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Psique: Paris e Rio Doce – o horror e a “solidariedade estética”

Crédito: Metrópoles

RJ - PARIS/ATENTADOS/CRISTO REDENTOR - GERAL - O monumento do Cristo Redentor é visto iluminado com as cores da bandeira da França, no   Rio de Janeiro, neste sábado (14), em homenagem às vítimas dos ataques terroristas em   Paris.    14/11/2015 - Foto: ALEX RIBEIRO/ESTADÃO CONTEÚDO

No início deste ano, foi noticiado que, num período de dois dias, dois mil seres humanos foram exterminados na Nigéria por grupos radicais islâmicos. A Nigéria é longe. É desinteressante. É pobre. É inexpressiva. Qual é o ponto turístico da Nigéria? Qual o grande monumento? Que lugar ocupa na fila do glamour? Onde se faz um bom selfie na Nigéria?

Em Paris, não. É tragédia sem precedentes. Dá dó. Preocupa. Pray for Paris. Graças a Deus, meus amigos que vivem lá estão bem. O mundo não pode continuar assim, tenho de expressar minha revolta. Vou usar aqui o aplicativo da rede social para pintar minha fotografia com as cores da bandeira francesa.

Não é a geografia que separa Nigéria, França, Síria e demais lugares assolados pelo terrível fundamentalismo. Nem é o ódio: todos os ataques são motivados pela intolerância, pelo desejo de extermínio de tudo que é diferente. É a imagem que distingue tais nações. Ou, como ressaltou um amigo: “até a solidariedade é estética!!”.

Dois pesos, duas medidas
Esse é um ato de terror que cometemos sem perceber. O mendigo loiro e de olhos azuis ganha espaço nas mídias, enquanto o coração dispara apreensivo na aproximação do rapaz negro na calçada. A piada sobre o nordestino, a travesti, o macumbeiro, o aleijado… Tudo isso ofende menos do que o xingamento que recebo quando cometo alguma atrocidade no trânsito.

Na mesma semana, nosso país se deparou com o maior desastre ambiental da história. Uma população foi engolida pela lama. Resíduos tóxicos mataram um rio, e levarão um rastro de dano que irá desembocar no oceano. Não é preciso ser vidente para saber que a contaminação amaldiçoará gerações. Mas onde mesmo fica Mariana?

E se a lama da desgraça manchasse Ipanema, Copacabana? Se a vila atingida fosse Trancoso? Se as lembranças das últimas férias fossem maculadas? Certamente, a rede social providenciaria um aplicativo para alterar fotos de perfil. E a solidariedade seria instantânea.

A empatia é um afeto que se apresenta quando conseguimos nos ver no lugar do outro. E isso é muito mais fácil de acontecer quando reconheço o outro como um semelhante. Ou quando vejo o outro como um modelo a ser seguido. Duro é reconhecer a necessidade de quem não me assemelha.

Além disso, a “solidariedade estética” pouco faz em resultados práticos. Costuma não passar da fotografia, da frase indignada. É insuficiente para transformar, pois dura apenas o período de ebulição do assunto. Natural que seja assim: em nossa vida, só perdura o que vem da alma.

Encenar o bem
Todos nós investimos em personas, ou seja, papeis sociais que assumimos frente ao mundo. Os valores cultivados aí são oportunistas e utilitários. Somente investimos neles enquanto nos gratificam. E a principal gratificação que vem da persona é ocultar temas perturbadores, controversos, que nos colocam em contradição.

Dessa forma, a solidariedade estética pode apontar justamente para sua sombra: o egoísmo, a incapacidade de enxergar o mundo pelos olhos do outro. Olhe o parisiense e o membro do estado islâmico; o dono da mineradora e o ribeirinho afetado pelo desastre. Encenar o bem é diferente de fazer o bem. A compaixão vai além das diferenças.

Não questiono tudo isso para comparar tragédias. Dor e sofrimento são medidas intransferíveis. As duas, e as demais que fazem o mundo soluçar, merecem nossa atenção plena, nossa contribuição plena. Isso só se faz com a verdade de sentimentos.

Crises apontam para o colapso, ou para a transformação. Tudo dependerá do trato que assumirmos. Por aqui, seguimos morrendo. Vi numa charge que Deus resolveu tirar férias. Primeiro, temi por parecer verdade. Mas não: certamente, Ele está mais atento do que nunca. Distraídos estamos nós.

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Sento para escrever esse texto, ligo a seleção aleatória de músicas do meu computador. A primeira que toca é o Hino Nacional Brasileiro, gravado por Fafá de Belém em 1985, no álbum Aprendizes da esperança. Eu tinha cinco anos. Não entendia nada do que ocorria com o cenário político da nação. Mesmo assim, chorava cada vez que a canção era repetida.

No começo, minha mãe se preocupava, depois virou piada familiar. Isso aconteceu incontáveis vezes, afinal a música foi o tema das Diretas Já, da comoção pela morte de Tancredo. Desta vez, tocou e não chorei. Algo mudou em mim. Amargor da desesperança, sobriedade do amadurecimento? Temo que, como ocorreu na minha infância, os temas que trago nesse texto passem a ser tratados como algo banal. Ou, pior: virem motivo de piada.

Psique: Nascemos para morrer. Por que é tão difícil lidar com o fim?

Crédito: Metrópoles

A dark tunnel with light at the end.

A vida se dá na tensão entre dois opostos complementares: o nascer e o morrer. Nós, humanos, nos diferenciamos dos demais animais por termos consciência disso. Filosoficamente, ainda ensaiamos respostas precisas para os grandes mistérios indecifráveis (o chavão do “quem somos, de onde viemos, para onde vamos”). Mas, na prática, temos que lidar com essa realidade. Nascemos para morrer, essa é a nossa única certeza.

Vemos essa história se repetir desde que brotou essa consciência, isso nos é transmitido geração após geração. Fica difícil pensar que ainda não tenhamos aprendido a lidar com o encerramento das fases. E, de fato, não aprendemos. Sofremos um bocado para lidar com o desapego, somos bem inseguros ao olhar para frente.

Não é de hoje que se pensa sobre esse tema. Cerca de 500 anos antes de Cristo, o filósofo grego Heráclito de Éfeso já discutia a questão. Sua citação mais popular nos diz que ninguém pode se banhar duas vezes no mesmo rio. A cena jamais se repetiria, pois a pessoa já não seria a mesma; as águas originais também já teriam passado.

Vida é trânsito
Impermanência é o nome bonito que usaram para definir isso. Em diversas filosofias orientais, é tida como uma lei suprema. Entretanto, na situação contemporânea, evidencia um novo paradoxo do tempo. Somos cobrados a lidar com a celeridade das coisas, que se superam a cada momento. Descartamos diversas coisas com muita facilidade. Mas, quando há afeto envolvido, não conseguimos abandonar o passado em nome do novo.

Mera tolice. O futuro virá, independentemente da resistência. O passado não se atualizará, mesmo que eu busque cultuar emoções que o evoquem. Vida é trânsito. O percurso é o que interessa, pois ele representa o agora, a única realidade que podemos deter.

E esse será o único determinismo aceito, caso queiramos ter bem-estar. Quando nos fixamos numa situação estanque, querendo perpetuá-la a qualquer custo, assumimos o risco do empobrecimento. Quando restringimos nosso horizonte, ao renegar o novo, transformamos nossa vida em uma coisa menor, menos interessante.

Transformações exigem perdas
Tudo na natureza se expressa por um ciclo, com começo, meio e fim. A energia de renovação, que nos revitaliza, só pode se manifestar quando se assume a contrapartida da perda. Se não cedemos, não podemos suprir carências.

Associar a substituição do velho pelo novo aponta para uma fantasia de desamparo: não conseguimos acreditar que o futuro poderá suprir nossas necessidades. Ou que teremos recursos suficientes para lidar com os desafios que lá se apresentarão.

Irmanamo-nos com os problemas, como quem divide a casa com alguém inconveniente. Reclamamos do que temos, mas não empreendemos esforços para mudar nosso universo. E ainda desacreditamos os acenos da transformação.

Da mesma forma, tentar perpetuar um momento ou relação é limitar a nossa capacidade de transformação. O que me contempla hoje poderá ser insuficiente logo em seguida. Por isso, fazer compromissos é diferente de fazer pactos. Não podemos levar tão a sério as promessas eternas, uma vez que o eterno só existe na nossa fantasia. Em suma, estando você diante da maior das graças ou da mais terrível aflição, saiba: isso também vai passar.

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Palestra: “Gerir pessoas em tempos de crise”

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Eis o registro da palestra “Gerir pessoas em tempos de crise”, elaborada a pedido da Escola Corporativa da Companhia de Saneamento Ambiental do DF (CAESB). No encontro, direcionado para aproximadamente 70 gestores, usei os conceitos junguianos para falar sobre a função de mediação do RH – e todos os arquétipos e complexos que despontam desse ofício.

 

 

Psique: Quando o problema vira hábito

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City Lights series. Design composed of technological fractal textures as a metaphor on the subject of science, technology, design and imagination

Às vezes a vida parece querer nos castigar. Fazemos o possível para evitar uma determinada situação que já nos gerou incômodo, sofrimento. E, quando viramos a esquina, deparamo-nos novamente com a mesma coisa. Parece até que só trocaram o cenário e os atores, mas o drama e os personagens são os mesmos. Antes de maldizer destino, tente entender o que se passa em você.

“Até você se tornar consciente, o inconsciente irá dirigir sua vida e você vai chamá-lo de destino.” A sentença, proferida por Jung, nos auxilia a entender a dinâmica desse mecanismo. Tudo que se repete em nossa história tem algo de importante para nos dizer – especialmente sobre nossa natureza mais íntima.

Vale saber como as coisas funcionam na nossa psique. Em geral, tentamos assimilar aquilo o que vivenciamos, como uma experiência completa. Ou seja, buscamos associar a cena, o ocorrido, às emoções por eles evocadas, e, ao final, encontrar um sentido que valide o conjunto.

Somos todos traumatizados
Mas nem sempre é possível. Alguns acontecimentos são mais intensos que a nossa capacidade de processá-los na consciência – mobilizam uma carga emocional maior do que conseguimos suportar. Daí, em vez de reunir todo o conteúdo numa experiência, as emoções e imagens que transbordam se acomodam em diferentes partes do inconsciente, de forma dissociada. É o que chamamos de trauma.

No entanto, a psique tenderá a querer sanar essa dissociação. Ela buscará novas vivências, com agentes e emoções semelhantes aos da original, para promover uma unificação desse conteúdo.

A cada repetição, temos uma oportunidade de ressignificar, dar um novo sentido àquilo que não foi devidamente elaborado num primeiro momento. É chato, mas é o mal necessário para cessar o incômodo gerado pelo trauma. As peças precisam ganhar encaixe para sossegarmos.

Repetimos para aprender
Não é tão grave como parece – na verdade, é mais comum do que se pode imaginar. Lidamos com essa dinâmica inúmeras vezes ao longo da vida. E, com ela, desenvolvemos nossa capacidade de lidar com as adversidades.

Um bom exemplo é o que se dá com as crianças, quando elegem a historinha da vez. Repetem mil vezes, sem cansar. Sabem todas as falas, emburram quando tentamos tapeá-las pulando um trecho. Eis que num dia qualquer, elas simplesmente desgostam e partem para a próxima.

Crescemos, e substituímos os contos pelas relações. Ou seja, perdemos a capacidade de aprender pelo simbólico para encarnarmos, na realidade concreta, os dramas que não conseguimos superar. E repetimos, exaustivamente, até que uma das repetições seja a última: quando alcançamos um novo sentido, vira-se a página.

E o que fazer para passar à próxima lição? Entenda, em primeiro lugar, que compreender não é corrigir. Os caminhos percorridos jamais se apagarão. Superar um tema traumático é deixá-lo virar passado – se ainda se repete, ele nunca saiu do presente.

Depois, exercite um olhar diferente, perceba a mesma questão por outras perspectivas. Perdoe-se, afinal não é justo se punir por não ter conseguido fazer diferente. Isso seria comprar um problema extra para administrar. E agradeça: o que parece ser uma condenação é o seu caminho para libertar-se.

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