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Psique: Conheça (e respeite) os seus limites

 

Viver bem e criar bem os filhos, na medida do possível. Assim como ter comprometimento profissional, ser um bom par, cuidar-se. O problema está na tal medida: o demais, o de menos.

Essa é a régua da felicidade e do seu contrário. O mal que nos habita deriva de excessos, faltas e da angústia experimentada quando somos chamados a dar conta do considerado suficiente.

Fórmulas inspiradoras não faltam. Vão das filosofias de botequim às heranças deixadas por grandes sábios. Intimamente, sabemos que as referências, por mais positivas, não são definitivas. Como dizia minha avó, cada um sabe onde o próprio sapato aperta.

A medida do possível é a tradução consciente dos nossos limites. Daquilo que, apesar de todo reconhecimento e empenho, vemo-nos incapacitados para transpor. Saber identificá-los é, antes de tudo, perceber que estamos submetidos a algo intangível: o inconsciente.

 

Somos atravessados e tomados por muitos desígnios que vão além das deliberações conscientes ou de uma identificação das falhas. Viver não é administrar a eficácia diante dos problemas. É perceber-se em uma equação complexa, na qual parece sempre faltar elementos para uma solução.

Nem sempre há uma solução.

Algum ideal perpassará tudo aquilo que nos dispomos a assumir e os papéis atribuídos a nós, compulsoriamente, pela vida. O problema está na aplicabilidade: planejamos a felicidade com urgência. Realizá-la não está diretamente associado à nossa vontade.

Não há plano construído apontando para o insucesso nem indivíduo nascido para fracassar. Nossa existência é tão miraculosa e complicada para se realizar, que seria um contrassenso pensarmos ter falido por falta de comprometimento.

Quando estamos atentos a isso, percebemos que o caminho da cobrança (de si e do outro) pode ser  instrumento para um massacre inútil. Não se trata de uma defesa à indulgência barata. É apenas perceber: o show nem sempre sairá como a expectativa do público.

 

Encontramos o possível quando percebemos nossa limitação e vamos um pouco além dela. Essa parcela extra é o nosso comprometimento para crescer e supera a indulgência. É o esforço feito “apesar de mim” que me leva ao desenvolvimento.

Aquilo abaixo da linha do possível também não nos deve paralisar. O que não fui capaz de ser ou me parece distante pode ser uma questão de tempo. Nenhum atleta começa a vida no esporte correndo uma maratona, embora, quando isso acontece, parece bastante razoável.

Psique: Nostalgia pode criar a ilusão de uma existência perfeita e inatingível

 

Não é o fim do mundo. Nem o começo do fim. Nossos dramas continuam os mesmos. Só mudaram os cenários e as circunstâncias. Não busco entorpecer o pensamento às disparidades e divergências que atordoam nossos dias. Elas são graves, mas condizentes com nossas identidades.

Conviva com alguém acima dos 70 e ouvirá um discurso com tom saudoso-melancólico diante do noticiário. Está tudo pior, dizem. Só está diferente, mas não menos intenso que no passado desejado.

Inclusive, ansiar o passado é a mais dolorosa de todas as realidades, por tamanha irrealidade que representa. O meu tempo é hoje. Óbvio, mas aparentemente tão difícil de aceitar.

O que está em questão nessas situações é a nostalgia. O desejo de voltar para casa, de encontrar no passado um lugar agradável, seguro e harmônico. Mas, se observarmos com critérios mais apurados, percebemos que nunca existiu.

Em seu livro Saudades do paraíso (Ed. Paulus), Mario Jacoby correlaciona esse sentimento com a crença num lugar intocado pela dor, sofrimento ou desconforto. Irreal, quando pensamos na existência humana.

O que mais se aproxima desse estado sublime é o colo materno. Nutrição farta, aconchego e acalanto, proteção contra os males de toda a natureza. A total entrega ao estado de inconsciência, de indiferenciação entre o eu e o todo.

Basta lembrarmos que, na tradição judaico-cristã, o banimento do homem desse estado indiferenciado se dá quando ele come do fruto do conhecimento, que dava na árvore da vida. A partir deste momento, acessamos as misérias da existência humana.

Ao termos consciência de nossa condição frágil, finita e limitada, ansiamos um tal progresso, estimado como estado de plenitude. Quem não tem dinheiro, acha que o dinheiro é a solução. Quem não tem saúde, busca saúde. Quem vive só, espera tudo de um amor.

Segundo Jacoby, quanto menos conhecemos o paraíso, mais por ele esperamos. Ou seja, quanto menor for a maternagem recebida pelo indivíduo, maior a expectativa por esse estado de perfeição. Esperará que algo, ou alguém, possa lhe proporcionar a salvação, a satisfação e a harmonia.

E, assim, afasta-se da ideia de um paraíso possível. Neste, os critérios não são rasos e coletivos. Não se quer apenas prazer e alívio, ou a cópia de um modelo irrealizável. É justo o contrário: a realização de quem verdadeiramente somos. Integrarmos, simultaneamente, maná e fruto proibido.

Psique: Aprendemos os valores de nosso caráter na convivência com o outro

 

Não nos resta outra realidade senão a de compartilharmos a existência com os outros. Dos mais felizes aos mais perturbadores, os eventos da vida terão sempre testemunhas. Algumas delas, participantes ativas. Outras, meras observadoras.

Usar o verbo “compartilhar”, logo de início, soa redundante neste mundo em que vivemos. Afinal, é bem provável que você tenha chegado a este texto depois de alguém ter clicado num botão com esse enunciado. Apesar de novíssimo, o hábito se tornou tão corriqueiro que parece fazer parte do repertório dos “sempre” da nossa vida.

De fato, o que mudou foi o meio – agora, com as facilidades do mundo virtual, ouvimos nossa voz mais alta, com maior capacidade de alcance. E, assim, replicamos tudo aquilo que gostaríamos de ter dito antes, as ideias com as quais nos identificamos, o acontecimento que julgamos relevantes.

E fazemos isso por esperarmos uma troca. Queremos que os demais também nos alertem dos perigos, instruam sobre as novidades, provoquem um sorriso. Alimentamo-nos de referências.

Buscamos trocas porque somos seres essencialmente gregários, relacionais. É só assim que aprendemos sobre quem somos, sobre os papéis que ocupamos no mundo. Nossos olhos precisam de espelhos que nos façam enxergar melhor. E buscamos isso no olhar do outro.

Nossa necessidade de estabelecermos vínculos é vital. A ciência já atestou que um bebê que é higienizado e alimentado de forma austera, sem o toque carinhoso e o olhar de quem cuida, terá sérios problemas de desenvolvimento, e pode não sobreviver.

Quando crescemos, e superamos a demanda por cuidados básicos, mantemos essa necessidade de estabelecer pontes com nossos semelhantes. É delas que apreendemos os valores que norteiam nosso caráter e nossa ética.

Há pessoas que dizem optar por uma vida reclusa. Não falo aqui dos introvertidos típicos – aqueles cuja necessidade legítima é de concentrar o foco da própria energia em seu mundo interior.

Refiro-me aos reativos. A quem acha que a relação pode subtrair, em vez de somar. Pessoas que têm aversão a outras pessoas. Ontem, assisti a um breve vídeo da Monja Coen, sábia que muito admiro, alertando sobre uma frase que circula por aí: “gosto mais de bicho que de gente”. Esclareceu e me fez pensar sobre o assunto.

Talvez tais pessoas prefiram os animais pela incapacidade destes de promover, diretamente, questionamentos e confrontos mais profundos. Ou de oferecer menos frustrações às expectativas neles projetadas. Ou pela fartura e disponibilidade de carinho que oferecem. Bicho é menos exigente, cobra menos para que sejamos melhores.

Muita dessa evitação é gerada por reatividade. As feridas abertas por outros nos colocam indisponíveis para novas possibilidades. O isolamento é uma opção imatura, pois sugere que podemos evitar novos danos. Mal percebemos que é das mãos do outro que poderá o surgir o sanativo para nossos males mais profundos.

Psique: Se achar não significa ser. Mas, para muita gente, já é o suficiente

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“Pensa que é dona e eu lhe pergunto: quem te deu tanto axé?” O verso, citado por Caetano Veloso, corresponde a um questionamento muito presente no linguajar do soteropolitano. Remete ao candomblé, religião de hierarquia forte, na qual qualquer conquista deriva da transmissão de um mais velho para um mais novo.

Tal frase me vem à cabeça em diversos momentos. Para mim, ela é a melhor para descrever a tal da síndrome do pequeno poder. Diante dele, só mesmo atuando com a ironia debochada do linguajar baiano (afinal, só o humor nos salva de coisas tão mesquinhas).

Se achar não significa ser. Mas isso já é o suficiente para muita gente. Contentam-se em atuar de forma soberba em pequenos territórios, como se deles fossem.

Defendem cargos, postos e vínculos – mas não com o olhar de quem cuida, e, sim, de quem domina. Confundem-se com pequenas conquistas, perdem grandes oportunidades.

Tornam-se insuportáveis, evitáveis. Essa arrogância apaga qualquer carisma. Transformam-se naquela pessoa que é bonita, mas antipática. Rica, mas ostentadora. Sabida, mas chata. Poderosa, mas imprestável.

Cercando os soberbos, somente dois tipos de pessoas: os subalternos, que o admiram, e os oportunistas, que o invejam. Se são boas companhias? Fora delas, a solidão.

Em seu interior, percebem-se completamente desconectados desse “sucesso alcançado”. Nunca se satisfazem, vivem um vazio profundo. As glórias que buscam tentam, quase sempre, encobrir feridas profundas. É o analgésico que encontram para encobrir a dor que delas deriva.

A tristeza de ser assim geralmente bate quando se deparam com a transitoriedade das coisas. Sim, nada é para sempre. Nascemos em um mundo que já está pronto, e que carrega modelos. Ocupamo-nos de alguns deles. Quando vier a morte, um novo alguém assumirá tal função. Talvez melhor que nós mesmos.

Pensar assim não é subestimar a importância de cada um. Seria incoerente, uma vez que meu trabalho é, basicamente, fazer realçar a individualidade daqueles que me procuram. Em geral, a soberba não cabe naqueles que trazem consigo o compromisso do desenvolvimento.

Estes sabem que ser bem-sucedido não é só ter privilégios, mas principalmente responder a encargos mais sérios. Aprimorar-se naquilo que se destacam é uma meta repleta de significado, é realizar a própria vida. Querem ser lembrados pelo que foram capazes de transformar na terra, no outro. E não só por sua ambiciosa busca por alguma hegemonia.

Somos diferentes, apenas. Mas não superiores. A quem escala para se ver acima dos demais, um conselho: melhore. Se é para eternizar-se nas memórias do mundo, que seja de uma forma positiva, pelo que fez. E não por sua pretensão.

Psique: A vida não precisa estar ruim para que nos sintamos insatisfeitos

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A vida não precisa estar ruim para que nos sintamos insatisfeitos. Não carecemos de um problema exato, de um dilema identificado, de uma relação frustrada. Tudo pode estar nos eixos e, ainda assim, pairar uma sensação de estranhamento, de falta, de impertinência.

Depressão, a aposta óbvia, é o extremo patológico desse estado. Mas nem sempre chegamos a tanto: a vida está seguindo, funcionando, apesar do esvaziamento. Não se vê a solução num sedativo para o sofrimento. Aliás, sofrimento não é a melhor definição para aquilo que se sente.

Melancolia é o bom nome que os gregos criaram para definir esse estado: o veneno sombrio, a bílis da tristeza secretada pela alma. Ela escorre por nossos sonhos, alterando-lhes o sabor. O amargo afasta a doçura, deixa o paladar metálico, ríspido, pesado. Talvez daí venha o tal “gosto de cabo de guarda-chuva” – a metáfora para o estado melancólico da ressaca.

Nenhum afeto se apresenta sem um propósito maior. Existe em nós uma tendência quase compulsiva a querer correlacioná-lo a algum acontecimento exterior. Ignoramos, assim, que a dinâmica psíquica vai além de fatores sociais, relacionais e biológicos. Especialmente quando os isolamos para facilitar nossa observação.

A alma fala por uma linguagem própria, numa pertinência absurda. Chega a ser constrangedor quando, pela reflexão, conseguimos compreender algo que ela expressa. Constrange por percebermos que aquilo sempre esteve ali, só não éramos capazes de enxergar.

É como se, por um átimo, acessássemos todo o conhecimento do nosso universo particular. Em geral, a experiência mobiliza a ponto de alterar cursos e ritmos. Costuma colocar o trem novamente no trilho. Em alguns, é como se desesperasse ainda mais o maquinista: a vontade de agir faz com que ele descontrole ainda mais o manete. Imprevisibilidades da nossa mente.

A melancolia não escapa dessa regra. Se está ali, tem uma função – ainda que incompreendida. O mundo contemporâneo nega espaço a esta compreensão: não devemos perder tempo com aquilo que não afirma a produtividade, a forte atuação social e o sucesso.

Ignoramos que esse estado melancólico possa ser uma espécie de elaboração. É como um terreno que se prepara para a semente. A terra sendo remexida, a putrefação do adubo enriquecendo o solo, nascentes sendo desviadas para a irrigação. E o vazio desolador das covas nuas, vazias, à espera do que virá a brotar.

Suportar essa espera é um desafio, especialmente àqueles que “não têm tempo a perder”. Mas, para que sincronizemos relógios e calendários ao ritmo da alma, é preciso escutá-la. Reverenciá-la, até mesmo quando ela parece se esconder. Contentar-se com o mais sutil dos sinais que venha a oferecer, em vez de desejar que ela se manifeste algo arrebatador.

Nossa percepção é simplória demais para tudo aquilo que queremos saber. Assim, resta-nos confiar em um propósito maior, sempre que nosso eu se assemelha a um campo limpo. Concentrar-se na possibilidade, em vez da ausência. Somente assim teremos chance de acessar aquilo que é imenso e sublime em nós.

nivas gallo