos de granja, a meros espectadores de suas próprias vidas”, afirma o tarólogo Veet Pramad. Desde 1988, Pramad ensina pelo Brasil o método de tarô que desenvolveu e leva o seu nome.

Para Pramad, não se deve procurar respostas prontas para resolver problemas. “Responder perguntas pode fazer com que o consulente traspasse a responsabilidade de suas decisões para o tarólogo. Isso não é terapêutico”, afirma, “Em hipótese nenhuma alguém pode sair de nosso consultório falando que vai fazer ou deixar de fazer isso porque o tarólogo mandou”.

Ex-aluna de Pramad e taróloga profissionalmente há cinco anos, Taty Quintanilha joga tanto tarô divinatório quanto o terapêutico. Quintanilha também indica florais e técnicas de meditação, além de oferecer uma consulta de retorno. “A pessoa que procura o tarô vem buscando o futuro, mas eu trago ela para o presente”, afirma. Quintanilha recomenda que o consulente procure fazer sessões de terapia para que haja um acompanhamento maior. A taróloga acredita que nem mesmo o tarô divinatório é capaz de prever o futuro: “Você consegue saber como a pessoa se sente sobre o que acontece. Não é o fato em si, mas como aquilo está sendo vivido”.

A jornalista Danielle Ferreira já foi a duas consultas de tarô terapêutico. Segundo ela, o consulente deve estar preparado para ouvir coisas que não gostaria. “O tarô terapêutico é como um tapa na cara, com uma abordagem mais direta do que a terapia, que poderia demorar mais para mostrar uma questão que pode incomodar”, afirma.

“Qual é a única coisa inexplicável do tarô? É por que saiu a carta que você tirou”, afirma Iara Groszweicz. Fisioterapeuta desde 1986, ela passou a usar o tarô nas consultas em 1997. “Quando comecei a trabalhar com a fisioterapia, percebi que você podia fazer toda a parte técnica, mas se não trabalhasse a cabeça do paciente, não adiantava”, diz.

Inquieta, Groszewicz procurou respostas na psicossomática, ciência que une psicologia e medicina. “Existem dois tipos de situação: você pode sofrer um trauma e isso te afetar psicologicamente. Se você sente dor, você fica triste, deprimido”, explica a fisioterapeuta. “Outra coisa é quando você está numa situação emocional que pode gerar doenças no corpo físico.”

Durante a sessão, Groszweicz conversa com o paciente. “Se ele é racional demais, eu nem vou falar de tarô”, conta. Se o paciente se mostrar aberto, pode tirar uma carta para ser interpretada. “Quando você começa a trabalhar o corpo, vem uma série de lembranças e emoções à tona. Ao tirar o tarô, no final, a carta fecha a nossa conversa”.

 

ORIGEM

No livro A Cultural History of Tarot (2009), Helen Farley afirma que o tarô foi introduzido por mamelucos otomanos  na Europa no século XIV. Na
época, era usado de forma recreativa, como um jogo de cartas. Quatro séculos depois, o baralho foi adotado para uso divinatório por ocultistas. Nos anos 1970, o movimento espiritual da Nova Era buscava se afastar de instituições religiosas tradicionais. A espiritualidade seria uma construção individual, baseada no sincretismo, a mistura de diferentes doutrinas. Os adeptos do movimento buscaram no tarô uma forma de conhecer a si mesmos. A partir dos símbolos das cartas, desvendavam obstáculos para o crescimento pessoal.

A literatura produzida pelo psiquiatra suíço Carl Jung (1875-1961) foi referência para a Nova Era. Assim como Sigmund Freud, Jung acreditava que a mente era dividida entre consciente e inconsciente, conjunto que formava a psique. Na teoria junguiana, no entanto, o inconsciente carrega aspectos culturais em comum com toda a humanidade: o inconsciente coletivo. O inconsciente coletivo é formado por arquétipos, símbolos universais.

CARTAS NO DIVÃ

O psicoterapeuta e tarólogo João Rafael Torres desenvolveu o Tarot Analítico, método que emprega conceitos desenvolvidos por Jung na análise das cartas. “A análise junguiana tem como foco a ampliação da consciência a partir da integração de conteúdos do inconsciente”, explica, “A leitura do tarô funciona de forma semelhante a um sonho: dá um lampejo do funcionamento da psique”. Nas cartas, é possível enxergar arquétipos e a partir deles refletir sobre o significado de eventos do cotidiano. Torres oferece consultas de tarô e também atua como psicoterapeuta. Na psicoterapia, no entanto, deixa as cartas de lado e prefere dar prioridade à análise de sonhos. O baralho só entra na sessão como último recurso. “Em algumas situações, quando os sonhos se escasseiam, podemos recorrer ao tarô como tentativa de acesso ao inconsciente”, afirma.

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