Self

Psique: Uma mulher poderosa é aquela que acredita em si mesma

Crédito: iStock/Metrópoles

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“O olhar de uma mulher faz pouco até de Deus, mas não engana outra mulher.” Vejo verdade nos versos de Chico Buarque de Holanda. Como homem, inclusive. Coloco-me reverente ao poder infinito do feminino. E me entristeço, intimamente, com aquelas que não acessam essa fonte.

Maria, velando o filho aos pés da cruz. Yemanjá, seios fartos para alimentar filhos que não pariu. Diana, um seio a menos para facilitar a caça. Salomé, dançando pela cabeça de João Batista. Helena, a origem de uma ilíada. Roguem a estas, por favor.

Conheçam Maria Quitéria, Elza Soares, Clarice Lispector, Irmã Dulce. Stella de Oxóssi, monja Coen, Viviane Mosé. Raimunda, Ismália, Daniela, Fabíola, Mariene. De onde estou, é para elas que olho. Para ver como me veem, ou veriam. Cada uma, a seu jeito, sendo mulher do tutano do osso aos cílios – postiços ou não.

Poder nas vísceras
A ideia desse texto partiu da conversa de três homens, todos declaradamente rendidos aos atributos do feminino. Seja daqueles que vivenciamos por meio de projeções, seja daqueles que acessamos a partir do nossa ânima – a porção de mulher que habita cada homem.

Falávamos do filme “O conto dos contos”, ainda em cartaz. Nele, a história de três reis submetidos à força do sexo oposto, que lhes invadia de fora para dentro e de dentro para fora. Vale a pena assistir para sabermos como os afetos podem mobilizar o homem ao extremo, levá-los à ruína dos impérios. E também para entender a natureza visceral da mulher, a fidelidade que têm às emoções.

E é das vísceras que brota esse empoderamento que falo. A mulher é a mãe do eros, do desejo, do envolvimento, da relação, da transformação. Da capacidade de resistir, de persistir, suportar. Das artes da paciência, do cuidado. Sem o feminino, nenhuma terra é fecunda, nada vinga. Tudo fica solto, nada faz sentido.

Resgate de valor
No entanto, a vida é injusta em muitos momentos. O poderio masculino reduz tanto a mulher que, muitas vezes, elas chegam a assimilar essa ideia. Enxergam-se menores. Ressaltam incapacidades e insuficiências – além daquelas que deveriam ser particulares a qualquer ser humano, ressalto. Uma mulher subjugada a essas crenças é a coisa mais triste do mundo.

Mulher pensa, mas não pensa como homem. Homem sente, mas nunca como uma mulher. Nem mais, nem menos: diferente.

 O que faço aqui, ao escrever isso, é somente uma provocação. Não é legítimo da minha parte querer ensiná-las a serem melhores – não estou habilitado a isto, nem de fato nem de direito.Mas acompanho diariamente a batalha de mulheres que olham de baixo para cima. Que confundem a luta a enfrentar com uma sina a cumprir. Que medem por baixo as próprias capacidades, por não compreenderem o quão valorosas são. Que submetem-se ao mando tirano do masculino, explícita ou tacitamente. Que ainda priorizam agradar, em vez de agradarem-se.

Chico me ajuda muito nesse exercício. Se existe, não conheço um homem que melhor compreenda as particularidades delas. Que encarne e verbalize melhor a psique feminina. A ânima de Chico é todas. Jung também é essencial. É injusta a fama de mulherengo. Ele era “mulherólatra” (perdoem o neologismo).

Como homem, sinto-me no direito de devolvê-las a admiração. De mostrar o quanto me formam, influenciam, educam. Ressalto a necessidade da troca solidária entre elas, do fortalecimento mútuo – a dita sororidade. Aponto para as debilidades do masculino, principalmente a que nos leva a sermos aproveitadores, bobos, chantagistas, canalhas. Não por trair os meus semelhantes, mas para que fique claro que não existe um sexo frágil.

Outras Ondas – A falta de sorte no amor

Junho se aproxima e as vitrines se lotam de corações. E muitos corações se lotam de questionamentos: “mais um dia dos namorados e eu sem ninguém, por quê?” Num período como esse, no qual as relações conjugais ganham tamanha evidência, não ter uma companhia é motivo para frustração. Afinal, o que há de errado? A falta de sorte no amor parece uma justificativa ideal para essa premissa. Mas seria simplesmente isso?

 “Eu quero ter alguém, mas alguém especial. Não me venha com qualquer pessoa.” Preconceitos nunca são bem-vindos, principalmente quando acompanhados pela prepotência. Seleções prévias diminuem drasticamente a chance de conhecer alguém interessante. Quem se apoia na crença mágica da companhia perfeita ainda não se desligou da infância e dos contos infantis: príncipes e princesas só se encontram nas historinhas. Ademais, vistos de perto, até mesmo os personagens encantados têm suas imperfeições – nós, humanos-da-vida-real, então… Enquanto a busca do amor ideal for conduzida com uma lista prévia de requisitos, será difícil encontrar a felicidade conjugal. É justamente quando esse tipo de crença se afasta que encontramos a pessoa mais condizente com o que somos.

“Já sofri demais em outros relacionamentos. Desta vez não vou me entregar como fiz no passado.” Não quero dizer aqui que as experiências que adquirimos são inválidas para nosso progresso. Mas elas não podem ser determinantes para o futuro. Em geral, quando generalizamos o comportamento dos outros é sinal de que ainda não curamos as feridas do passado. A tendência, nesses casos, é de buscarmos pessoas semelhantes às que nos fizeram sofrer – não para comprovar a teoria que concebemos, mas para que tenhamos uma nova chance de ressignificar a temática em questão. Feridas precisam ser reparadas, no duplo sentido da palavra: da observação e do conserto. Além do mais, ninguém deve ser condenado por um crime cometido por outrem. Principalmente você! Privar-se da entrega em outros relacionamentos pelo erro de quem já passou em sua vida é martirizar-se à toa. Prevenir-se de um possível sofrimento no futuro é, também, privar-se de viver momentos de felicidade.

“Quero namorar, mas não quero com isso me anular. Um relacionamento ideal é aquele que não interfere muito na minha rotina.” Um dos pressupostos de uma relação é compartilhar com a outra pessoa nossos sucessos e fracassos, dores e delícias. Querer um namoro asséptico, sem contaminações, é viver a superficialidade. Anular-se é perder a identidade, confundir-se com o outro “em nome do amor” (seria amor?). Uma relação saudável não nos diminui – é justamente o contrário: acrescenta novos valores.

“Até conheço pessoas interessantes, mas só consigo me relacionar quando uma energia diferente, aquele encanto da paixão à primeira vista.” Borboletas no estômago, sinos que tocam, uma luz diferente… Essas sensações com um quê de magia são fascinantes, mas perigosas. Quando aparecem, elas sinalizam que, quem está à frente não é uma pessoa real, e sim a pessoa que eu quero enxergar. É o que chamamos de imagens projetivas. Elas nos encantam, enredam e fascinam. Mas também podem frustrar imensamente, quando percebemos que a realidade não era aquilo que foi imaginado. Esse tipo de projeção é comum, inevitável para ser mais preciso. No entanto, é preciso atenção para que não forcemos a outra pessoa a ser o personagem que inventamos – sob o risco de recebermos o troco na mesma medida. Nesses casos, um casal é feito por quatro pessoas: eu, você, a imagem que eu carrego de você e a imagem que você carrega de mim. Confusão na certa…

Iniciar um relacionamento não é apenas uma decisão da consciência. A vontade de ter alguém, gritada com total convicção, muitas vezes esbarra em uma série de prejulgamentos internos. Saiba observá-los e contê-los. E lembre-se: determinismos dissolvem a possibilidade de ser feliz.

Outras Ondas* – Teresinha e seus amores

Chico Buarque é um dos meus favoritos entre os poetas contemporâneos. Sua produção é capaz de comover, indignar, despertar a ternura. Isso porque ele consegue traduzir muito do inconsciente coletivo que nos permeia. Ao ouvir algumas de suas canções, a ilustre iyalorixá Mãe Menininha do Gantois se negava a crer que aqueles versos eram feitos por um homem, tamanha a sensibilidade e propriedade para falar da alma feminina.

Entre elas, destaco Teresinha. Criada para a peça teatral A ópera do malandro, a canção se tornou um grande sucesso na voz de Maria Bethânia – e também na paródia feita pelos Trapalhões na década de 80. O poema musicado é uma recriação de Chico para a trova infantil Teresinha de Jesus. Ela vai além de versos: ajuda a traduzir as expectativas femininas diante dos relacionamentos.

“O primeiro me chegou
Como quem vem do florista
Trouxe um bicho de pelúcia
Trouxe um broche de ametista
Me contou suas viagens
E as vantagens que ele tinha
Me mostrou o seu relógio
Me chamava de rainha


Me encontrou tão desarmada
Que tocou meu coração
Mas não me negava nada
Assustada, disse não”

A primeira proposta à Teresinha é tentadora: o homem provedor, aquele que chega dotado de ricas experiências e que a coloca em um alto patamar – distante demais de onde ela reconhece estar. Sensível, oferece o melhor – é invejável, inspira a imagem de perfeição masculina traçada na cabeça de muitas. Ele tenta cativar pelas posses e pelas possibilidades que pode proporcionar. Transforma assim a convivência em algo insustentável: distante demais de uma imagem de ingenuidade que a protagonista transparece. Ela se sufoca no jogo opressivo, que não permite qualquer autonomia. Teresinha entende que não tem chance, nem disponibilidade, para a competição que certamente se estabelecerá. Um homem que não a limita também não lhe oferece a chance de crescer. E isso não é o desejável para um relacionamento.

“O segundo me chegou
Como quem chega do bar
Trouxe um litro de aguardente
Tão amarga de tragar
Indagou o meu passado
E cheirou minha comida
Vasculhou minha gaveta
Me chamava de perdida

Me encontrou tão desarmada
Arranhou meu coração
Mas não me entregava nada
Assustada, eu disse não”

Na ânsia por um homem que a provocasse mais, Teresinha atrai para perto de si um errante: o homem rude, primitivo, machão “com pegada”. No entanto, ele supre a curiosidade despertada pelo primeiro pretendente. Diante de alguém com perfil persecutório, ela é chamada a se posicionar diante da própria realidade – é questionada e questiona-se diante dos papéis que vivencia. De alguma forma, o perfil a atrai: talvez pela fantasia da mulher curadora, a mãe capaz de corrigir passos distorcidos do companheiro. Porém a forma de ele agir a expõe de forma constrangedora. E isso a leva a crer que está despreparada para alguém tão intenso, tão forte, tão embrutecido. Desgarra-se de qualquer sentimento e, naturalmente, o renega.

“O terceiro me chegou
Como quem chega do nada
Ele não me trouxe nada
Também nada perguntou
Mal sei como ele se chama
Mas entendo o que ele quer
Se deitou na minha cama
E me chama de mulher


Foi chegando sorrateiro
E antes que eu dissesse não
Se instalou feito um posseiro
Dentro do meu coração”

O passado de Teresinha é repleto de expectativas. Primeiro, quer um homem que a resgate do mundo infantil. Em segundo lugar, busca aquele que a faça reagir diante da vida. No entanto, ela espera por modelos preestabelecidos de relacionamento: ou ela será a rainha soberana ou a serva subjugada. Desconhece assim o valor da verdadeira parceria em um relacionamento: diferenças devem inspirar à complementariedade, e não à adversidade.

Longe de qualquer modelo preestabelecido, chega o terceiro pretendente. Esse não tem nome, não tem rosto, não segue um papel preestabelecido. Da mesma forma, não exige nenhum tipo de postura: cultiva somente o espontâneo, a verdade de ser o que se é, sem fantasias. Não ilude com falsas promessas e, consequentemente, não gera frustrações como conseqüências. O diálogo é franco, de alma para alma. E, antes que se perceba ou que se tente estabelecer qualquer tipo de controle mesquinho, nasce o amor. Teresinha nos ensina que um relacionamento saudável é aquele que se despe de qualquer ilusão.

Outras Ondas* – A magia do Cisne Negro

Não faltam boas referências na mídia sobre o filme O Cisne Negro. Principalmente à atuação impecável de Natalie Portman, favorita ao Oscar de melhor atriz. No entanto, não me coloco aqui no papel de crítico de cinema, e sim de alguém que elogia e analisa a rica simbologia presente no filme. O dilema e o enfrentamento de Nina (Natalie) são indiscutivelmente uma das melhores referências que se pode ter sobre questões do complexo materno, a temática que apresento aqui.

Nina é uma bailarina de 28 anos que, apesar da idade, tem referências distorcidas da própria vida. Ela é extremamente sensível, mas também indefesa e infantilizada. Vive reclusa com a mãe, tendo na dança o trabalho e a única distração. Tem como meta a perfeição e, na tentativa de alcançá-la, mantém uma imagem extremamente polida e autocrítica. Tais características são estimuladas por essa mãe: uma bailarina frustrada, que deposita sobre a filha a responsabilidade de ter-lhe impedido o desenvolvimento na dança. Sua mãe não tem sequer um nome ou atributo que a diferencie do mundo: dialoga com rostos anônimos que pinta, numa tentativa de definir uma identidade.

A relação entre ambas é simbiótica. Nina se esconde na superproteção materna, e, em contrapartida, se submete ao abuso e a tirania. Nem se pode dizer que a filha tenha uma intimidade devassada: ela sequer tem direito a uma intimidade, ao viver em um quarto sem fechaduras. A mãe a despe sem pudores, vigia o seu sono, define planos a seguir. Nina, por sua vez, tem uma autoimagem distorcida, que se manifesta em sintomas. Tem uma urticária compulsiva (incômodo e negação à pele, canal de contato físico com os demais e também de estimulação erógena) e também apresenta rumores de distúrbios alimentares. Ambos são usados por essa mãe, como forma de impor o controle a partir da imagem de cuidado. Ela é o Cisne Branco, asséptico e imaculado, que nada nos lagos formados pelas lágrimas da mãe – assim como é no conto que deu origem ao balé O lago dos cisnes, que embasa a história.

Submetida a esse mundo, Nina desempenha um papel limitado diante da vida. Encontra expressão unicamente na dança e, sabiamente, é a partir da expressão artística que surge uma possibilidade de remissão desse quadro doentio. O diretor da companhia onde dança desperta Nina à necessidade de desenvolver atributos até então negligenciados, quando a convida a desempenhar um papel que é o seu avesso. Os homens tem um papel preponderante no desenvolvimento da mulher: é o que Jung chamou de animus, a parcela masculina que as habitam. O mesmo ocorre com eles, que contam com a anima como oposto complementar na psique. A conexão com esses elementos é feito a partir da projeção: enxergamos animus e anima nos homens e mulheres com quem convivemos.

No caso de Nina, o animus se manifesta no diretor, que assume o papel de herói (a captura da família e a leva para conhecer um novo mundo) e também de professor (oferece lições para seu desenvolvimento). Ele inicia essa jornada despertando-lhe a sexualidade, inerente ao papel do Cisne Negro e negada até então pela protagonista. Ele estimula a autoerotização (com a masturbação, o uso de maquiagem) e também a inspiração nas colegas de companhia, que traziam a dança de forma visceral e espontânea, a detrimento da técnica.

Nessas colegas, Nina vê projetada a própria sombra: tudo aquilo que não quer ou não se permite ser, mas que, nesse momento, é imprescindível para o desenvolvimento. Na medida em que ela se encoraja a encarar essa sombra, na tentativa de admiti-la e integrá-la, o corpo metaforicamente passa por uma mutação e incorpora os caracteres do Cisne Negro. O enfrentamento provoca dor e estranhamento: ela enxerga o próprio rosto em situações até então improváveis. Fica inevitável a ela reconhecer-se transgressora, forte e independente. Agora, pode confrontar a mãe devoradora e libertar-se dela.

O apogeu de Nina se dá na estreia do balé. Num confronto contra a própria imagem, ela crê ter destruído a sombra projetada no exterior. Mas agora o Cisne Negro a habita, reina em si, enquanto o Cisne Branco torna-se incômodo, artificial. No entanto, de tão intenso, o papel sombrio conquista o público. Ela está realizada e, ao avistar a plateia, só consegue enxergar a imagem da mãe, feliz e vibrante. Entende então que, desde o princípio, tudo o que ela lhe desejara era a felicidade, a realização e a plenitude que não conseguiu vivenciar. Nina consegue integrar em si o Cisne Branco e o Cisne Negro. Está confiante o suficiente para saltar rumo ao desconhecido. Só, então, percebe o sentido da perfeição.

***

“Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe o quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago
a lua toda
brilha, porque alta vive.”
(Ricardo Reis (Fernando Pessoa), 1933)

Um papo com Gaiarsa

Há quatro anos, uma entrevista marcou minha trajetória no jornalismo. Apesar de nunca ter sido publicada, a conversa que tive com José Ângelo Gaiarsa me ajudou a abrir os olhos sobre as questões da família, sexualidade e da psique humana. De forma direta e simples, ele tratava de temas polêmicos e questionadores.

Infelizmente, a ideia de publicação da entrevista só surgiu depois da morte do autor, há duas semanas, aos 90 anos. Ele deixa um legado importante para a família brasiliera: o despertar para a necessidade do diálogo e da compreensão. Como uma homenagem, compartilho aqui a sabedoria de Gaiarsa.

José Ângelo Gaiarsa, o “inimigo” da família *

“São 50 anos ouvindo as mazelas humanas.” Assim o médico e psicoterapeuta José Ângelo Gaiarsa, definiu sua trajetória clínica, como orientador e pesquisador das variabilidades psíquicas humanas. No último dia 16, o doutor Gaiarsa, autor de mais de 30 livros, faleceu enquanto dormia aos 90 anos. Deixou como legado uma vasta obra, além de popularizado conhecimentos sobre sexualidade, relacionamentos e família, ao apresentar por 10 anos ininterruptos o quadro Quebra-cabeça, no programa Dia a Dia da TV Bandeirantes. Inúmeras horas de estudo e de consultório deram ao psicoterapeuta a autoridade para fazer afirmações polêmicas. Gaiarsa não negava que fosse “inimigo” da família e do casamento — pelo menos da forma como são interpretados pela sociedade. Em 2006, ele concedeu uma entrevista ao então repórter da Revista João Rafael Torres, em que falou sobre traição e defendeu o fim das ilusões. “Não dá para pensar num casamento feliz para todo o sempre. O segredo da felicidade é perceber quando ela chega na nossa vida, e aproveitá-la até que esse momento se esgote”, ensinou. A entrevista acabou não publicada. Em homenagem ao psicoteraupeuta, recuperamos esse material inédito e ofereceremos ao nosso leitor.

Por que o senhor diz que a família é o lugar mais perigoso que se tem para educar uma criança?
JOSÉ ÂNGELO GAIARSA — Quem diz não sou eu, são as estatísticas. A Unicef apurou que, só em 1998, mais de 80 mil crianças da América do Sul morreram por conta de maus tratos provocados dentro de casa. A educação se torna um escudo para que a família possa maltratar as crianças. E não é só a pancada, também existe o olhar duro, o castigo psicológico, a omissão. A verdade é que não existe escola de formação de pais, e a missão de educar uma criança é uma das tarefas mais difíceis do mundo. Para 90% dos pais, educar é repetir tudo o que aprendeu dos próprios pais — mesmo que isso implique numa educação retrógrada e conservadora. Não é à toa que as neuroses nascem sempre das relações familiares.

As relações familiares têm mudado nos últimos anos?
GAIARSA — Nasci em 1920 e recordo de muitas coisas da minha infância e adolescência. Naquela época, os pais eram mais autoritários, tínhamos menos amigos, a religião tinha um grande peso. A televisão, o rádio e atualmente a internet retiraram a família desse núcleo fechado. O cenário é outro, mas o discurso é o mesmo. Há uma grande dissociação entre o que se elogia nos outros e o que se faz na prática.

O acesso à informação não deveria favorecer uma geração mais equilibrada?
GAIARSA — As crianças que nascem hoje são muito diferentes, na medida em que tem acesso a muita informação. Hoje todos têm um conhecimento mínimo sobre qualquer assunto. Isso cria um distanciamento e uma dificuldade de compreensão entre pais e filhos como nunca havia acontecido em toda a história. Fica difícil para os mais velhos acompanhar a rapidez do raciocínio dos mais novos. Para muita gente, informação demais é tóxica. Em vez de proteger, a informação intensifica o conflito, quando a comparamos com os valores transmitidos dentro de casa. Nesse momento, a vontade de se fazer “normal” diante das pessoas se transforma noutra neurose. A preocupação com isso é tamanha que a família se transforma numa oficina de produção artesanal de “normopatas”, praticamente um minimanicômio. Como consequência, crescem os dois maiores negócios do mundo: as armas e as drogas, incluindo aí os psicotrópicos e o álcool. As pessoas buscam qualquer forma de sair desse mundo. É muito difícil aguentar a realidade.

Até que ponto a dificuldade de comunicação entre pais e filhos se estende ao sexo, aos relacionamentos afetivos?
GAIARSA — Sexo continua assunto proibido. Os pais negligenciam que o bebê já tem as primeiras manifestações sexuais no sétimo mês de vida intrauterina. Logo que nascem, as crianças são educadas de uma forma que as faz negar a expressão do próprio corpo. Passa a repetir apenas gestos estereotipados, dentro do que é convencional à sociedade. Além disso, os próprios pais não se permitem demonstrar o afetivo e o erótico entre si, diante dos filhos. Não há evidências de que se gostam, como beijos e abraços. Educação sexual é isso. Não é só dar informações sobre sexo.

Em seus livros, o senhor faz severas críticas à forma como as mães se portam diante de suas crianças. Afinal, até que ponto elas são culpadas pelas frustrações futuras dos filhos?
GAIARSA — Novamente, o problema está entre a cisão entre o discurso e a prática. As mães mudaram muito. Estão mais independentes, não exercem mais tanta influência sobre os filhos e estão mais tempo for a de casa. Graças a Deus. Mesmo assim, ainda afirmo que, juntas, elas constituem o maior partido conservador do mundo. Ensinam o autoritarismo e as chamadas grandes virtudes da família, que são uma balela na sociedade. No mundo, ninguém consegue ser educado, honesto e dizer sempre a verdade. E o que é ainda mais grave e mais grotesco: elas ainda fazem questão de se manterem sagradas diante dos filhos, como se não tivessem sexo. Com isso, os filhos aprendem que só pode existir amor da cintura para cima.

Que complicações isso pode trazer para a vida de ambos?
GAIARSA — A relação entre mães e filhos começa errada logo no nascimento. Geralmente, são separados de uma forma abrupta justamente num momento importante de identificação, dos primeiros contatos, do primeiro cheiro, do primeiro olhar. Quando saem da maternidade, vem o segundo erro: pensar que devem ficar eternamente juntos. A crença de pensar que mãe é para sempre também é um pecado. Em todas as espécies, as mães cuidam dos filhos enquanto eles precisam de cuidados. No caso dos homens, não. Ninguém está preparado para esta separação. Ao contrário, é cada vez mais comum encontrar marmanjos vivendo dentro da casa da mãe santa e eterna, com tudo à mão. E, o que é pior, ela adora isso. O terceiro tabu está em querer amar todos os filhos da mesma forma, como se eles não tivessem individualidades que os tornassem diferentes.

A dificuldade dos homens de se ligarem em relacionamentos estáveis está relacionado a esse comportamento?
GAIARSA — Na fase em que passa de menino para homem, naquele período onde o sexo é o que domina a cabeça, a educação sexual é feita pelos próprios companheiros. Eles compartilham suas “experiências” de uma forma rústica, quase animalesca. Competem entre si, ao mesmo tempo que mantêm grande cumplicidade. Para se manterem integrados, deixam de agir com naturalidade. Muitas vezes, essa experiência se perpetua nos outros relacionamentos. Por outro lado, vem aquela idéia de almas gêmeas, que é predominantemente feminino. O homem patina então pelo meio termo. Nas datas especiais, manda um buquê de flores. No auge do romantismo, escreve uma música. Isso é mais uma atitude do “normopata”, por não ter espontaneidade. As pessoas se preocupam no tal do casamento para sempre, até que a morte separe. Mas não estão preocupadas em nutrir o amor. Precisam aprender que não existe felicidade plena. O segredo é perceber quando ela chega na nossa vida, e aproveitá-la até que esse momento se esgote.

As palavras do senhor desanimam qualquer pessoa que pense em casamento…
GAIARSA — (Risos) E você, meu filho, ainda acredita em casamento? Os ditos casamentos se tornaram verdadeiras tragédias cômicas. A realidade de consultório mostra que dois terços dos sofrimentos psicológicos vêm de relações familiares. Dois terços das moléstias psicossomáticas, incluindo aí o uso de tóxicos e a depressão, vem de casamentos vazios. São pessoas que chegaram a uma certa idade e desistiram de brigar pela felicidade. Se acomodam e esperam a morte. A separação é um dos maiores dramas do ser humano, mesmo quando o casamento está lotado de problemas. O indivíduo fica encurralado: se fica dentro de casa, é infeliz; se sai de casa, se sente culpado e também é infeliz.. Eu, que já casei cinco vezes, posso dar meu testemunho. A experiência terapêutica não amenizou minha dificuldade ao me separar pela última vez. A maior parte dos casamentos dura o dobro do que deveria e só se estende pela covardia.

* A entrevista foi publicada em 28/10/2010 no blog da Revista do Correio: www.correiobraziliense.com.br
nivas gallo