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Psique: Quem é você na multidão quando alguém precisa de ajuda?

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Você já viu alguém ter uma crise convulsiva na rua? A cena desencadeia as mais distintas reações. Há quem deseja ajudar, os oportunistas, os desesperados, os curiosos criadores de tumulto e os indiferentes ao ocorrido. A minoria busca simplesmente amparar a pessoa até o fim dos espasmos.

Agora, imagine que o mundo vive um colapso semelhante. Um corpo se retorce por não conseguir abarcar toda a tensão imposta a ele. Catástrofes, guerras por poder, escassez de recursos. Tudo com muita gente ao redor sem fazer nada, mas excitados pela cena. Ficam cada vez mais próximos, roubando o ar do agonizante.

Percebo a realidade mais ou menos assim. E, sinceramente, não sei quem sou nessa multidão. Na semana passada, experimentei parte desse frenesi.

Na carona do dia 12 de outubro, publiquei aqui o texto “Esquecemos o maior valor da infância: a descoberta sem julgamentos”. O tema propunha o resgate da criança interior. Do primeiro ao último parágrafo, o artigo falava de como a manutenção de certos atributos infantis favorece a vida dos adultos.

Logo, o entendimento virou outro. Ao que parece, pessoas sentiram-se ofendidas com a ideia de uma “descoberta sem julgamentos” e passaram a atacar a publicação de forma muito odiosa. Inclusive, com injúrias. Alegavam a defesa da pedofilia pelo texto. Talvez um caso de analfabetismo funcional crônico − uma das chagas de nossa educação.

As opiniões faziam uma alusão clara aos escândalos envolvendo manifestações artísticas e nudismo. Não sou especialista em arte tão pouco em nu. Por isso, prefiro não me envolver na polêmica. Nesse assunto, sou quem reza enquanto a ambulância não chega, na torcida pelo doente (o mundo, no caso) recuperar-se logo.

Pessoalmente, foi mais uma boa dose (um tanto amarga, por sinal) na compreensão da força dos complexos. Quando ativados, eles cegam completamente a razão e o discernimento. Enxergamos por uma fresta e temos a certeza de enxergar o todo. Dotados de tamanha convicção, sentimo-nos aptos a atacar qualquer opinião diferente da nossa. Infelizmente, é assim.

O mundo está convulso. Nós reagimos muito mal a tudo. Gritamos recomendações do que deveria ser feito, sem termos a mínima perícia sobre o alardeamento. Prescrevemos soluções ultrapassadas aos problemas dos outros, sugestões incapazes de curarem nossas próprias feridas.

E assim deflagramos guerras, na tentativa de oferecermos uma alternativa mais eficaz às dores do mundo. No entanto, não percebermos o único remédio possível para isso: o autoconhecimento e a aceitação. Pois, como nos lembra Jung: “precisamos entender melhor a natureza humana, porque o único perigo real que existe é o próprio homem.

Todos querem um mundo melhor. Poucos querem melhorar.

Psique: Esquecemos o maior valor da infância: a descoberta sem julgamentos

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Já virou um jargão gasto esse negócio de criança interior. Fala-se muito que dela precisamos cuidar, para que sanemos feridas do passado. O conteúdo tem razão. A forma, nem sempre.

Para começar, pela forma como ela é enxergada. Falamos dela na terceira pessoa, como quem olha de cima para baixo. Forçamos uma certa intimidade, para disfarçar nosso desejo de impessoalidade.

Na infância, estamos conhecendo o mundo. As impressões lá adquiridas vão servir de referência para todo o novo que acessarmos ao longo da vida. Descobrir é um exercício cumulativo, no qual o que veio antes influenciará o que vem depois.

O problema é que tudo que aprendemos, desde a primeira respiração, é associado a conceitos e crenças. Vindos de adultos, que agem a partir de preconceitos – angariados por experiências próprias ou por heranças que lhes foram transmitidas.

E é assim que a criança se fere: pelo medo do desconhecido, pela incerteza dos papeis a desempenhar, pela insegurança frente aos próprios recursos. Assim como qualquer ser vivo, não nascemos para o fracasso.

No entanto, deixamo-nos contaminar demais por esse falso poder oferecido pela consciência, e, em nome de uma preservação do confortável e seguro, embotamos o grande sanativo infantil: a criatividade.

Percebemos a tal criança ferida no discurso monótono e tedioso dos incapazes de fantasiar, e de crer nas próprias fantasias. A chaga que carregamos em nossa criança interior é a incapacidade de brincar.

Levamos muito a sério aquilo não tem tanta importância: opiniões alheias, modismos, certezas. E esquecemos o maior valor da infância: a descoberta sem julgamentos. Brincar alivia o peso da vida.

Brotam daí todas as intolerâncias, todo o desrespeito. Pois não conseguimos enxergar na diferença um caminho alternativo; seguimos apenas o caminho já pavimentado, por parecer mais seguro. E morre assim dentro de nós a capacidade de escuta da alma – da própria e da do outro.

A cura da criança ferida depende de uma entrega confiante, fora dos parâmetros normóticos. É não taxar o sentir como ridículo, arriscar a metáfora como forma de explicar o mundo. Trocar a dita realidade pelo “faz de conta” – assim como acontecem nas fábulas e histórias infantis.

E isso não é devaneio de um analista romântico. É a compreensão de que, no mundo interior, as coisas obedecem um desenho muito particular, e bem pouco lógico. Nossa realidade psíquica é feita de imagens e emoções, e não de conceitos rígidos. Querer enquadrá-la numa realidade cartesiana é envelhecer antes do tempo. Sem amadurecer.

Daí viramos arremedos, adultos caricatos, em busca de referências do que é adequado. Agimos como crianças chatas, que querem imitar adultos mas não sabem brincar com seus semelhantes. E que não se sentem confortáveis quando a vida pede espontaneidade.

Crianças são divinais justamente por encontrarem na simplicidade das coisas respostas para grandes mistérios da vida. Cobrem os olhos para fazer sumir os grandes monstros. Partem para outra quando um plano não dá certo. Transformam-se em qualquer coisa, sem temer uma irreversibilidade do desejo. Veem mágica em cada gesto, em cada palavra, em cada troca.

Psique: Maldição e benção: crenças têm a importância que lhes são creditadas

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Não sou de uma família tradicional, no sentido pomposo da palavra, mas trazemos conosco crenças que atravessam gerações. Superstições, inclusive. Na casa de minha mãe, algumas palavras eram mais proibidas do que palavrões. Miséria, desgraça, peste, praga…

O argumento é de que, quando chamamos tais palavras, elas poderiam atrair para debaixo do teto o seu significado. Uma coisa meio “O segredo”, décadas antes do lançamento do best-seller. Atraímos o que chamamos, sejam bênçãos ou maldições.

O tempo e a profissão me fizeram perder esse medo. Não de todo. Teria como ser diferente? Meu ofício me ensina a lidar com as misérias humanas, sendo elas das mais distintas espécies. Essa lida, tenho uma função educativa de nominá-las. Só é possível combater o que foi reconhecido.

A ideia da desgraça é um dos principais temores humanos. Não queremos imaginar que Deus nos deu as costas. Na imagem divina, encontramos a ideia de um amparo para que suportemos as adversidades, estando elas fora ou dentro de nós.

Da mesma forma, quando abençoamos alguém (o que é comum nesse jeito tradicional que cito), o que se busca é uma dupla afirmação do sagrado: em mim e no outro. É como se emprestássemos nossos braços para acolher, suplementando provisoriamente o abraço divinal.

A bênção legitima uma crença num futuro melhor. É um reforço para a imagem original de todas as religiões: sermos filhos queridos de um ser superior, capaz de orquestrar a realidade em nome do bem e da completude.

Esse é um traço comum por validar uma necessidade psíquica: o progresso, derivado da integração de fatores desconhecidos ou dissociados. Assim como acontece quando esperamos que Deus ofereça um sentido. Quando o caos se instala sobre as coisas do mundo, quando o que vemos não encontra sentido na nossa lógica.

Ao evocarmos uma bênção, recorremos, de forma humilde e submissa, a essa parcela sagrada que nos habita. Conferimos a ela um poder que, no fundo, nunca lhe faltou. Mas que o ego, em sua visão limitada e tendenciosa, pode querer tomar para si. Em vão, por mera incompetência.

Essas são algumas das razões que fazem da Psicologia Analítica uma vertente bastante atenta à religiosidade. Jung, inclusive, foi acusado diversas vezes de ser mais místico que científico.

De fato, ele reconhecia o mistério e a busca do significado como os grandes cernes da psique humana. Ao fim da vida, já não se importava tanto com os créditos pejorativos que lhe davam: ele não acreditava em Deus, ele “sabia” Deus.

Da mesma forma, as bênçãos e maldições que nos chegam no consultório, nos discursos dos clientes, são observadas com o respeito e a reverência devidas. Terão sempre a importância que lhe são creditadas. Seria um absurdo querer destruir algo tão importante para a realidade do indivíduo. Afinal, nunca sabemos qual é a viga mestra, a que sustenta toda a edificação.

Psique: Sem autoconhecimento, corremos o risco de casarmos com nossos pais

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“Você está agindo igualzinho à sua mãe!” “Não espere que eu faça como seu pai!” Atire a primeira pedra quem nunca disse, ou ouviu, comentário semelhante numa discussão com o ser amado.

Em diversos momentos, as relações conjugais replicam ou repercutem os modelos relacionais experimentados na família de origem com os pais. Evidenciam, igualmente, os conflitos que os atravessavam. Os enfrentados e, em especial, os que por eles foram postergados.

Nossos pais (ou quem assumiu a função parental na nossa infância) servirão como nossa primeira referência quando o assunto é a relação com o outro. Mesmo sem ter consciência disso, eles nos ensinam formas de estruturarmos nossos vínculos. Até que nos surjam novas referências, esta predominará no nosso contato com o outro.

O problema é que buscar novas referências nos exige muito. A começar, uma desconstrução e nova assimilação das imagens de pai e mãe que carregamos internamente. Seja porque é difícil admitir que nossos heróis eram falhos, seja por não querermos sair da voz de condenação da educação que recebemos.

Quanto mais inconscientes estivermos do nosso processo de desenvolvimento pessoal, do autoconhecimento, maior a chance de casarmos com nossos pais. Buscaremos, nas relações que empreendermos, preencher cada silêncio, cada interrogação, cada negativa.

Podemos nos identificar com um deles e reproduzimos seu comportamento fielmente – buscando parcerias complementares, que atendam perfeitamente o script que herdamos. E copiamos tão bem o modelo apreendido que repetimos as mesmas frases, as mesmas reações, os mesmos medos, as mesmas doenças…

Podemos ainda buscar alguém que complemente a nossa infância. Um pai ou mãe complementar, que reproduza o comportamento daqueles que tivemos ou que os repare. Ou seja, procuramos os pais que não tivemos, que possam “acabar o serviço” que ficou para trás. Missão impossível.

A ampliação da consciência nos dá uma espécie de emancipação psíquica. Não é “matar os pais” internamente, e sim aprender a aceitá-los como são e diferenciar-se deles psiquicamente. Sem essa diferenciação, viveremos os conteúdos do inconsciente familiar como destino, como ensina Jung.

Apesar de difícil, esse processo é gratificante. Especialmente por ser capaz de interromper verdadeiras maldições familiares, transmitidas geração após geração. Ao tomarmos certa distância, conseguimos compreender que certas sinas só se cumprem porque ninguém teve a audácia de questioná-las.

Psique: É preciso ser grato pelo amor e pelo desamor. Tudo nos transforma

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Devo muito ao mundo por ser quem sou. Mas a ele, enquanto imagem do todo. Podia, então, dizer também que devo tudo isso a Deus. Ele também personifica o todo. Essa é a dívida que reconheço.

Sou filho de uma família de classe média, que pode me proporcionar o estudo em instituições particulares. Também nunca me faltou para a assistência básica: alimentação, saúde, segurança, diversão. Sou um privilegiado. E sou grato a meus pais por isso.

Grato, apenas. Pois sei que não foi o que tive que me fez ser o homem que sou. Foi uma colaboração importantíssima, ainda o é. Mas não me sinto um devedor. Nem deles, nem de ninguém. Também não aceito cobranças.

Minha forja foram quem consegui ser, os lugares que minha vista alcançou e as minhas decisões. Algumas, precipitadas e imprecisas, geraram tortuosidades daquilo que sou. Outras, moldaram duro o que carece de firmeza. E temperaram, deram maleabilidade para que eu pudesse me encaixar nos espaços que a vida oferece.

Sou grato a cada amigo, a cada amor, a cada professor. Mas também a cada praga rogada, a cada dúvida sobre meu caráter, a cada resposta que me foi negada. Tudo isso me revelou para mim. Fez com que eu precisasse remexer fundo, em busca de um potencial esquecido, de uma chave enferrujada.

O termo “gratidão” está super em alta, apesar de muitas vezes ser administrado de uma forma imprecisa, outras vezes jocosa. Substitui o “muito obrigado”, num reconhecimento muito honroso a quem ameniza nosso caminho, ao nos prestar algum favor ou gentileza. Acho adequado.

Afinal, estar “obrigado” é condicionar-se a uma recíproca à altura, quando nem sempre temos a oferecer – ou queremos fazê-lo. A verdadeira gratidão se distingue da dinâmica de devedor x credor. Compreender essa semântica, e internaliza-la, pode ser um exercício de libertação.

Muitas vezes, cremos que, para sermos gratos, precisamos estar sempre disponíveis ao outro. É como se tivéssemos sido aprisionados em troca do bem que nos foi favorecido. Sendo assim, somente trocamos de problemas.

Da mesma forma, quando estamos do outro lado do balcão, sentimo-nos autorizados a emitir promissórias sempre que fazemos algo por alguém. Mesmo que elas nunca venham a ser enviadas, ficarão guardadas, exalando uma substância densa, altamente tóxica: o rancor.

Crer numa dívida eterna pela participação do outro em nossa história (ou vice-versa) fundamenta um vínculo pretensioso, criado a partir de exigências. É um entrave imbecil ao desenvolvimento.

Participamos mutuamente uns na vida dos outros. De forma mais ou menos cordial, mais ou menos útil. Não há, entretanto, resultados que dependam mais de alguém que de mim mesmo: até mesmo para sermos ajudados, devemos antes nos autorizarmos a tal.

Quem se vangloria de ter auxiliado alguém não o fez por entrega ou grandeza de alma. É justo o contrário: “emprestou” uma força ao reconhecer um valor naquele que é ajudado, na expectativa de poder gozar no futuro de algum benefício. Nem que seja o status de bondoso, solícito, nobre.

O bem se faz em silêncio, de cabeça baixa. A gratidão, idem. Ambos fazem mais sentido a quem os pratica, e não a quem assiste.
nivas gallo