Viver imprime marcas. Algumas, bastante agradáveis, como os vincos de um sorriso constante. Porém, na medida em que exercemos a humanidade, também sofremos impressões não tão agradáveis. Negações, repressões, cerceamento. Tudo isso provoca em nós a dor de viver num mundo permeado pela civilização. Customizam-se, como traumas, as tatuagens que carregamos na alma.
Jung ensina que todas as doenças, sendo elas físicas ou psíquicas, derivam da limitação imposta pela civilização. Desde o nascimento, aprendemos a conter o indesejável socialmente. Buscamos educar não só os sentidos do corpo físico, mas também os pensamentos e as emoções. Rechaçamos o quê instintivo que nos é natural – forçamos o esquecimento de que somos bichos civilizados, porém bichos. E, ao reprimir a natureza com tamanha ênfase, sofremos com o revés. Os valores contidos não se detêm por muito tempo nos porões da alma. Acabam por explodir em sintomas e, mesmo sem querer, expiamos a nossa bestialidade latente com a dor e o fel das doenças.
Não defendo aqui o primitivismo, nem nego os avanços da dita civilização. Afinal, essa contenção é imprescindível para que vivamos a coletividade, para que respeitemos os limites alheios. Só com ela ganhamos a razão necessária para que vivamos as nossas convicções de uma forma sadia. Entretanto, além de qualquer cultura ou civilização, encontramos na alma um cerne da perfeição original. Ela tentará o tempo inteiro compensar todos os exageros cometidos pela consciência. Assim sendo, quanto mais negarmos os elementos sombrios que nos compõem, numa tentativa vã de destacar somente a “beleza” e a “sabedoria” da consciência, mais estamos próximos de levar a rasteira que nos fará conhecer os manguezais da psique.
Por esse motivo, evadir-se do problema soa como uma atitude imbecil. Não dá para ter medo daquilo que nos constitui – por mais que esses valores inspirem vergonha, nojo ou raiva. Um dos melhores pontos de partida para esse trabalho é pensar: “Fui exatamente o que consegui ser naquela circunstância, quando ainda tinha uma visão limitada sobre mim, sobre os demais indivíduos e sobre o mundo que me cerca”. Não é simplesmente justificar que as coisas são como são, mas é desculpar a si próprio e às circunstâncias que inspiraram a atitude menos acertada. Devemos ser responsáveis por nossa sina.
Obviamente, podemos enxergar algumas cicatrizes que carregamos como resultado da ação de outras pessoas. É preciso ir além do ressentimento e buscar compreender que cada um é exatamente aquilo que tem condições de ser. A culpa não é minha, nem sua, nem de ninguém.
Certos ferimentos, quando não tratados com a atenção necessária, podem gerar sequelas. Num primeiro momento, descaracterizam a imagem que se carregava anteriormente. Podem até mesmo despertar a aversão diante dos demais. Um ferido precisa se reconhecer nesse novo papel – não para assumir uma vitimização, mas para buscar elementos que promovam a cura. Minhas feridas fazem parte do que eu sou neste momento, e cabe a mim buscar alternativas para que elas sarem com mais facilidade e com a menor limitação posterior. O tempo pode até curar tudo, mas a negligência fazer com que o ferimento cicatrize com distorções, impedindo os movimentos.
Após sofrer um baque, todo indivíduo precisa ter uma avaliação honesta de si mesmo. Em primeiro lugar, para saber se precisará de algum tipo de reabilitação para conseguir enfrentar as consequências do que foi vivido. Toda ferida gera uma cicatriz e é necessário saber reconhecer-se com cada nova marca. Intervir pela cura, em nome da felicidade, é uma obrigação de quem sofre.