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Psique: A maldição familiar dos pais que invejam os filhos

Crédito: Metrópoles/iStock

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Desde que Darwin defendeu a teoria da evolução das espécies, sabemos que os filhos tendem a ser melhores que seus pais. É instintivo, vai além de um simples desejo. No fundo, todo pai e toda mãe minimamente amorosos anseiam por esse mesmo ideal. Querem que seus descendentes cheguem aonde não conseguiram chegar, conquistem o que não conseguiram alcançar.

Mas, ao olharmos de perto, muitas vezes nos deparamos com histórias que contradizem esse argumento. As distorções são das mais variadas. Casos de pais que não aceitam filhos que vão além daquilo que são. Ou de filhos que se constrangem e boicotam chances de desenvolvimento. Enredos distorcidos, mas não incomuns.

Na verdade, são exemplos mais corriqueiros do que podemos imaginar. A família de origem é uma das instâncias mais importantes na constituição de um indivíduo. É ela que nos apresenta ao mundo e oferece as primeiras referências de quem somos. Ensinam sobre direitos, deveres, merecimento, responsabilidade, gratificação  e outro sem-números de lições que moldam a forma de como nos enxergamos e nos portamos no mundo.

Quanto mais distanciados estivermos da nossa natureza mais profunda, mais determinante será essa influência familiar: viveremos quase que para cumprir um script familiar preconcebido, que nem sempre (ou quase nunca) corresponde aos anseios da nossa alma.

Pais invejosos

Costuma ser na adolescência que o jovem ser começa a desconstruir os mitos familiares. Percebe que pode ser diferente e, muitas vezes, impõe-se para sê-lo. Faz despontar talentos, possibilidades até então não concebidas dentro de casa. Encontra-se num mundo maior, bem maior, do que aquele que lhe foi pintado.

É claro que isso pode incomodar os demais. Especialmente aqueles que se sentem frustrados, os que não se viram capazes de lutar por aquilo que gostariam de ser, que não escolheram bandeiras para levantar. Esses responderão com o limite autoritário, restritivo ao novo. Famílias são instituições assimétricas, e nesse caso os mais novos, que mais dependem, levam desvantagem.

O nome disso é inveja: se não pude ou não posso ter, você também não terá. Quase sempre, o corte não é feito de forma explícita. Adota-se a covardia da dissimulação, da manipulação emocional, da chantagem. E, pior ainda: da aniquilação da autonomia. Coloca-se o filho num lugar do incapaz, em vez de encorajá-lo aos desafios que a vida propõe.

Não é só mesquinho, é desumano. Anos depois, esses mesmo filhos serão adultos despreparados para viver, que sucumbem nos tropeços em vez de aprender com eles. Ou que lutam destemidos somente para provar a esses pais que são dignos de valor, de serem amados. É triste, limitante. Se existem maldições familiares, essa é uma das mais terríveis.

Filhos insatisfeitos

Sofrer esse tipo de desautorização para viver deixa marcas difíceis de serem reparadas. Além dessa busca massacrante pela perfeição, na tentativa de serem aceitos, os filhos podem se perceber eternamente insatisfeitos. Afinal, a ferida que tentam reparar não será sanada por cargos, salários, diplomas, aparências. Falta de amor e atenção só se cura com amor e atenção.

Talvez por isso, sintam uma enorme dificuldade de reconhecerem as próprias conquistas. Não se sentem adequados nas novas roupas: soam destoantes demais quando comparadas com as que foram vestidos pelos pais. O bom passa a se tornar duvidoso, supérfluo, embaraçoso.

No fundo, temem abandonar e serem abandonados, na medida em que deixam para trás as velhas expectativas parentais. Sentem-se culpados, pois queriam que todos pudessem evoluir juntos – mas nem sempre se perguntam se os demais querem e estão dispostos a crescer.

Nesse dilema, retirar-se e recolher os próprios talentos soa muito injusto. Até porque não será isso que sanará o olhar ressentido de quem não se realizou. Manter esse mecanismo de não sermos quem somos não afasta de nenhuma família essa maldição, e sim a perpetua. Às vezes, é o exemplo da nossa realização que alavanca e incentiva o crescimento do outro.

Psique: A culpa é da mãe e do pai. Mas a responsabilidade de viver bem é sua

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Funny family feet under the blanket

Já tive clientes que desistiram do processo da análise quando começaram a questionar figuras, até então, maravilhosas. Não queriam apagar a imagem heroica, cuidadosamente lapidada, que atribuíam aos pais. Sentiam-se culpados, pecadores. Também atendi pessoas que estavam no extremo oposto: lastimaram, por anos a fio, a família à qual pertencem. Atribuíam todo o insucesso que viviam àquilo que receberam em casa.

Com ambos os casos, agi como advogado do diabo. Ou seja, como analista, tomo partido de quem é acusado. E assim ajudei a destronar mães e pais perfeitos – e mostrar o quão são humanamente falhos, e, até mesmo, fieis contribuintes para as queixas dos meus clientes.

Em outros casos, pude mostrar como as queixas depositadas sobre pais soavam como uma autoindulgência rasteira, uma forma de transferir responsabilidades como estratégia infantil de evitar o compromisso com a vida.

O meu lugar em casa
De fato, as relações parentais têm grande influência na definição daquilo que somos. Aos que não nutrem a reflexão, será determinante: tenderemos a agir em correspondência direta aos scripts ditados pela família. A vida será apenas uma tentativa de atender os papeis e expectativas que nos são projetados, ou então de fugir dessas atribuições.

A companhia dos pais não cessará nem mesmo após a morte dos mesmos. O olhar repressor, a queixa manipuladora, as medidas de boas maneiras, o adjetivo incapacitante… Quem está sob esse enfado nunca está só: é como se, a cada passo, estivesse em constante avaliação dessas imagens parentais. Dita quem devemos ser, o caráter que devemos assumir, quais frustrações devemos reparar. É uma verdadeira maldição.

É libertador entender que nem toda herança que nos é oferecida precisa ser validada. Os pais tendem a transferir aos filhos aquilo que gostariam de ter vivido, mas não puderam. É uma pena, mas não somos os responsáveis pelas escolhas que fizeram, nem pelas circunstâncias que tiveram de enfrentar. A eles, uma constatação: a vida é limitada – e essa lei estava escrita antes mesmo do nascimento dos nossos ancestrais mais remotos. Conformemo-nos com isso.

Desenvolva-se
Cada ser humano tem pleno direito à individualidade. Isso significa que a ele é conferida a chance de desfrutar daquilo que é em sua essência. Seja isso semelhante ou contraditório ao que foi esperado pelos seus pais. Nem sempre isso é possível, justamente porque nenhum escravo é capaz de servir a dois senhores. Nesse caso, privilegie a alma – a sua, não a deles.

Desenvolver a consciência tem como pressuposto aprender a diferenciar-se do meio no qual está inserido. Em geral, a família é o ponto de partida. Não para transformar esse exercício em um muro das lamentações – acho improdutivo e enfadonho. Mas para que possamos perceber que a influência que nos foi transferida deverá ser encarada como uma referência. E que posso angariar outras referências ao longo da vida. Muitas vezes, até bem mais saudáveis que as originais.

Assim sendo, não precisamos encontrar justificativas e culpados para nossas angústias e limitações. Nossos pais são, e foram, somente aquilo que conseguiram ser.Assim como nós, diante da vida e dos nossos filhos. Amadurecer depende de uma postura reverente à nossa origem, mas assumida com desprendimento. Se permanecermos ancorados ali, jamais conseguiremos seguir em frente, traçar nosso próprio caminho.

Outras Ondas – A culpa que somos nós

Todo pensamento, desejo ou ação tem suas consequências. Toda negligência, também. Por muitas vezes, tentamos ignorar essa premissa de base. Mas ela também ignora essa nossa vontade. Funciona por si só. As consequências denunciam à consciência os erros cometidos na vida. Uma vez conscientes das falhas, brota na alma um dos sentimentos mais controversos que se pode cultivar: a culpa.

Podemos compará-la a uma espécie de cicatriz que inviabiliza a plenitude dos movimentos no presente. É o referencial de uma realidade mal sucedida que, na fantasia, deve ser reparada ou ressarcida para que a vida tenha continuidade. Uso deliberadamente o termo fantasia, pois tal reparação só poderá se dar no campo do imaginário. O tempo não permite um retrocesso para que tomemos a melhor atitude, para que evitemos o dano. Ou seja, a culpa aparece como um feto natimorto: apesar dos esforços gestacionais, não oferece nenhum alento ou capacidade de transformação. Apenas frustra, dói, imobiliza, cerceia.

A imagem de maternidade é interessante por diversos motivos. A começar, pois a marca primordial da culpa desponta no nascimento. As dores e restrições do parto (e do pós-parto) ensinam todo filho a assumir uma postura de dívida em relação à mãe, pela própria vida. Débito este que, a depender da maturidade materna, poderá ser amenizado ou agravado. Ademais, as questões de maternagem também acabam por ser uma fonte inesgotável para reforçar essa dinâmica. A culpa é da mãe, como nos ensina Freud, tem grande valia e se desdobra em diversas facetas: a culpa de uma suposta insuficiência no papel materno, a culpa que advém do vínculo simbiótico entre mãe-filho, a culpa da transferência da atenção devida à mãe para outros agentes, a culpa (do filho) por nunca conseguir restituir o esforços e a abnegação materna…

Podemos pensar nesse sentimento a partir de duas modalidades. A primeira é residual, herdada a partir dos valores aos quais fomos expostos e que nos condicionaram a partir das vivências familiares. Envolvem um complexo sistema de crenças, que envolve questões morais e religiosas. No desenvolvimento da personalidade, conseguimos até substituir parte dessas crenças – apesar de muito arraigadas. A outra classe de culpa é a que adquirimos a partir das nossas próprias escolhas, sendo assim autoimposta. Ou seja, é a traição ao que decidimos acreditar ou viver. E, como tal, pode propiciar um peso extra.

Culpamo-nos por aquilo que fizemos de errado, mas também por aquilo que os outros consideram como um erro. Ou seja, damos a permissão para sermos medidos com uma régua que não é a nossa, por parâmetros que não atendem minhas possibilidades, expectativas e potências. Pouco importa sobre a forma ou sobre a origem, toda culpa gera o mesmo mal estar. E, como tal, precisa ser interpretada como uma inutilidade.

Há quem pule para retrucar, dizendo que as experiências do passado são úteis para que não repitemos os mesmos erros. Concordo plenamente. Se há uma validade no que ficou para trás, será essa: o aprendizado, a chance de fazer diferente, de renovar-se. Mas isso não deve ser uma justificativa para que condicionemos nossos passos a uma realidade estagnada – ou, o que é pior, a algo que poderia ter existido, mas nunca existiu. Idealizar o passado ideal, as falas ideais, não nos afasta das consequências da precipitação ou do despreparo. Muitas vezes, em análise percebemos que o evento que gerou a culpa foi exatamente o que poderia ser naquelas circunstâncias. Ou seja, fazemos simplesmente o que conseguíamos fazer, fomos quem poderíamos ser. E ninguém pode ser acusado ou punido por ser insuficiente, desde que não haja a má fé.

(continua)

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