Self

Outras Ondas – Os mil tons do masoquismo

Os punhos, imobilizados por uma gravata, situa Anastasia em estado de plena disponibilidade aos desejos de Grey. Enquanto tem os desejos estimulados por uma chibata, percorre suavemente o corpo, até que o suspense se faz: a excitação aumenta a cada segundo entre o momento em que o artefato se afasta do corpo, e quando a ele retorna, agora num golpe seco, definindo quem comanda a cena. Tudo se dá num clima de sedução e mistério, minucioso e envolvente. Vivem tal realidade como num jogo meticuloso, orientado pelo domínio e pela submissão. O clima erótico masoquista que envolve tais personagens arrebatou o mundo, primeiramente a partir do fenômeno editorial da trilogia Cinquenta tons… , escrito pela londrina E.L. James – os livros passam da marca de 100 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo, segundo informações da editora Vintage Books, dona dos direitos autorais da obra. Recentemente, o tema retorna à notoriedade a partir da adaptação do primeiro volume, Cinquenta tons de cinza, para o cinema.

Sem trocadilhos, o masoquismo domina a fantasia de homens e mulheres. Uma pesquisa britânica com mais de 19 mil pessoas mostrou que as fantasias sexuais que envolvem humilhação mobilizam 6% da população. Um percentual de 18% dos homens e 7% das mulheres ingleses (cerca de 5,85 milhões de pessoas) declarou se excitar com a ideia de bater em outra pessoa; 11% dos homens e 13% das mulheres fantasiam em apanhar durante o jogo erótico. É verdade que, em muitos casos, tudo fica num campo de idealização: poucos se identificam com a temática a ponto de leva-la à prática, com seus parceiros sexuais. E também não podemos ficar somente nessa nuance do masoquismo. Além do jogo erótico, ele atravessa diversas outras relações do cotidiano.

No entanto, essa estatística é defasada. Isso porque o contabilizado aí se refere apenas às práticas eróticas e sexuais. Podemos definir o masoquismo como uma dinâmica relacional, ou seja, uma espécie de molde de vínculo entre dois ou mais sujeitos, independentemente da natureza da relação. No caso, as relações de caráter masoquista se caracterizam pela associação entre amor/atenção/carinho/prazer com humilhação/desprezo/agressividade/dor. É uma espécie de distorção, pois depende do sofrimento para a realização da relação. Nessa dinâmica, os agentes se dividem entre masoquizantes (os ativos, que impõem, dominam, humilham) e masoquizados (os passivos, que se submetem, são humilhados). Esses papeis são bem estabelecidos, mas podem se alternar com a convivência. Mas nunca os participantes estão em pé de igualdade: são regidos pelo poder.

Isso faz com que o masoquismo não seja exclusividade dos casais. Ele também pode estar presentes em encontros de outra natureza: chefe e empregado, pai e filho, sacerdote e discípulo etc.. Cinquenta tons são insuficientes: são mais de mil nuances possíveis nessa forma de troca entre dois ou mais indivíduos.  Extremamente comprometidos entre si, os agentes da relação masoquista vivem sob uma espécie de contrato, tácito ou explícito, que delimita os papeis e as prioridades da relação. Relacionam-se de uma forma bem ritualizada, exclusiva, como quem segue scripts. Mantém entre si uma espécie de dependência afetiva, explicitado pelos jogos de manipulação retroalimentados pelos agentes, transformando a relação num elemento validador da existência.

Não visam a dor pura e simples, como pensam os leigos. Na verdade, entendem o sofrimento, a privação, a humilhação etc. como um caminho, um preço razoável a pagar para se sentir cotado, observado, inserido, desejado, querido. Negligenciam o respeito e o amor próprio como valores máximos, acima de qualquer relação. A motivação é uma espécie de carência, muitas vezes que não se conhece exatamente de que. O masoquista teme, antes de qualquer coisa, a perda: evita o distanciamento da fonte de nutrição afetiva e, em nome disso, rende-se ao desejo do outro. Diferentemente do que pensa a maioria, não existe o dito sadomasoquismo: apesar de ambas associarem dor e prazer, tratam de duas dinâmicas muito adversas entre si, impossíveis de funcionar como complementares.

Posso afirmar que, em maior ou menor grau, o masoquismo nos atravessa a todos. Num grau mais ameno, aparece como uma fantasia de imposição ou submissão. Em suas nuances mais escuras, tal necessidade transpõe os limites da razoabilidade, transformando-se numa exigência patológica, quando passa a assumir um caráter compulsivo que impede a realização de vínculos baseados em outras dinâmicas relacionais possíveis. Compromete assim a saúde global: física, moral, psíquica, social, relacional, familiar, econômica, espiritual.

As origens do masoquismo no psiquismo são múltiplas, mas em geral tem franca relação com a infância e as referências parentais, ou seja, com o modelo de relação apreendido dos pais e familiares próximos. Há também casos deflagrados por situações traumáticas, como sujeição a abusos – não exclusivamente de ordem sexual. Independentemente da origem, a situação original dá origem ao complexo masoquista, que tenderá a buscar situações que o corrobore. A depender do histórico e da estrutura, o indivíduo poderá assumir o papel ativo (que impõe) ou passivo (que se submete) na relação. Pode, inclusive, alternar entre essas duas vertentes, a depender do agente complementar que encontre. Por exemplo: impõe-se diante dos funcionários, mas age de forma submissa diante da mulher.

Ao entendermos o masoquismo como uma dinâmica relacional, não podemos considerá-la uma escolha ou eleição, e sim uma necessidade. Até mesmo entre os sujeitos identificados com essa dinâmica, ou seja, os consumidores de algemas e outros apetrechos de sexshops, percebe-se um conflito latente por estarem vinculados a tal vivência. O masoquismo surge como uma estratégia relacional pela ausência de outros referenciais mais saudáveis. Assim sendo, o masoquista não é alguém a quem cabe julgamentos morais ou sociais. Como qualquer ser humano, ele busca a sua realização, o seu ideal de felicidade, a partir dos recursos que conseguiu desenvolver para viver. Observa o mundo com sua óptica particular. A intervenção analítica/terapêutica se dá não com o intuito de cura, e sim de despertar a outras formas de relação possíveis. Dessa forma, pode reduzir os possíveis prejuízos ocasionados pelo masoquismo, pela ampliação da consciência, em nome do bem-estar.

Visto de perto, percebe-se no ato masoquista um escape para a saúde: ele surge na maioria das vezes como uma oportunidade de revisitar situações e temáticas mal assimiladas pela psique, com o intuito de dar a elas um novo significado. Assim sendo, seguem o impulso construtivo do Self, a nossa totalidade psíquica, que sempre aponta à autorrealização do indivíduo como alguém pertinente a si mesmo e pertencente ao sistema no qual se insere. Busca, com isso, nortear a um sentido para a existência.

Outras Ondas – Para o novo ano, eu desejo que todos…

 

 

Invistam mais em planos e menos em ilusões. São diversos os obstáculos que a vida nos oferece, assim como são inúmeros os recursos dos quais podemos nos valer para nossa realização. Nem tudo está sob nosso controle e poder de decisão, é verdade. Mas grande parte dos projetos que ficam para trás, no esquecimento, deriva da falta de perseverança. A dificuldade de esperar pelos bons resultados faz com que abortemos ideiais, traindo nossos sonhos. Acabamos por assumir um discurso conformista – ou, na pior das hipóteses, vitimário – para justificar aquilo que não se desenvolve. Fé e persistência são indispensáveis para a realização de qualquer propósito.

Priorizem relações e não idealizações. Ainda não encontramos uma medida adequada para lidar com as diversas possibilidades de comunicação do mundo contemporâneo. Muitas vezes, o mau uso faz com que o efeito seja reverso: em vez de aproximar, os novos canais de interação servem para isolar cada um em um universo particular. Desaprendemos o exercício da confiança, do contato direto, do olho no olho. E contentamo-nos com curtidas e comentários nas redes sociais. Esse universo reluzente, milimetricamente calculado para a beleza e para o acerto, pode induzir a uma visão distorcida do mundo e de nós mesmos, capaz de despertar terríveis consequências: aniquila a autoestima daqueles que se veem alijados do mundo da perfeição, levando-os ao isolamento ou a uma busca incessante pela perfeição. Encontre amigos, conheça gente, interaja. Nos contatos diretos, as pessoas podem ter muito mais a compartilhar.

Administrem melhor as emoções. Não determinamos aquilo que sentimos. O tempo inteiro, somos invadidos por uma gama de afetos, com intensidades variadas, que determinam nossa vida emocional. Na maioria das vezes, eles se apresentam sem ser chamados. Boas ou ruins de se sentir, as emoções determinam a forma como cada um de nós se relaciona consigo, com o outro e com o mundo. E o grande desafio é saber administrar aquilo que povoa minha alma. Culpar agentes por aquilo que sentimos é uma atitude primária, pueril: nada ou ninguém é responsável por aquilo que você sente, nem será capaz de atenuar sua condição. Também não tente resistir: as emoções tem sempre algo a ensinar, uma razão para se apresentar naquele determinado momento  e a hora certa de ir embora. Evitá-las é um exercício vazio e nocivo, pois pode despertar a tirania dos afetos, fazendo com que persistam e perturbem ainda mais, como uma visita desagradável quando é contrariada. Aprender a conviver com o que lhe atravessa é uma atitude libertadora, uma vez que evita vínculos perniciosos com as supostas origens do nosso sofrimento.

Cuidem mais de si próprios. Dedicar-se ao outro é um gesto grandioso, mas somente quando se dá de uma forma plena e desinteressada. Infelizmente, raro de acontecer. Na maioria das vezes, o cuidado é a linguagem adotada para determinar importância e despertar a necessidade de convivência no outro. Obviamente, poucos são os que agem dessa forma conscientemente, por maledicência. Usado erroneamente como expressão de amor e atenção, o cuidado acaba por retirar do outro a oportunidade de crescimento pelo erro. Quem cuida demais dos outros acaba por esquecer-se de si. E pode sofrer com a carência da desatenção: sente-se injustiçado, magoado, como se o mundo devesse restituir o tempo e a energia empregados. Não se trata de uma apologia ao egoísmo, mas é preciso saber equilibrar o olhar que temos sobre o outro com aquele que precisamos ter sobre nós mesmos, sob a pena de estarmos constantemente insatisfeitos com a realidade, frustrados por não sermos aquilo que desejamos ou de não termos no outro a recíproca da nossa entrega.

Transformem mais e desperdicem menos. A cultura vigente nos convida ao excesso. Consumimos compulsivamente tudo aquilo que nos é oferecido: bens, estética, informação, coisas gourmet, suplementos para o sucesso. A inovação nos imprime uma falsa ilusão de necessidade, sendo que, de fato, precisamos de muito pouco para viver. O resultado é uma espécie de irreverência diante daquilo que exprime tradição, do que é perene. Os valores se perdem quando a palavra “relicário” cai em desuso. Precisamos aprender a produzir menos lixo, menos toxinas, em todos os sentidos. Desafie-se a colocar para circulação tudo aquilo que não se faz mais pertinente em sua vida – dos armários às ideias. Não se trata de um gesto de generosidade, e sim de restituição ao mundo da energia que se mantém estagnada em si. Lembre-se que um peso morto dificulta o caminhar.

Vivam o presente. O passado não será alterado, por maior que seja a sua vontade. O futuro é uma possibilidade, à qual você poderá contribuir com seu envolvimento, mas que nunca será como o idealizado – pode ser melhor ou pior do que seus planos, a depender da forma como vê a vida. Da vida pregressa, retiramos a nostalgia do que foi bom, a melancolia do bom que poderia ter sido e a amargura do ruim que se teve. Do que vem à frente, emana o medo (quando não confiamos na nossa capacidade de reagir ao inesperado) ou a ansiedade (a vontade de vencer o tempo de maturação das coisas). O passado só nos trouxe até aqui. O futuro será determinado pelas escolhas que aqui fizermos. De fato, a única realidade que temos é a do agora. Presentificar-se é um desafio. De tão deslocados que estamos na linha do tempo, causa estranhamento tentar identificar as sensações, emoções, pensamentos e impressões que nos invadem no hoje, no já. Transformemos a atenção plena num exercício para desfrutar melhor daquilo que somos.

Outras Ondas: Como fazer um amor

Olhar, gostar, desejar, e, se houver correspondência, ficar, vincular, manter, aprofundar. Parece uma matemática simples, mas, na prática, desenvolver uma relação não é algo tão cartesiano assim. Deveria ser, mas não é. Temos uma tendência natural às complicações, uma vez que as nossas decisões são, na verdade, uma concessão realizada pelos complexos afetivos que nos constituem e povoam. Ou seja: nossas experiências acumuladas, e as devidas emoções a elas atribuídas, ditarão as formas como cada um conseguirá se relacionar. E cada psique vai operacionalizar a construção de um amor como um empreendimento particular.

Os mais desejados, e invejados, são aqueles ditos amores espontâneos: surgem de uma forma despretenciosa, mas, na medida em que se moldam, se transformam em obras inovadoras, criativas. São Monalisas, Guernicas, Girassóis, Nascimentos de Vênus: únicos, indiscutíveis, marcantes, definitivos, sem modelos nem ensaios nem comparações. Influenciam os demais, mesmo sem que se proponham a isso. Almejamos sempre obras primas, mas quase nunca somos capazes de produzi-las de fato.

No mundo contemporâneo, parece que a moda não é construir uma arte própria de amar – e sim lançar mão de algo que preencha as paredes da alma. Espalhamos pelas paredes uns Romeros Britos comprados em feiras de artesanato. Não por gostarmos deles, mas porque parecem que estão em alta. E também por atenderem o propósito de colorir a parede branca, que estampa a nossa angústia existencial. Somos fatalmente sozinhos, e, mesmo assim, tememos nos deparar com a nossa própria companhia. Preferimos vozes dissonantes e que pouco acrescentam, a ouvir aquilo que a alma ecoa. Em tempos em que tudo parece estar conectado, estamos cada vez mais desarticulados das nossas verdadeiras necessidades. E, consequentemente, perdemos a habilidade de cultivar amor.

Há também os amores artesanais, que vão sendo construídos aos poucos. Nutrimos expectativas em torno de seres, adornamo-nos com os nossos mais valorosos recursos, tentamos dar a eles as melhores características. Burilamos e entalhamos como uma peça da mais fina porcelana. Vemo-nos já em uma posição de destaque na nossa casa, como um vaso secular da Dinastia Ming. O preço da idealização é de, muitas vezes, ao colocarmos a peça no forno, encontramos um resultado muito diferente do imaginado: o calor mostrou que faltava amálgama à argila, revelando trincas e tortuosidades. Algumas vezes, ainda fazíamos como os antigos chineses, que preenchiam as fissuras com ouro, na tentativa de salvar o investimento valorizando-o ainda mais. Outras vezes, a própria peça não aceita tal intervenção, esfacelando por completo ao primeiro toque. Resta começar novamente.

Há ainda as relações patchwork, daquelas que tentamos articular peça por peça, encontrando nesse mosaico os fragmentos que mais ornam na constituição de uma harmonia. Sim, pois a perfeição não existe, temos de lidar com imperfeições que levam a um resultado aproximado, mas ainda distante daquele que idealizamos. Talvez, das técnicas, essa seja a que mais traduza a arte do amor possível, daquele que vivemos de fato, distante das idealizações ou negações excessivas. Feliz de quem encontra outras duas mãos dispostas a trabalhar com o mesmo propósito.

Triste mesmo é quem se vê inábil para qualquer tipo de construção: acham que toda e qualquer tentativa de obra sairá torta, errada, insuficiente, feia. Em geral, tem nessa forma de vida um desdobramento da história que viveram: sem boas referências, não foram estimulados a arriscar diante do outro e mantêm, num esboço mental, a nota de que nada de bom vingará. Temem as críticas do outro, a incapacidade de execução de uma obra iniciada, a falta de recursos para mantê-la em desenvolvimento. Afastam a possibilidade de desenvolver o talento de amar, uma vez que não se familiarizam com os pincéis da alma. Acabam por atrofiar as possibilidades, evadindo-se inclusive dos convites de quem se dispõe a conduzir-lhe a mão até que o traço se faça mais firme, mais seguro.

O velho Jung nos ensina que, no terreno do amor, o maior dos erros que podemos cometer é tentar manter uma relação experimental, como quem aposta pouco para não ter prejuízo. São palavras que adoro, e que tenho buscado entender, vivendo-as cada vez mais. Talvez por isso não tenho poupado matéria prima quando o assunto é amar. Tem sido um exercício de coragem.

“O amor tem mais que um ponto em comum com a convicção religiosa: exige uma aceitação incondicional e uma entrega total. Assim como o fiel que se entrega todo a seu Deus participa da manifestação da graça divina, também o amor só revela seus mais altos segredos e maravilhas àquele que é capaz de entrega total e de fidelidade ao sentimento. Pelo fato de isto ser muito difícil, poucos mortais podem orgulhar-se de tê-lo conseguido. Mas, por ser o amor devotado e fiel o mais belo, nunca se deveria procurar o que pode torna-lo fácil. Alguém que se apavora e recua diante da dificuldade do amor é péssimo cavaleiro de sua amada. O amor é como um Deus: ambos só se revelam aos seus mais bravos cavaleiros” (Civilização em transição, 2007, p. 108).

Correio Braziliense: No mundo dos sonhos

O Correio Braziliense me convidou para colaborar com uma reportagem sobre sonhos, para a Revista do Correio. Ficou assim (participações em negrito): 

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Eu sonho, tu sonhas…

Flávia Duarte

 

Falar de sonhos é entrar em um mundo impalpável. É tentar compreender um enredo cujo significado só faz sentido para o sonhador. Afinal, ele é personagem principal da história. Entrar na realidade aparentemente fictícia dos sonhos é correr o risco de se perder no caminho da superstição, dos mitos e das falsas interpretações. É visitar um local que só existe no cérebro de quem sonha e cuja existência é tão efêmera que, muitas vezes, nem o próprio criador lembra-se da criação onírica.

Cada vez mais, porém, deixa-se de lado o misticismo e acredita-se que os sonhos tenham papel importante na cura do corpo e da alma. Pesquisadores e cientistas se debruçam sobre os roteiros aparentemente sem sentido que aparecem durante a noite para entender o que se passa dentro dos indivíduos. Em Natal, por exemplo, o Instituto do Cérebro dedica-se a pesquisas para desvendar como os sonhos estão relacionados ao funcionamento físico do cérebro, inclusive como os relatos do que se pensou enquanto dormia podem confirmar diagnósticos de transtornos bipolares ou de esquizofrenia, por exemplo.

Terapeutas aprimoram cada vez mais as técnicas de análise dos sonhos para ajudar seus pacientes a resolverem traumas e conflitos internos. O médico Victor Dias, fundador e coordenador da Escola Paulista de Psicodrama, acaba de publicar um livro sobre o tema. Em Sonhos e símbolos na análise psicodramática, propõe dedicar-se ao material codificado que os sonhos apresentam para encontrar respostas para dramas pessoais.

O que não se nega é que o sonhar, desde a Antiguidade, desperta curiosidade e, quando acordados, há muitos séculos, os homens tentam atribuir a essa ação uma função. Os reis tinham interpretadores de sonhos. Oráculos capazes de desvendar as imagens que vinham à cabeça dos poderosos e tentar entender que mensagens elas traziam. As crianças da tribo Senoi, na Malásia, por exemplo, sempre tiveram o costume de relatar seus sonhos para os pais. A partir do que contavam, recebiam os conselhos dos mais velhos.

No século 2, Artemidoro de Daldis (veja quadro) ficou conhecido por ser um adivinho romano que tinha o dom de avaliar os avisos dados pelos sonhos. Em 1900, o psicanalista Sigmund Freud, ao lançar o livro A interpretação dos sonhos, declara oficialmente o material onírico como uma ferramenta de análise do subconsciente. Para ele, os sonhos não passavam de desejos reprimidos. Assim, o que não se podia fazer na vida real era realizado, sem culpas, pelo cérebro enquanto o corpo dormia. Em seguida, seu discípulo Carl Gustav Jung apresentou uma proposta menos limitada do sonhar. “Ele amplia essa visão e defende que os sonhos também têm uma função elucidatória, que fala o que está acontecendo na dinâmica psíquica e propõe soluções”, explica João Rafael Torres, psicoterapeuta e analista junguiano.

A partir deles, o mundo onírico se abriu. Atualmente, muitos são os terapeutas que não dispensam as mensagens sonhadas para entender a realidade vivida. O especialista em análise psicodramática Victor Dias compartilha a tese de que os sonhos são mensagens que o psiquismo manda para si mesmo. Na prática, funciona assim: algumas experiências e pensamentos não condizem com seu estilo de vida, valores e crenças. Assim, o cérebro mandaria todas essas informações para o que ele chama de zona de exclusão. Como defendia Jung, porém, a psique não se conforma com episódios mal resolvidos e encontra uma válvula de escape. E, durante os sonhos, avisa para a pessoa que ela precisa resolver certos incômodos aparentemente abafados, batizados pela psicologia de neuroses.

Por se tratar de um material negado, o recado não aparece escancarado. A solução é mandar mensagens simbólicas e, por tal razão, os sonhos, aparentemente, não têm sentido algum. “O psiquismo sai do impasse quando envia uma mensagem excluída para o eu consciente e, ao mesmo tempo, preserva o material negado que a pessoa não está em condição de aceitar”, explica o terapeuta.

Apesar da resistência em se conscientizar de certos recalques, ignorar um recado do inconsciente não seria uma boa ideia. São, supostamente, os conteúdos negados os responsáveis por tantos transtornos físicos e emocionais. Aí surge o desafio: se é uma mensagem cifrada, incompreensível inclusive para o paciente, como fazer para interpretá-la? Victor trabalha com a análise psicodramática dos sonhos. A proposta não é tentar fazer adivinhações e muito menos incorrer no erro de atribuir significados clichês aos elementos da história sonhada. A ideia é decodificar a mensagem aos poucos.

Para esclarecer, o terapeuta dá um exemplo. Uma mulher sonha que está sendo perseguida por um grande macaco peludo. Ela se sente amedrontada quando pensa na cena. O importante, para Victor, não é entender por que ela sonhou com um macaco, mas sim desvendar o porquê de ela ter produzido um contexto de perseguição. Assim, nos encontros com o terapeuta, o paciente é convidado a contar quais as situações da vida em que se sentiu da mesma maneira, acuado, com a sensação de ser vítima de uma outra pessoa mais forte.

Esse estímulo, o de pensar em momentos reais nos quais as mesmas emoções vieram à tona, produziria novos sonhos, e, aos poucos, seria possível compreender a mensagem que o inconsciente manda em doses homeopáticas por puro medo de a consciência rejeitá-la. “Na decodificação dos sonhos, você vai interpretar o mínimo possível e esperar os outros sonhos, em que os elementos irão se repetir até ir clareando”, explica o médico. “Não adianta perguntar o que significa o sonho. Se o paciente soubesse, o material não viria codificado. Por isso, atentamos para a sequência dos sonhos e a evolução da simbologia até ser integrada pelo eu consciente ou sofrer uma reparação dentro dos próprios sonhos”, afirma Victor.

No consultório do terapeuta Gisnaldo Amorim, quem não sonha não precisa nem entrar. Ali, nada é escolhido por acaso. Nem as janelas cobertas de tinta vermelha, com desenhos que sugerem uma casa, tampouco as mandalas coloridas espalhadas pelo corredor, que liga a sala de espera à sala de atendimento. Para o psicanalista, todas as imagens e cores inspiram os sonhos, assim como ajudam a interpretá-los. Para ajudar os pacientes, não abre mão de conhecer os elementos que invadem a mente deles durante o sono. Ele garante que, mais que do que se prender a conceitos estereotipados para compreender os símbolos oníricos, é preciso ter criatividade para ler a mensagem que o sonho quer mandar. Nesse caminho, é preciso atentar-se a todos os detalhes que aparecem na fantasia: as pessoas, os tons das roupas que elas usam, os objetos de cena, o local. Tudo pode dar um sinal do seu eu mais profundo e desconhecido.

“A primeira proposta ao tentar entender os sonhos é conhecer a si mesmo. O entendimento de nós mesmos permite transformar energias, inclusive quadros de doenças graves”, explica o profissional. “O segundo objetivo é melhorar nossas funções psicológicas, entre as quais se incluem pensamentos, sentimentos, intuições e sensações do corpo”, acrescenta Gisnaldo, que há quatro anos ministra o curso Alquimia dos sonhos, cuja proposta é ensinar os sonhadores a desvendarem o simbolismo dos comunicados oníricos.

Qualidade do sono, aliás, é um dos sinais que a terapeuta Wânia Alvarenga avalia para curar o corpo e a mente dos pacientes. No que considera o sono ideal — revigorante para os órgãos e para o equilíbrio das emoções —, o conteúdo dos sonhos é um quesito bem importante. Para deixar o sono mais saudável, Wânia diz que tudo pode interferir, a começar pelo colchão e pelo travesseiro que a pessoa escolhe, até mesmo os sonhos que ela terá. “Sustento que nós sonhamos para liberar as emoções. Quando o cérebro dorme, ele faz uma reparação física, além de liberar o estresse diário e as emoções”, define.

A terapeuta compartilha a crença de que os sonhos podem ser indícios de problemas físicos, uma forma de, sabiamente, o corpo encontrar caminhos para a autocura. Para exemplificar, Wânia cita o exemplo de uma criança que foi levada ao consultório dela pelos pais. O pequeno fazia xixi na cama enquanto dormia e a tentativa dos adultos era entender o porquê. A razão aparecia na forma de assustadores lobos. Explica-se: é que, muitas noites, o menino sonhava com os ferozes animais e de tanto medo não controlava a bexiga. A criança foi tratada pela sonhoterapia, técnica de melhorar o sono, para liberar a memória da emoção do pânico noturno. Se o menino não temesse mais os lobos quando eles aparecessem no sonho, não acordaria mais molhado. E deu certo. Wânia garante que provavelmente o menino não será mais atormentado pelas feras enquanto dorme.

“Sonho é uma fonte de compreensão de traumas. Também sugere distúrbios do sono e distúrbios emocionais. Uma pessoa que tem insônia, por exemplo, apresenta o sono leve e pode ter sonhos de ansiedade, de preocupação com o dia seguinte, de medo. Já os pesadelos podem ter a ver com síndrome do pânico, por exemplo”, explica a especialista. Por essa lógica, pessoas com problemas respiratórios não raro sonhariam com cenas dentro da água ou situações em que se sentiriam sufocadas.

Para tentar harmonizar as emoções e o corpo, Wânia usa um conjunto de técnicas, entre elas o teste muscular, em que a terapeuta estabelece conexão com o self do paciente por meio de respostas apresentadas pela tensão muscular do braço dele. A descrição parece complicada para o leigo, mas seria algo como se o corpo literalmente falasse, com movimentos leves do braço, e esclarecesse o que anda em desarmonia a ponto de provocar noites de sono ruins e sonhos piores ainda. “O corpo tem a sabedoria inata da autocura e algumas técnicas permitem reparar aspectos que estão em disfunção”, explica a psicóloga. “No início, a gente tratava a simbologia dos sonhos como clichê. Hoje, minha visão é mais holística. Você deixa que a inteligência da pessoa faça referência aos conflitos dela usando os símbolos. O cérebro sonha aquilo que o coração sente”, acrescenta.

 

Fique atento

– Faça um sonhário, um registro diário dos sonhos, que, por si só, já é um exercício terapêutico. Só de anotar as imagens, as ações, as sensações e as emoções experimentadas no mundo onírico, começamos a organizar os movimentos psíquicos.
– Compre um caderno exclusivo para essa finalidade e anote palavras chaves, sensações, desfechos dos quais se lembra. 
– Todos os elementos presentes num sonho (dos personagens aos objetos) não devem ter interpretação literal. Tudo faz parte de si e fala de você.
– Ao terminar o relato, tente fazer um exercício livre de associações entre aquilo que viu e as relações que se estabelecem com a sua vida.
– Não tente encerrar o conteúdo de um sonho atribuindo um significado único. Quanto mais múltiplo for o sentido, mais valia terá. Se achar interessante, escreva o resultado da amplificação abaixo do sonho.
– Em geral, todos os sonhos da mesma noite seguem uma temática comum e, depois de serem analisados individualmente, deverão ser observados como um conjunto conciso.
– Se não lembrar do que sonhou, não se aflija. Quanto mais você se esforçar, mais fácil vai ficar recordar dos sonhos com o tempo.

Fonte: Informações do site www.selfterapias.com.br

 

Autoconhecimento e premonição

Do que considera seu primeiro sonho premonitório ela se lembra bem. Tinha 17 anos, quando se viu, em seus pensamentos oníricos, carregando uma criança nos braços, enquanto tentava caminhar por um lamaçal. Ao fim do trajeto, deparava-se com uma água límpida. Era o final feliz de um percurso aparentemente difícil. Intrigada com o sonho, meses depois descobriu quem era aquele menino e que árduo trajeto seria aquele. Ana Lúcia estava grávida. Para ela, o sinal que recebeu enquanto dormia era anúncio da inesperada maternidade.”Sou neta de índio e de cigano.” Assim se apresenta Ana Lúcia Fernandes, 44 anos. A referência familiar é para dizer que ela traz na alma algo de místico, de vidente. De sonhadora também. Desde a adolescência, a funcionária pública recebe recados, sabe-se se lá de quem, enquanto dorme. Sonhar para ela virou uma via de comunicação com o futuro e com o próprio inconsciente.

Aos 19 anos, ela também sonhou que encontraria seu marido. O amor da vida logo apareceu. Três anos atrás, quando decidiu estudar para passar em concurso da Câmara, surgiu um anjo enquanto dormia, que logo profetizou: “A espera acabou”. Dias depois, saiu o resultado de sua aprovação na prova.

E assim ela segue sonhando. Quando Ana Lúcia fala dos sonhos, empolga-se. Gosta de contá-los para amigos, conhecidos e terapeutas. Descreve detalhes. Histórias longas, com começo, meio e fim. “São verdadeiras epopeias”, brinca. Tão rico o material onírico, que virou livro. A amiga Márcia Sabino se inspirou em um dos sonhos de Ana para escrever Audaces Fortuna Juvate — a sorte protege os audazes.

Mas ela própria tem seu livro de sonhos. Um sonhário, como chama. Anota todas as lembranças da noite ali. E interpreta a própria história. Sozinha ou com ajuda do psicanalista. Em uma dessas interpretações das mensagens simbólicas que recebe de si mesma, descobriu que precisava levar a vida com mais suavidade e feminilidade. “Eu sempre sonhava com uma cangaceira, que me dizia para ser muito forte”, conta. “Venho de uma família de três homens, trabalhava com gestão financeira, em um meio muito masculino. Descobri, por meio desse sonho, que me obrigava a ser dura, forte, como a cangaceira dizia.”

Feita essa análise, resolveu aliviar a dureza do braço com que conduzia a vida. Até o cabelo, antes curtinho, mais masculino, deixou crescer. O simbolismo do sonho manifestou-se igualmente de forma simbólica, em uma mudança na própria imagem de Ana Lúcia. “O sonho é uma conversa com você mesma”, diz ela, que aprendeu há tempos a se ouvir durante a noite.

 

E quem vai compreende-los?

Seja qual for a linha de tratametno que usa o material onírico como pista para se chegar a respostas por mais saúde física e equilíbrio mental, fato é que a psicanálise, desde o século passado, validou a tese de que os sonhos realmente são conteúdos pessoais e intransferíveis. Sendo tão autoral, só mesmo o responsável pelo enredo teria condições de traduzi-lo. nessa tentativa, o terapeuta assume o papel de facilitador e de investigador. é ele quem estimula a consciência do paciente a compreender os pensamentos enquanto se dorme.

A psicanalista junguiana Rosângela Macedo, analista clínica do Espaço Quíron, usa um cenário para tentar exemplificar o que acontece quando alguém sonha. Ela compara o psiquismo a um iceberg. A parte visível, que desponta do mar, seria aquilo do qual se tem consciência. Mas dentro da água há mais um pedaço enorme de gelo que não se pode ver a olho nu. Assim seria o inconsciente. Ele está lá, registra tudo o que vemos e sentimos, ainda que não se tenha noção de quanto material é guardado nessa verdadeira caixa-preta.

O sonho seria como um mergulho nessas águas, e uma porção do que estava escondido é visualizado de forma simbólica. Revestir traumas e situações em formas incompreensíveis a um primeiro olhar nada mais é que uma tentativa de esse subconsciente trazer à tona materiais excluídos pela consciência. E, para que não seja rejeitado mais uma vez, o jeito é exibi-lo aos pucos, com uma certa dose de fantasia e um tanto de alegoria.

“O sonho é um regulador psíquico que tem sempre uma funcionalidade (por que) e uma causalidade (para que), avisa Rosângela. “Cada sonho é um mito pessoal, uma nistória, uma lenda, um conto e traz um drama psíquico. Quando você os traduz, você gera autoconhecimento, um ego mais seguro. Aquilo que estava sombrio e escuro ganha luz e faz menos pressão”, explica.

Uma das formas de se chegar a alguma conclusão é o terapeuta questionar o significado pessoal e quais as experiências e os sentimentos que o paciente têm em relação aos elementos e às pessoas que aparecem nos sonhos. Figuras que te trazem sentimentos negativos e vivências assustadoras que reaparecem durante o sono podem ser sinal de que na vida real você esteja se sentindo da mesma maneira. “O sonho só tem valor para quem sonha. É um olhar de dentro para fora”, esclarece o psicoterapeuta e analista junguiano João Rafael Torres.

Por isso, ele sugere, antes de mais nada, que a pessoa que queira fazer uso dessa ferramenta de diagnóstico do inconsciente anote os sonhos em um caderno. Isso deve ser um exercício diário. Nem sempre a pessoa vai se lembrar dos sonhos, mas vale anotar os resquícios de imagens e de sensações que vieram à tona. Nesse ponto, é importante lembrar que tudo que está no sonho se relaciona exclusivamente ao sonhador. Assim, sonhar com outra pessoa não quer dizer que você precisa dar um recado a ela, mas precisa entender o que as características dela, do comportamento e do papel que ela exerce, ou exerceu na sua vida, significam para você.

Depois, é hora de, com a ajuda do terapeuta, especialmente no início, associar aqueles elementos com a vida real e tentar entender a função daquele filme produzido na psique. O analista explica que os sonhos têm várias funções: compensatória, para o ego resolver o que não consegue resolver na vida real; elucidatória, para esclarecer o que está acontecendo na dinâmica psíquica. Além disso, o sonho tem uma função educativa e poderia ser visto como um canal de educação do que deve ser feito ou não.

Com esse material literalmente nas mãos, é hora de começar a desvendar os mistérios da própria alma. No meio do caminho, o sonhador vai enxergar falhas, enfrentar medos e reconstruir conceitos. “Todos os dias, tiramos uma foto de como está nossa dinâmica psíquica, mas quem vai definir se vamos ou não abrir o álbum é o ego, o eu”, resume João Rafael.

 

Entrevista: Sidarta Ribeiro

Como as pesquisas em ratos podem desvendar a função dos sonhos?

As pesquisas com ratos servem para estudar os mecanismos eletrofisiológicos e moleculares responsáveis pelo papel benéfico do sono no aprendizado. Para estudar sonhos humanos, fazemos registros eletroencefalográficos de pessoas expostas a estímulos (imagens, videogames) e, depois, imagens durante o sono. buscamos encontrar relações quantitativas entre o conteúdo dos sonhos e os padrões de ativação cerebral durante fases específicas do sono.

Com que propósitos vocês se dedicam a pesquisas com essa temática?

Estamos interessados na análise matemática de relatos verbais dos sonhos de pacientes psiquiátricos ou neurológicos para realizar diagnósticos diferenciais. Também perseguimos uma linha de pesquisa aplicada sobre o impacto do sono pós-aula no aprendizado escolar. Temos ainda uma linha de pesquisa estritamente comportamental sobre comunicação vocal, para explorar os limites da simbolização em primatas não humanos.

O que acontece no cérebro quando sonhamos?

Diversas regiões corticais e subcorticais são bombardeadas por neurônios localizados em regiões mais profundas do cérebro, causando uma reverberação vívida de memórias previamente adquiridas. O envolvimento da área tegmentar ventral, que libera dopamina em circuitos relacionados com a busca de recompensas e a evitação de punição, faz do sonho mais do que uma simples reverberação de fragmentos recombinados de memórias: os sonhos são movidos por nossos desejos, como postulou Freud, representando simulações de comportamentos adaptativos (a se copiar na vida real) ou de comportamentos não adaptativos (a se evitar na vida real).

Será possível um dia compreender pela ciência o conteúdo dos sonhos ou será sempre um papel da psicanálise?

Embora já seja possível decodificar sonhos usando ressonância magnética funcional, isto é feito com precisão muito baixa. Provavelmente, a técnica vai evoluir muito no futuro próximo, mas não acredito que ela se livrará da subjetividade inerente à interpretação dos sonhos. O conteúdo dos sonhos só faz sentido para o sonhador e seus eventuais interlocutores íntimos, como, por exemplo, a figura do psicanalista. Não acredito que a compreensão do sonho ou qualquer outro aspecto da consciência humana pode se valer de um atalho biológico que exclua a subjetivação psicológica.

Por que alguns se lembram mais dos sonhos que outros?

Todas as pessoas sadias sem lesões cerebrais sonham, mas poucas se lembram disso. As pessoas que relatam não ter sonhos, quando investigadas num laboratório de sono e despertadas durante uma fase específica do sono em que ocorrem movimentos oculares rápidos, normalmente relatam sonhos. Com os sonhos, existe uma grande queda na liberação do neurotransmissor noradrenalina, que está envolvido no processo atencional e na formação de memórias duradouras. Quando despertamos, o nível de noradrenalina sobe rapidamente, mas se a pessoa não mentaliza o conteúdo do sonho e rapidamente se engaja em outras atividades, o conteúdo do sonho se perde.

Os sonhos são importantes para o aprendizado?

Existem evidências abundantes do papel do sono na consolidação do aprendizado, embora identificado há mais de 100 por psicólogos como Carl Jung, só teve a primeira evidência experimental em 2011, com a publicação de um estudo do grupo da Robert Stickgold, da Universidade de Harvard. Ele mostrou que o aprendizado da navegação de um labirinto virtual foi muito maior em pessoas que sonharam do que em pessoas que não sonharam. Ainda há muito a descobrir no que diz respeito ao papel dos sonhos para a cognição.

Como vocês conseguem confirmar diagnósticos de bipolaridade e esquizofrenia por meio de sonhos?

Em colaboração com o professor Mauro Copelli, da UFPE, demonstramos que relatos de sonhos de pacientes psicóticos permitem diferenciar pacientes esquizofrênicos, bipolares e indivíduos sadios. Isso é possível porque existem diferenças estruturais grandes entre os relatos verbais desses grupos. Em colaboração com o professor Leandro Malloy-Diniz, da UFMG, usamos técnica semelhante para diferenciar pacientes com Alzheimer de pacientes com transtorno cognitivo leve.

 

Aprendizado constante

No começo, a estudante Cibele Pereira, 25 anos, temia os próprios sonhos. Achava que, se ousasse interpretá-los, eles teriam o atrevimento de se tornarem realidade. Quando um conhecido aparecia nos pensamentos noturnos, ela logo achava que tinha alguma mensagem a dar ou a receber daquela pessoa. Aos poucos, porém, descobriu que as figuras do sonho, fossem protagonistas ou figurantes, sempre querem dizer algo de si próprios. “Vejo o sonho como um autoconhecimento, o que vou sonhar são coisas só minhas. Sou eu falando comigo mesma. A gente tenta dar ouvido para si mesma, como se fôssemos duas pessoas”, explica. Agora, quando sonha com alguém, o exercício é avaliar o que aquela pessoa significou em sua vida. É um bom começo para decifrar por que um personagem específico apareceu nos sonhos dela.

Nesse papo tão particular, Cibele deixou a superstição de lado e passou a procurar indícios de sua própria personalidade em conteúdos tão impalpáveis. Na terapia, entendeu que aqueles sonhos insistentes, em que sempre aparecia discutindo com uma pessoa mais velha, dizia muito sobre seu comportamento na rotina desperta. Cibele tinha problemas com autoridade. Considerava que os de mais idade são figuras inquestionáveis e, portanto, alguém cujas opiniões e posicionamentos não se poderiam contrariar.

Pelos sonhos, entendeu que podia se posicionar, ainda que o interlocutor tivesse mais idade. “Isso fez melhorar muito meu relacionamento com minha mãe, por exemplo”, considera. Pela mesma via, compreendeu que precisava expor seus sentimentos com mais naturalidade. Quem reforçou esse comportamento que as amigas próximas já percebiam foi o inconsciente. Nos sonhos, Cibele, muitas vezes, aparecia segurando o choro. Igualzinho como faz com suas emoções.

“Por isso, procuro anotar os sonhos e depois os analiso. Eles fazem com que eu pense sobre certos assuntos e tiro uma conclusão aqui, outra ali. Alguns sonhos hoje apresentam temas com menos força, o que significa que já superei algumas questões”, comenta. “Mas também não fico paranoica de que todo sonho diz alguma coisa”, pondera a moça.

 

 

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A reportagem também está disponível no site da Revista.


Artigo: A anorexia e seu demoníaco maternal

O artigo científico abaixo foi produzido em parceria com a psicóloga Maria da Guia Ramos, como atividade integrante à especialização em Psicossomática, pelo Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, em 0utubro de 2013. 

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A ANOREXIA E SEU DEMONÍACO MATERNAL

 

João Rafael Torres

Maria da Guia Ramos

O conceito de beleza se encontra intimamente ligado ao conceito de perfeição. E os limites estéticos estabelecidos pela sociedade contemporânea têm se apresentado cada vez mais rígidos, privilegiando um padrão de aceitação constituído por mulheres magras e atléticas e homens fortes e corpulentos. Sob essa óptica, o indivíduo perde a referência de valores próprios e sofre com a debilidade de uma identidade, tornando-se altamente vulnerável ao meio. No culto ao corpo, a relação com a alimentação é revalorada: transcende a função de nutrição e promoção de saúde, passando a ser objeto de excessiva preocupação, controle, recompensa, traição etc.. Ocupa, assim, com mais vigor um signo de tradução psíquica, especialmente das problemáticas existentes no campo do psiquismo.

Em O ego e o id, Freud lembra que os investimentos libidinais no próprio corpo são a base do narcisismo, um dos temas centrais que norteiam nossa sociedade e valores culturais atuais. Como fator constituinte da personalidade, a maneira pela qual cada indivíduo vive o narcisismo será determinante para a estruturação egoica e para a formação de sintomas corpóreos (REGO, M.G.S., in BUSSE, 2004, p. 121).

Alheio à própria existência, o indivíduo passa a viver em busca da perfeição, sem perceber que caminha na contramão da realidade humana, negando sua condição de potencialidades e limitações. Nesse campo, a supervalorização das imagens e impressões superficiais, residentes apenas na dimensão e nos valores do corpo, torna-se fonte de um exibicionismo exacerbado, perdido, coletivo, que gera frustrações e produz sérios desconfortos emocionais. E, ao perceber que a imagem buscada não é encontrada, ou não sacia o esvaziamento interior que o coloca em crise, surge o inconformismo com a realidade da imperfeição humana. E daí decorrem os quadros neuróticos, como os distúrbios de autoimagem – a porta para os transtornos alimentares, um mal epidêmico no mundo contemporâneo. Destacam-se, entre eles, a obesidade, a bulimia nervosa, a vigorexia e a anorexia nervosa, objeto deste estudo.

A anorexia nervosa é um transtorno alimentar, cujo quadro psicopatológico consiste na representação alterada da forma corporal, associada a uma preocupação excessiva com o peso e o medo patológico de engordar. Em geral, suas primeiras manifestações se apresentam na fase transitória entre infância e adolescência, fase do desenvolvimento da personalidade onde se percebe a necessidade de negação dos vínculos parentais de infância, para uma autoafirmação como indivíduo independente da família de origem. Sem um lastro egóico bem constituído, o adolescente busca referências em padrões ditados por modismos, distante de referenciais de razoabilidade. Enxerga os próprios valores com lentes míopes e, sem ter estrutura para uma diferenciação entre o simbólico e o concreto, acaba por transpor tal distorção para a imagem que vê refletida no espelho.

O transtorno anoréxico consiste em restrição dietética progressiva e eliminação de alimentos da dieta, atingindo o limite extremo na recusa em alimentar-se. Pode estar associado ou não a outros comportamentos para a manutenção do peso, como o uso de métodos de expurgo (laxantes ou induções ao vômito) e a prática excessiva de exercícios físicos, com a finalidade de eliminar as calorias ingeridas nas refeições.

Diversas escolas de estudo da psique humana, entre elas a Psicologia Analítica, apontam para um aspecto importante do papel materno: a relação estabelecida entre mãe e filho, nos primeiros anos de vida, determinará a forma como este perceberá a si próprio e o mundo que o cerca. Num primeiro momento do desenvolvimento da personalidade, a mãe atuará como veículo para promover o Self infantil, uma vez que o bebê não dispõe de recursos internos suficientes para atender suas necessidades básicas.

O estudo das relações objetais, responsável por disseminar essa concepção, também aponta que a falha básica, reside na relação íntima pais-filhos, na qual foi dada pouca atenção às necessidades e desejos da criança, podendo gerar, no menor, diversos transtornos perceptivos e conceituais. A falha em tal mecanismo também definirá a capacidade de resiliência do novo indivíduo: a capacidade de se frustrar e tolerar a frustração, o enfrentamento às adversidades apresentadas pelo mundo, o grau de confiança em si e nos demais etc. Desse contexto, surge uma criança insegura, vulnerável, que se vê diante da necessidade de acionar precocemente o instinto de autopreservação e desenvolver mecanismos de defesa, que substitua a segurança da mãe.

O indivíduo que não experimentou o amor como fluido fundamental tenderá a assumir uma tônica afetiva conduzida pelo medo e pela necessidade ilusória do controle. Essas são temáticas essenciais nos mecanismos compulsivos, assumidos sob a forma de quadros neuróticos ou psicóticos. “A criança à qual não se permite viver os seus próprios ritmos espontâneos desenvolve um ritmo petrificador do poder dos seus próprios instintos, visto estar apartada do seu próprio Ser interior, e, portanto, distante da realidade da vida” (WOODMAN, 1991, p. 110). Esses são indivíduos que, em geral, se tornam despreparados para lidar adequadamente com novas experiências e expectativas e que, diante de tais desafios, expressam suas necessidades inconscientes a partir de ricas sintomatologias.

Entendido como um movimento neurótico, o transtorno alimentar assume características psicossomáticas, ou seja, uma tradução dos conflitos psíquicos que não ganharam elaboração e ressignificação a partir da linguagem dos sintomas corporais. Jung defendeu esse aspecto psicóide do sintoma, ao perceber que “os mais assustadores e compulsivos sintomas psíquicos contêm, frequentemente, objetivos e propósitos específicos” (MINDELL, 1989, p. 16), na medida em que “matéria e psique parecem estar em constante união nos fenômenos do corpo onírico, e aparecem separadas apenas quando consideramos conscientemente sonhos, sintomas ou sincronicidades surpreendentes” (ibid., p. 156).

Woodman (1991) acredita que “a vida não vivida dos pais pode se manifestar na filha mediante algum tipo de distúrbio de alimentação” (p. 130). A anorexia pode ser interpretada, desta forma, como uma expressão de um dano psíquico familiar, uma vez que percebe-se nitidamente, a partir da experiência clínica, que a patologia deriva de um caráter simbiótico e destrutivo na relação mãe-filha, assim como assinala Spgnesi (1992): “a mãe da anoréxica é dominadora, exigente, frustrada e ambiciosa” (p. 44). Alheias às questões da própria feminilidade, e francamente associadas aos valores do masculino, muitas vezes tais mães alimentam as filhas com uma espécie de “nutrição imprópria”, orientada pelas “necessidades, desejos e ambições não realizadas” (ibid., p.45).

Quando convertida em anorexia, a inadequação de maternagem é geralmente provocada pela insuficiência. “Inconscientemente, a criança foi rejeitada pela mãe; portanto, ela não é uma pessoa, mas uma coisa” (WOODMAN, 2002, p. 94). Essa desumanização se reflete na dificuldade de reconhecer a própria identidade e opinião, revertida numa espécie de dependência da afirmação e aprovação do outro. Possivelmente, derive daí o quesito de transtorno de autoimagem que acomete as vítimas do transtorno alimentar. A menina torna-se um objeto psiquicamente indefeso e manipulável: busca ser a “boa filha” da “mãe perfeita”, a quem precisa prontamente agradar, atendendo-lhe as expectativas imaginadas. “É como se o corpo não fizesse parte do self das anoréxicas, mas pertencesse a seus pais, não havendo individualidade própria para essas meninas”, (BUSSE, 2004, p. 53). Mas, para cumprir tal compromisso, o faz de uma forma excessivamente rigorosa e controladora: compulsivamente, tenta se impor sobre as circunstâncias vitais, a começar pela alimentação, e colateralmente, as relações interpessoais. Aos poucos, bane o prazer, em nome do poder que, ilusoriamente, esse controle oferece.

Woodman defende que uma mãe que nega a sua essência feminina, vinda do corpo, não terá condições plenas para transmitir à filha “o sentido de harmonia com o Self e com o universo, que é fundamental para o sentido ulterior de totalidade” (1991, p. 109, grifo da autora). Sem essa referência de conforto e acolhida à própria natureza, a criança dificilmente conseguirá reconhecer em si a valia, impedindo assim o alicerçar seguro da estrutura egoica. E “sobre tão frágil alicerce será construída uma sobre-estrutura rígida, baseada em valores coletivos: disciplina, eficiência, dever. A energia que quer fluir no criar, no viver, no brincar, é forçada a encontrar saída em compulsões cegas” (2002, p. 118).

Associando a si própria como um fracasso da mãe, e com baixa capacidade para simbolizar os aspectos da existência, a criança poderá viver uma busca por uma perfeição que compense sua frustração. Assim, o desencadear da anorexia nervosa registra a negação do corpo (o eu), negligenciado desde os primeiros momentos de vida, através da imagem internalizada da figura materna, facetando o feminino não reconhecido nela e por ela. Nesse sentido, a recusa da anoréxica em relação à comida ultrapassa o âmbito da alimentação, significando uma tentativa de sublimar o corpo e suas exigências. A patologia assume assim uma espécie de missão espiritual de limpeza, muitas vezes associado ao asco e pavor desenvolvidos em torno da comida, da gordura, da proximidade e do contato com o outro.

Manifestado principalmente nos primeiros anos da adolescente, o transtorno alimentar impede também a realização da sexualidade latente – interpretada como uma ameaça biopsíquica, na medida em que pode separa-la do papel de filha. Busse (2004, cf. p. 54) ressalta que o emagrecimento intenso da anoréxica a destitui das formas arredondadas que marcam o corpo feminino, objetivando uma assexuação que as cristaliza na fase infantil. Mesmo naquelas que desenvolvem a anorexia nervosa após a fase adulta, a falta de nutrientes e perda de peso ocasionam um prejuízo no ciclo menstrual, impedindo a concepção e a gestação. O autor associa o medo de que o alimento provoque o aumento da barriga a uma possível dificuldade de assumir o papel de mãe. “Os conflitos existentes entre mãe e filha mobilizam a anoréxica a não introjetar a figura feminina adulta (mãe), vista como negativa, e o desejo de não copia-la.” (ibid.)

Nos estágios mais avançados de inanição da anoréxica, a presença da autonomia e ausência de ansiedade se deve ao vínculo simbiótico que ela estabelece com a mãe. “Vivem como se estivessem ainda inconscientemente unidas a uma mãe nutridora mantendo uma insistência ilusória que são suas próprias provedoras e, por isso, não dependem de suprimentos de alimento real” (SPGNESI, 1992, p. 45). Nesse estágio, ignoram a possibilidade da morte, já que o fantasma que as perturbam é a própria incapacidade de lidar com a vida.

A psicossomática preconiza que o sintoma físico é uma representação simbólica de um conflito que não ganhou uma significação elaborada na psique. É um símbolo, que evoca a fusão entre o eu e o inconsciente, entre o ego e a sombra, na polarização de opostos etc.. Inclusive, a supressão dos sintomas físicos, sem uma devida compreensão do conteúdo que ele representa, pode ser inútil ou até mesmo nociva, vista a função compensatória desempenhada pelos mesmos.  Mindlell (1989) explica que “os sintomas aparecem como doenças apenas para a consciência”, enquanto o inconsciente os vê como “parte natural do processo onírico” (p. 168).

Existem casos nos quais o corpo até acusa a consciência de “causar” a doença, por manter atitudes de cura racionais desvinculadas que isolam o corpo do resto da personalidade. A “cura” pode ser uma atitude potencialmente destrutiva, por não escutar os distúrbios ou considera-los como sinais patológicos, pode força-los a se amplificarem a fim de serem levados em conta (ibid.).

 É o caso de Alice (nome fictício). Aos 27 anos, ela submeteu-se à cirurgia bariátrica, como estratégia para combater uma obesidade mórbida. Imatura e ansiosa, demonstrava reservas sobre a intimidade, com dificuldade de vinculação e enfrentamento. Após o procedimento, desenvolveu um quadro de preocupação excessiva com a perda do peso e manutenção do mesmo. Três anos após a cirurgia, ela retorna ao atendimento clínico com quadro de anorexia nervosa: além de uma grande dificuldade para ingerir alimentos, mantinha-se angustiada quando comia. Sentia-se “envenenada” e provocava vômitos. O quadro desenvolveu nela um misto de apatia, diante dos afazeres, e agressividade, para com os familiares que tentavam força-la a comer.

Durante o processo de análise, Alice revelou uma relação extremamente conflituosa com a mãe. Esta era vítima de esclerose múltipla, deflagrada aos 2 anos da filha, e sempre manteve um comportamento agressivo. Dedicada e dependente em excesso ao marido, de quem era extremamente ciumenta, assumia muitas vezes um comportamento vitimizado para sensibiliza-lo. Usava os filhos nesse jogo, criando intrigas entre pai e filhos, para que ele os punisse com surras e castigos. Aos 10 anos, Alice teve meningite. A mãe convenceu o pai que era fingimento e a garota só teve assistência médica quando socorrida por uma tia, após o agravamento dos sintomas. Na adolescência, ouviu um diálogo dos pais, no qual a mãe manifestava o desejo de mandá-la a um internato, para sanar a profunda irritação que Alice a provocava. Era nítida a relação de possessividade da mãe em relação ao pai, e, obviamente, o ciúme da mínima atenção que ele destinara aos filhos. Nessa época, Alice passou a se isolar e desenvolveu compulsão alimentar. “Sinto que vivi em total desproteção, ainda me vejo sem voz. Até hoje não consigo falar para me defender”, reflete a paciente. Mesmo depois do casamento, Alice mantém uma obediência doentia em relação aos pais, pelo temor de represálias. E tem associado a isso uma espécie de responsabilidade sobre o bem-estar, especialmente da mãe. Busse (2004) associa a anorexia nervosa a fatores de depressão, presentes nos pacientes do transtorno, mas também em seus familiares (cf. p. 47).

A relação entre a mãe e o pai de Alice nos impele a pensar numa dinâmica distorcida, onde o masculino recebia um valor exacerbado. Woodman ensina que isso pode derivar da relação conflituosa que a mãe estabelecera com o próprio corpo, em virtude do quadro de esclerose múltipla.

A mulher que não se encontrou em seu próprio corpo depende de um homem que a ajude a nascer nesta terra, inclinando-se, por conseguinte, a projetar o seu Self no homem que ama.  Eis que a sexualidade se torna demasiado carregada de conotações espirituais. Quando fé e amor são sinônimos, a mulher projeta Deus no seu homem, apenas para ser testemunha do colapso dessa ponte que não foi construída para suportar esse peso (1991, p. 115).

Histórias como as de Alice sinalizam como a doença une mãe e filha num propósito comum: convergir à atenção dos demais para problemáticas psíquicas estruturais, com as quais não conseguem lidar. A anoréxica muitas vezes busca repetir um desejo secreto da mãe, de ansiar pela simpatia e cuidado dos demais – coisa que conseguem, torpemente, pela doença. Quem se recusa a comer adquire poder sobre os demais, que têm a rotina comprometida pela preocupação com a manutenção da saúde da paciente. As mães podem assumir, assim, um papel complementar ao transtorno: vinculam-se à doença tanto quanto a filha, mas no papel de cuidadora. Podem buscar, dessa forma, uma espécie de reparação das negligências que entendem ter vivido na própria história, enquanto filhas. Nesse aspecto, se enredam num conflito significativo, resultante da sintomatologia, pautada na relação de amor e ódio indiferenciados. Para a filha, o alimento se transforma em um tirano, que a impele a compartilhar do reino da mãe (cf. SPGNESI, 1992, p. 44).

 Woodman (cf. 2002, p. 58) defende que a estrutura ritualística da alimentação, geralmente associada ao quadro da anorexia, tem fortes relações com o quadro ambivalente traçado na relação mãe-filha. Ao fragmentar o alimento em pequenas porções, a anoréxica reascende a temática arquetípica do esquartejamento da mãe. O desmembramento aponta para um processo da mãe negativa em positiva, pela separação. Ao eleger um único pedaço, ou uma pequena porção deles, para se alimentar, a anoréxica promove uma espécie de comunhão com a temática materna. Supostamente, uma tentativa de integração psíquica, sinalizada pelo Self, para que possa estabelecer uma ressignificação na relação com a comida, além de estabelecer um contato real com seu corpo e de elaborar uma autoimagem positiva. Essa mudança é entendida pela autora como a transformação arquetípica da bruxa devoradora, em Sofia – a sabedoria. É quando o ser adquire novamente a significação humana esquecida por ocasião da dissociação com o princípio feminino.

Assim, entende-se que o processo de cura exige que o indivíduo trabalhe criativamente o corpo rejeitado, reconhecendo-se que é vítima de um distúrbio de autoimagem provocado por uma fantasia fundamental: a busca compulsiva pela perfeição. Ao se dar conta da inviabilidade de recuperação do paraíso perdido (a saber, a relação simbiótica e harmônica entre mãe e filha, muitas vezes somente idealizada e não vivenciada), a anoréxica poderá perceber que só ela poderá suprir a sensação de bem estar e completude, abandonando a busca pela perfeição. No caminho pelo resgate, será necessário enfrentar a desordem inicial, e celebrar com ela esse retorno, a fim de reformular a percepção do Si-mesmo e do mundo que a cerca. “Somente ao desenvolver o ego e ao aprender a dar valor ao seu próprio sentimento, será ela capaz de construir um núcleo forte o bastante para suportar o conflito entre opostos e para levar o sofrimento ao ponto de ruptura” (WOODMAN, 1991, p. 112).

Além disso, todos os fatores familiares correlacionados à anorexia nervosa levam a crer que o tratamento não deve ser focado exclusivamente na paciente anoréxica, mas deve se estender aos entes mais próximos – tendo em vista que, apesar de apresentar os sintomas em um dos membros, a doença representa uma disfunção complexa da psique familiar, como ressalta Lupo.  “Quando ignoramos o sistema familiar, corremos o risco de o (a) paciente melhorar e isso ameaçar os familiares. Os pais têm de se sentir seguros com o tratamento e o terapeuta deve evitar que eles ‘sabotem’ o tratamento” (in BUSSE, 2004, p. 282).

Gabbard sintetiza a psicodinâmica da anorexia nervosa em seis itens, a saber:

1) Tentativa desesperada da anoréxica de ser única e especial; 2) ataque ao falso sentido do self incentivado pelas expectativas dos pais; 3) afirmação de um self verdadeiro nascente; 4) ataque ao introjeto maternal hostil, visto como equivalente ao corpo; 5) defesa contra a voracidade e o desejo; e 6) esforço para fazer os outros se sentirem ávidos e desamparados no lugar da paciente (ibid., 2004, p. 54).

O caos aparente, sinalizado pela exuberância dos sintomas, nada mais é que o instrumento usado pelo Self para estabelecer um novo ordenamento numa estrutura psíquica adoecida. Em última instância, o que se busca é a integração de conteúdos sombrios na consciência. 

O espírito mercurial do corpo provoca pânico na consciência, ameaçando o fim do mundo em seu aparente esforço para promover uma mudança instantânea. (…) O corpo onírico precisa falar em termos absolutos, para conseguir até as menores mudanças diante da natureza insensível da consciência (MINDELL, 1989, p. 178).

Desta forma, poderá compreender a necessidade de se enxergar como um indivíduo uno e indivisível. “Individuação significa que os olhos, a cor da pele, os lábios, os movimentos da mão, a postura corporal, o tom da voz, as palavras e as fantasias manifestarão todas uma e a mesma informação: a personalidade real, o mito vivente.” (Ibid.)

REFERÊNCIAS

– BUSSE, Salvador de Roses (Org.). Anorexia, bulimia e obesidade. Barueri: Manole, 2004.

– MINDELL, Arnold. O corpo onírico: o papel do corpo no revelar do si-mesmo. Trad.: Maria Sílvia Mourão Netto. São Paulo: Summus, 1989 (Novas buscas em psicoterapia, v. 39).

 – SPGNESI, Angelyn. Mulheres famintas: uma psicologia da anorexia nervosa.

– WOODMAN, Marion. A coruja era filha do padeiro: obesidade, anorexia nervosa e o feminino reprimido. 10ª ed. Trad.: Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Cultrix, 1991 (Coleção de Estudos de Psicologia Junguiana por Analistas Junguianos).

– WOODMAN, Marion. O vício da perfeição: compreendendo a relação entre distúrbios alimentares e desenvolvimento psíquico. Trad.: Maria Sílvia Mourão Netto. São Paulo: Summus, 2002.

 

 

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