Self

Psique: Respeite o seu tempo (e o do outro)

 

Vivo lutando contra o tempo. É uma tarefa inglória: encaramo-nos fixamente, mas eu sempre pisco antes. E, ao abrir novamente os olhos, a realidade é outra. Eu sou outro. O momento passou e eu preciso me readaptar. Assim, vou vivendo.

Um cabelo branco a mais, um dia a menos. Um amigo se vai. Alguém ocupa o espaço vazio. Tudo é uma questão de tempo. A impermanência das coisas é a constatação de que o apego é uma tolice.

 

Fico mais confortável ao perceber que não estou sozinho nessa lida. Pessoas sentam diante de mim e, numa tentativa de aliança inútil, querem me convencer de que o tempo está sendo injusto com elas. Deveriam ter feito mais, amado mais, vivido mais. Travam embate com calendários e ponteiros.

Muitas vezes, ignoram que o mesmo tempo rege a si e o outro. Interpretam como se dias fossem medidas subjetivas, capazes de promover privilegiados e punir condenados. Ou tratam eles mesmos de valorizar mais seus minutos, depreciando as horas de seus semelhantes.

 

De fato, este deus é terrível. Exige reverências, mas não cede aos nossos caprichos. Precisamos aprender a conviver com aquilo que nos é imposto. Sem esse encontro pacífico com o tempo, não há como experimentar a adequação na vida.

Somos capazes de recuperar grande parte dos valores que nos são subtraídos no trajeto: postos, relações, crenças, poderes. O tempo, não. Ele vai e não volta. Costumamos tomar consciência disso quando parece ser tarde demais – muitas vezes, realmente é.

Nunca acreditei que o tempo corrige as coisas, resolve os problemas. Delegar uma resolução a ele é semelhante a transferi-la à morte: deteriora, atrofia, míngua. Vejo, nele, o velho Saturno com sua foice, disposto a ceifar aquilo que é devido. Especialmente, as nossas negligências e procrastinações. Primeiro, o compromisso e, depois, o prazer ensinam.

O culto do tempo pede fidelidade ao dia atual. Hoje: uma matéria tão óbvia, por ser a única verdade e, ao mesmo tempo, tão fugidia… Ficamos distraídos na gangorra oscilante entre o ontem e o amanhã, e esquecemos do que o presente nos chama a fazer.

Aceitar que tudo tem uma hora certa para começar, e terminar, é um desafio para todos. Seja para quem quer prorrogar momentos bons, ou adiantar o fim da dor. Essa inconformidade abrange grande parte do sofrimento humano.

O tempo é bom com quem sabe reconhecê-lo, a quem se adapta ao seu convívio sem teimosia. Um dia aprendo.

Psique: Suicídio não mata apenas uma pessoa, mata também familiares e amigos

crédito: Metrópoles/iStock

Grande parte dos nossos sofrimentos se atenuam quando são ditos. Essa é, inclusive, uma das premissas da psicoterapia: as palavras dão um novo corpo ao mal-estar que nos habita. E, à medida em que falamos, damos também voz àqueles personagens interiores que nem sempre encontram canais de expressão.

Desde 2014, temos no mês de setembro o marco para nomear um silêncio incômodo e altamente prejudicial: o suicídio. Encabeçada pelo Centro de Valorização da Vida, a campanha Setembro Amarelo visa sensibilizar a população a respeito desta que é uma das principais causas de morte no país – são 32 brasileiros a cada dia, mais que as vítimas de Aids e de muitos tipos de câncer.

Esse número é uma estatística fria para ilustrar uma realidade dolorosa. Um suicídio não mata uma pessoa. Mata várias. Dezenas. Familiares, amigos, meros conhecidos. Todos são atingidos por uma questão incompreensível, o tabu dentro do grande tabu humano: a morte.

Por esse motivo, a imagem do suicida perturba tanto: é um misto de pena profunda com raiva intensa. É difícil admitirmos o escape como uma saída, por representar uma falência diante dos propósitos da vida. É uma dor que contamina, enraíza, gera frutos. O maior deles: a culpa.

Quando acompanhamos de perto uma dessas histórias, vemos o impulso incontrolável dos que ficaram de tentar compreender, ou de apontar razões que teriam determinado a mais extremada das atitudes. E as respostas são vagas, subjetivas, insuficientes. Não teria como ser diferente.

O indivíduo que recorre ao suicídio sente que somente a morte é capaz de desatar o nó. Seja para exterminar ou apaziguar a angústia que o acompanha. Recorre a uma vivência concreta por lhe faltar a capacidade para promover uma morte simbólica.

O símbolo é o caminho encontrado pela psique para compreender, assimilar e transformar as nossas vivências. É a linha que conecta os pontos, que dá algum significado para aquilo que soa dissonante – até mesmo para as situações insuportáveis, os nossos traumas.

Entretanto, nem sempre esse mecanismo funciona plenamente. A nossa capacidade de significação, de produzir símbolos capazes saciar nossas inquietações pode ser perturbada por uma série de fatores: cerebrais, psíquicos, sociais, culturais. Nem todos suportam a pressão.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), nove a cada 10 suicídios seriam evitáveis caso o sujeito tivesse recebido a assistência necessária. É um número muito significativo, é muita tragédia que poderia ser evitada. Aí entra a função da escuta.

Falar, falar, falar. Até o esgotamento, até achar que não há mais nenhuma palavra a ser dita, ou lágrima a ser chorada. Jogar tudo sobre o tapete, tomar uma certa distância, e ver como as coisas se conectam. Atribuir emoções correspondentes, ver como tudo se contextualiza.

Tentamos assim encontrar um sentido na teia de linhas que se formam. E assim as mortes concretas se convertem em mortes simbólicas. Também conhecidas como transformações e, em muitos casos, na realização de si mesmo.

A prevenção do suicídio não é trabalho só para terapeutas e psiquiatras. É dever social de cidadão. Dialogar sobre o assunto ajuda a diminuir a mística que o envolve, além de abrir em nós os canais da empatia. Afinal, ninguém está a salvo de ser tocado pelos resultados desse silêncio nefasto.

Psique: Nascemos para morrer. Por que é tão difícil lidar com o fim?

Crédito: Metrópoles

A dark tunnel with light at the end.

A vida se dá na tensão entre dois opostos complementares: o nascer e o morrer. Nós, humanos, nos diferenciamos dos demais animais por termos consciência disso. Filosoficamente, ainda ensaiamos respostas precisas para os grandes mistérios indecifráveis (o chavão do “quem somos, de onde viemos, para onde vamos”). Mas, na prática, temos que lidar com essa realidade. Nascemos para morrer, essa é a nossa única certeza.

Vemos essa história se repetir desde que brotou essa consciência, isso nos é transmitido geração após geração. Fica difícil pensar que ainda não tenhamos aprendido a lidar com o encerramento das fases. E, de fato, não aprendemos. Sofremos um bocado para lidar com o desapego, somos bem inseguros ao olhar para frente.

Não é de hoje que se pensa sobre esse tema. Cerca de 500 anos antes de Cristo, o filósofo grego Heráclito de Éfeso já discutia a questão. Sua citação mais popular nos diz que ninguém pode se banhar duas vezes no mesmo rio. A cena jamais se repetiria, pois a pessoa já não seria a mesma; as águas originais também já teriam passado.

Vida é trânsito
Impermanência é o nome bonito que usaram para definir isso. Em diversas filosofias orientais, é tida como uma lei suprema. Entretanto, na situação contemporânea, evidencia um novo paradoxo do tempo. Somos cobrados a lidar com a celeridade das coisas, que se superam a cada momento. Descartamos diversas coisas com muita facilidade. Mas, quando há afeto envolvido, não conseguimos abandonar o passado em nome do novo.

Mera tolice. O futuro virá, independentemente da resistência. O passado não se atualizará, mesmo que eu busque cultuar emoções que o evoquem. Vida é trânsito. O percurso é o que interessa, pois ele representa o agora, a única realidade que podemos deter.

E esse será o único determinismo aceito, caso queiramos ter bem-estar. Quando nos fixamos numa situação estanque, querendo perpetuá-la a qualquer custo, assumimos o risco do empobrecimento. Quando restringimos nosso horizonte, ao renegar o novo, transformamos nossa vida em uma coisa menor, menos interessante.

Transformações exigem perdas
Tudo na natureza se expressa por um ciclo, com começo, meio e fim. A energia de renovação, que nos revitaliza, só pode se manifestar quando se assume a contrapartida da perda. Se não cedemos, não podemos suprir carências.

Associar a substituição do velho pelo novo aponta para uma fantasia de desamparo: não conseguimos acreditar que o futuro poderá suprir nossas necessidades. Ou que teremos recursos suficientes para lidar com os desafios que lá se apresentarão.

Irmanamo-nos com os problemas, como quem divide a casa com alguém inconveniente. Reclamamos do que temos, mas não empreendemos esforços para mudar nosso universo. E ainda desacreditamos os acenos da transformação.

Da mesma forma, tentar perpetuar um momento ou relação é limitar a nossa capacidade de transformação. O que me contempla hoje poderá ser insuficiente logo em seguida. Por isso, fazer compromissos é diferente de fazer pactos. Não podemos levar tão a sério as promessas eternas, uma vez que o eterno só existe na nossa fantasia. Em suma, estando você diante da maior das graças ou da mais terrível aflição, saiba: isso também vai passar.

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Outras Ondas* – Reflexões sobre a morte

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A próxima terça-feira será previsível para muitos: um dia de silêncio e orações, com a chuva miúda batendo na janela. Ano após ano, esta é a aura que envolve o dia de Finados, feriado cristão de préstimos aos mortos. Há quem prefira homenageá-los com velas e flores no cemitério. Outros oferecem somente preces e lembranças. Em comum, todos marcam a data com o recolhimento. Talvez pela dificuldade que temos em lidar com o tema: tão questionador à própria existência, tão delator de nossas vulnerabilidades.

O 2 de novembro foi designado como o dia de reverenciá-los no século 13, pela liderança da Igreja Católica, em virtude do Dia de Todos os Santos, comemorado na véspera. Primeiro se celebra aqueles que ascenderam aos céus pelos feitos na Terra e, em seguida, roga-se para que intercedam pelas almas dos pecadores.

Ao menos uma vez por ano, somos obrigados a encarar o poder absoluto da morte. Julgada como cruel, indolente e impiedosa, ela nos surge com sua face obscura e temida. Revela como certos valores não resistem à degradação imposta pelo tempo. Biologicamente, morrer é a simples cessão dos elementos vitais do corpo. Subjetivamente, é a exposição e a avaliação dos legados construídos e posturas adotadas em vida. O desenlace não é difícil. Complicado é encarar o fim e saber que, a partir de então, não há mais como mudar a imagem moldada dia após dia. Ou pior: é o medo de ser esquecido, mesmo diante de tantos esforços. Enxergamos como declínio da vida, e não como uma conclusão. Refletir sobre isso é a ocupação das filosofias e orientações religiosas. Platão já designava o conhecimento filosófico como um ensaio para a morte.

Temos nela a única certeza humana, e de essa consciência nos diferencia dos outros animais. Mesmo assim, não conseguimos superá-los com a racionalidade. Enquanto os bichos vivem o fim de forma natural, resistimos a aceitar essa finitude e tentamos driblá-la com a medicina – ignorando, até mesmo, os limites da dignidade quando submetemos entes mais queridos às massacrantes máquinas mantenedoras da vida. Relutamos a aprender a lidar com o inevitável. A dor de morrer é pequena. Grande é a dor imposta pelo desapego dos que ficam, pela adaptação necessária para se manterem neste mundo. O temor é tamanho que sequer falamos sobre o assunto. Falar em morte é chamar a morte, mau agouro.

Na cultura oriental, o culto corriqueiro aos ancestrais é uma forma equilibrada de lidar com essa dor. Nas casas, é comum encontrar um pequeno altar com fotografias e objetos de antepassados, acompanhados por velas, incensos e frutas. No respeito demonstrado com o ritual, querem evidenciar a crença na perpetuidade do espírito: o ente deixa o corpo, mas não deixa o seio familiar. No México também encontramos o dia de Finados como momento de comemoração. Túmulos são enfeitados com cores em excesso. Comidas se espalham entre sepulturas e fazem fartas as mesas das famílias. Crianças disputam guloseimas em formato de lápides e crânios. Um choque para todos nós, brasileiros, que normalmente fazemos questão de manter uma boa distância dos nossos mortos.

Também vem do México uma curiosa crença. Um dos símbolos do catolicismo popular do país é o culto à Santa Muerte. Lá, em vez de algoz, a morte é tida como uma intercessora, capaz de realizar pedidos, digna de veneração. A imagem é tétrica: uma mescla de esqueleto e Virgem Maria, com uma foice em uma das mãos e uma balança na outra. A ela são oferecidos flores, velas, bebidas alcoólicas e fumo. Apesar de reprimida pela Igreja Católica, a adoração desperta grandes festas e ocupa capelas espalhadas por diferentes cidades.

Por aqui, temos no espiritismo e nas religiões de matriz africana manifestações de um diálogo mais franco com a morte. No primeiro, pela crença da perpetuidade do espírito, comprovada pela comunicação deles com o mundo dos vivos. No linguajar dos espíritas, o “desencarne” não representa o fim, e sim uma interpretação de liberdade do corpo físico. No candomblé, os antepassados são reverenciados pelos adeptos na cerimônia do axexê, que só se completa 21 anos depois da data do óbito. Na religião, a grande senhora pode ser chamada de Iku ou Nanã Buruku – é a grande mãe terra, que recolhe os filhos ao ventre de onde foram gerados.

Entre os cristãos, é preciso lembrar que a missão de Jesus só se completou ao privar-se a vida, como qualquer homem. E foi nesse momento em que ele duvidou e sentiu medo: mas nem a santidade que lhe revestia foi capaz de poupá-lo de seu martírio.

Quando resistimos à ideia da morte não percebemos que ela é fundamental à existência. E é justamente essa a mensagem que ela nos ensina a partir do arcano número 13 do tarot. Quando esta carta nos chega, é sinal de que devemos provocar (ou aceitar) as mudanças propostas pela vida, mesmo que, para isso, seja preciso ceifar certezas vãs – certamente elas não serão mais úteis para nossa trajetória. James Hillman, psicólogo e analista junguiano, enxerga no sono uma contrapartida simbólica ao morrer. A cada fechar de olhos para dormir, vivemos o crepúsculo de acontecimentos e a sensação de solidão de quem vislumbra o desfecho da vida. Também nos deparamos com esse símbolo a cada decisão, a cada reflexão, em todo momento que precisamos abrir mão de uma realidade em para conquistar algo novo. E só assim promovemos a renovação necessária. Morrer é aprender o valor das transformações.

nivas gallo