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Meia Um: Novos tempos, velhos dias

 

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 É estranha a surpresa que muitos demonstram ter ao se deparar com o fim do ano. Tentam crer que, num piscar de olhos, o tempo correu. Daí vêm Papai Noel, champanhe, flores no mar. Renovação de votos, demonstração dos carinhos contidos, planos a definir. Ah, os planos. Deles não há quem fuja. O período de encerramento inspira um quê de feitiço, de transformação instantânea da vida. Dezembro chega e se dá a largada na busca pelo balcão de recall da sorte. E quanto mais se envereda por esse caminho, maior a proximidade com o autoengano.

Acompanho de perto essa movimentação, no meu ofício de tarólogo e psicoterapeuta. Vejo pessoas em busca de soluções surpreendentes para questões que se arrastam anos a fio. Nessa peleja, sofrem exponencialmente os perfeccionistas e os ansiosos. Dedicados, vão querer quitar todos os débitos de vida adquiridos para começar o novo período zerado. Ou, preferencialmente, já no lucro. O bom futuro, feliz e livre do sofrimento, é a vontade de todos. No entanto, para garanti-lo, é necessário crescer o empenho no bem-viver do presente. Não é possível ignorar a realidade das coisas: o encadeamento dos fatos é o que nos conduz de u m lugar a outro.

A cada fim de ano, empilhamos uma série de procedimentos e posturas a reformar. Os mais sistemáticos fazem questão de encadeá-los em listas, devidamente esquecidas no fundo de alguma gaveta. Há também quem, nesse período, aproveite para revisitar os propósitos do ano passado. Muitos deles despertam um riso interno. Quanto foi caminhado até a concretização dos planos? Se algo não deu certo, de quem é a culpa? Os embargos foram resultados de ações de terceiros, de conspirações estelares ou de um baixo empenho diante do que foi almejado?

Nas mídias, estatísticas mostram que as histórias de superação dominam a preferência do público em geral nesse período. Todos querem conhecer alguém vindo de uma condição de vulnerabilidade, que, posteriormente, reverteu tal situação ao aproveitar a boa chance. Tais relatos são edificantes, é verdade. Podem inspirar ao embate, encorajar para a resolução dos problemas. Mas podem também servir a uma simplória compensação: “Eu sou feliz com a sua felicidade”. Ou, pior, despertar um sentimento de menor valia diante das próprias vulnerabilidades: “Quem me dera ter a mesma capacidade, assim resolveria minha vida”.

 Iludidos em nossos sonhos, à espera de soluções mágicas, adentramos na via régia da frustração. Ela tem, em sua marginal, a estrada da culpa. Mais cedo ou mais tarde, elas se encontrarão numa pista única. Viver bem, dentro das expectativas que planejamos, é resultado da responsabilidade. Quem não assume o posto de capitão da nau seguirá, mesmo que não queira, os desígnios alheios. O caminho de quem assume o papel de líder de si mesmo é estreito, desconfortável. Espelha o peso dos nossos atos, palavras e pensamentos – ou mesmo a ausência do fazer, do dizer e do refletir.

 Desejar é um impulso inerente ao humano. O problema está na escolha do que se quer: deve ser condizente com o meu tamanho, nem para maior, nem para menor. O exercício da decisão é, antes de qualquer coisa, fruto do autoconhecimento. Quem desconhece suas verdadeiras potencialidades e expectativas corre um grande risco de sonhar o sonho do outro, e de arcar com as consequências disso. Destituir-se da ilusão, e da culpabilidade, é um valor dos líderes natos. Daquelas pessoas que atraem a inveja pela “sorte” que têm.

 Nesse movimento, a passagem do ano soa como uma boa oportunidade de avaliação e não de prospecção.  A tal felicidade passa pela revisão de valores e pelo questionamento destes. Sem medo, pois há 50% de chance de que eles sejam corroborados sem prejuízo para o que é sonhado. Mas é preciso ser honesto consigo e com o que deseja. Afinal, os valores só existem no olho de quem olha – pergunte a um faminto se prefere um Monet a um banquete e entenderá a premissa.

 A tal felicidade é um estado efêmero, geralmente percebido quando se perde. Mas é com a atenção plena que cada um descobre o que pode aproximá-la de si. Nessa busca, esqueça de confiar na generosidade do tempo – ele é, na verdade, um deus impiedoso com quem o negligencia. E, infelizmente, tendemos à negligência. Para quem ainda me pede uma mandinga para o próximo dia 31, com o intuito de que todos os desejos se realizem a um passo, costumo prescrever: encare-se no espelho e diga “muito prazer”.

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