Hoje inicio uma nova parceria. Desta vez, com o portal Metrópoles, que nasce no Distrito Federal. Assino a coluna semanal Psique, com textos inéditos sobre as coisas do eu e do inconsciente.
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Difícil mesmo é encarar o dia depois de olhar para o corpinho de Aylan, banhado pelo Egeu, pela inocência e pela vulnerabilidade. Perturba por sabermos que ali não está retratada a tragédia de um menino. Tampouco a de um povo oprimido pela guerra. A imagem, que faz cortar o coração de qualquer um que o tenha, fala da sensação de desterro que atravessa a humanidade. Estamos todos em busca de um refúgio, num mundo que parece encolher a cada dia.
A competitividade é um valor típico que atravessa a humanidade. Gostamos muito de certezas, ao mesmo tempo em que temos uma dificuldade enorme para aceitar e respeitar certezas diferentes das nossas. E dessa intransigência derivam comportamentos nocivos, capazes de aniquilar etnias, culturas, ideais. O Estado Islâmico, que expulsou a família de Aylan da Síria, é um exemplo extremado do que falo. Mas a incapacidade de aceitar o outro está por toda parte – inclusive dentro de mim e de você.
Não há santidade ou psicologia que nos imunize do preconceito. Nossa psique funciona a partir de referências prévias: tudo o que vivemos busca uma correlação com eventos anteriores. E tendemos a reagir a partir dessa bagagem de experiências, não só nos atos mas principalmente nas emoções. É o que chamamos de complexos. Quando um determinado complexo é ativado, ele assumirá uma predisposição imediata. É o que a sabedoria popular traduziu como “gato escaldado tem medo de água fria”.
Quanto menor for nosso nível de consciência, mais estaremos à mercê dos equívocos inspirados pelos complexos. Ampliar a nossa capacidade de reflexão nos defende dessas armadilhas: com ela, exercitamos a compreensão – a capacidade de agregar, em si, novos valores que, a partir de então, passam a fazer parte do nosso sistema de crenças.
A deficiência desse exercício é o que deixa o mundo apertado. Assustados com a ameaça de escassez (de tempo e de outros recursos), desaprendemos a capacidade de empatia com o outro. Somos duros, frios, impessoais. Desmerecemos a verdade do outro em nome daquilo que cremos. Confundimos austeridade com superioridade, individualidade com egoísmo.
Daí precisa vir Aylan para nos lembrar da fragilidade experimentada quando os papeis se invertem. Assim como ele, todos já nos vimos exilados das possibilidades de crescimento. Metaforicamente, o outro também nos empurra para longe, sufoca, expõe ao frio e à fome. Sentimo-nos fora da nossa terra, à míngua, diante de um mundo que impõe o que é certo, e diz: “este não é o seu lugar”. Somos banidos a cada vez que presenciamos a injustiça, a impunidade.
Aylan sobre a areia, como quem dorme, acorda nossos complexos mais tenebrosos. Com ele, experimentamos o medo do abandono, da incerteza no amanhã. Definitivamente, não estamos protegidos ou livres de um fim semelhante. A cena da praia se repete e se repetirá, dia após dia: crianças das nossas vizinhanças também veem minguar a oportunidade de experimentar um mundo melhor – distante da fome, da educação deficitária, do tráfico, da sexualização precoce. E muitas vezes nos calamos diante dessa triste realidade. Queremos todos um novo lugar para viver – mas pouco fazemos para construí-lo. A paz que o menino sírio parece experimentar desorienta nossas ilusões.
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