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Psique: Quem é você na multidão quando alguém precisa de ajuda?

crédito: Metrópoles/iStock

Você já viu alguém ter uma crise convulsiva na rua? A cena desencadeia as mais distintas reações. Há quem deseja ajudar, os oportunistas, os desesperados, os curiosos criadores de tumulto e os indiferentes ao ocorrido. A minoria busca simplesmente amparar a pessoa até o fim dos espasmos.

Agora, imagine que o mundo vive um colapso semelhante. Um corpo se retorce por não conseguir abarcar toda a tensão imposta a ele. Catástrofes, guerras por poder, escassez de recursos. Tudo com muita gente ao redor sem fazer nada, mas excitados pela cena. Ficam cada vez mais próximos, roubando o ar do agonizante.

Percebo a realidade mais ou menos assim. E, sinceramente, não sei quem sou nessa multidão. Na semana passada, experimentei parte desse frenesi.

Na carona do dia 12 de outubro, publiquei aqui o texto “Esquecemos o maior valor da infância: a descoberta sem julgamentos”. O tema propunha o resgate da criança interior. Do primeiro ao último parágrafo, o artigo falava de como a manutenção de certos atributos infantis favorece a vida dos adultos.

Logo, o entendimento virou outro. Ao que parece, pessoas sentiram-se ofendidas com a ideia de uma “descoberta sem julgamentos” e passaram a atacar a publicação de forma muito odiosa. Inclusive, com injúrias. Alegavam a defesa da pedofilia pelo texto. Talvez um caso de analfabetismo funcional crônico − uma das chagas de nossa educação.

As opiniões faziam uma alusão clara aos escândalos envolvendo manifestações artísticas e nudismo. Não sou especialista em arte tão pouco em nu. Por isso, prefiro não me envolver na polêmica. Nesse assunto, sou quem reza enquanto a ambulância não chega, na torcida pelo doente (o mundo, no caso) recuperar-se logo.

Pessoalmente, foi mais uma boa dose (um tanto amarga, por sinal) na compreensão da força dos complexos. Quando ativados, eles cegam completamente a razão e o discernimento. Enxergamos por uma fresta e temos a certeza de enxergar o todo. Dotados de tamanha convicção, sentimo-nos aptos a atacar qualquer opinião diferente da nossa. Infelizmente, é assim.

O mundo está convulso. Nós reagimos muito mal a tudo. Gritamos recomendações do que deveria ser feito, sem termos a mínima perícia sobre o alardeamento. Prescrevemos soluções ultrapassadas aos problemas dos outros, sugestões incapazes de curarem nossas próprias feridas.

E assim deflagramos guerras, na tentativa de oferecermos uma alternativa mais eficaz às dores do mundo. No entanto, não percebermos o único remédio possível para isso: o autoconhecimento e a aceitação. Pois, como nos lembra Jung: “precisamos entender melhor a natureza humana, porque o único perigo real que existe é o próprio homem.

Todos querem um mundo melhor. Poucos querem melhorar.

Psique: Crise política: amor e poder não podem coexistir num mesmo ambiente

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Jung nos ensina que o amor e o poder não podem coexistir num mesmo ambiente. Sempre que as diferenças são ressaltadas numa espécie de qualificação, fica complicado ter uma atitude de aceitação, compreensão, inclusão, respeito. Seja por si, seja pelo outro.

Na clínica, vemos essa premissa ser aplicada nos mais diversos campos da existência humana: relações profissionais, conjugais, familiares, religiosas. O poder quase sempre é a base para o sofrimento, justamente por não dispor, ao outro, a capacidade de observar as diferenças de seu semelhante sem, com isso, ter de impor sobre ele uma cobrança, uma medição.

O momento político que atravessamos é um reflexo explícito disso. O poder chamou para perto, cada vez mais perto, o desamor. Chamou também a incapacidade de pertencimento, de unificação, de um propósito comum.

O vigente, ao que parece, é ganhar mais, para quem tem acesso aos dividendos e quer detê-los para se tornar ainda mais poderoso. Ou ter razão, para quem acompanha de longe e, iludido, sente-se no dever de defender algum possível injustiçado.

Independentemente do papel que se seja capaz de assumir, o que mais fica evidente é a incapacidade de empatia – a porta do amor. Especialmente com quem não tem condição de defender os próprios direitos, por ter a voz negada.

Não se fala mais nas intoxicações provocadas em Mariana, nem nas calamidades da seca no semiárido. Tampouco no travesti assassinado e ridicularizado no vídeo do WhatsApp. Nem no jovem negro, condenado como traficante a 11 anos de prisão por portar um frasco de desinfetante. Nem na criança morta pela falta de assistência médica.

E por que não? Esses nunca foram eleitos ao amor. Esses nunca preocuparam a sociedade – somente quando, de alguma forma, representam uma ameaça ao poder já alcançado. Amamos somente quem enxergamos, e esses só são vistos quando há alguma conveniência.

Estamos indignados com a falência dos nossos poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – por ainda acreditarmos que neles estaria a solução para nossas mazelas. De fato, nossa descrença maior está na capacidade transformadora do amor. Talvez por ainda associarmos a este afeto um tom meloso, em tons pastéis, um tanto passivo.

Amar o Brasil é mais que defender um partido político, uma ideologia, uma religião. Ou, até mesmo, o nosso território conquistado – seja ele um quadradinho ou um grande feudo. Para exercer esse amor, temos de estar dispostos a abraçar o sujo, o empoeirado, o enlameado, o desdentado.

Esses representam uma das grandes sombras que queremos evitar. Falam da rejeição, da falência, do insucesso, da senzala, do incapacitado, do doente, do imperfeito. Queremos consertá-los, num higienismo hipócrita de quem melhora a realidade usando a denegação: “Se eu fechar os olhos, o problema deixa de existir”.

E assim vemos cracolândias dispersadas, crimes indulgenciados por delação e o argumento de comparação do mal maior com o mal menor. No lugar disso, deveríamos simplesmente ouvir o velho Jung: “O melhor trabalho político, social e espiritual que podemos fazer é parar de projetar nossas sombras nos outros”.

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