Self

Outras Ondas: O que é meu e o que está em mim

Não tenho o costume de reler meus textos, tempos depois. E tenho uma razão muito clara para isso: na maioria das vezes, bate um estranhamento de não entender como as palavras surgiram, se encadearam, ganharam asas e deixaram de ser minhas. Desconheço e aprendo com coisas que eu mesmo escrevi, como se me fossem alheias.Talvez o engano comece por aí: é bem possível que elas nunca tenham sido minhas. Não falo aqui de plágios ou mediunismos, mas sim da força dos afetos: quando nos chegam, eles nos invadem com ideias e imagens das mais diversas ordens. Laboriosamente, tento enquadrá-las em cinquenta e poucas linhas, nem sempre retas, nem sempre belamente sinuosas.

Mas qualquer palavra sempre me soa insuficiente. Isso porque os afetos estão aí para serem sentidos, e não definidos. Inclusive, um dos maiores desafios que percebo, em mim e em quem a mim recorre, é a capacidade de diferenciar as emoções. Separar carinho, respeito, companheirismo e amor. Separar raiva, inveja, mágoa, decepção. Na maioria das vezes, os afetos nos surgem encadeados. Difícil é saber quem é que puxa a fila, mobilizando os demais ao seu serviço.

Saber quem é quem é importante para que não sejamos injustos, conosco e com aquilo que está fora de nós. Na indiferenciação, quando colocamos diversos afetos em grandes cestos, corremos o grande risco de exaltarmos aquilo que não merece nossa atenção; ou de dispensarmos algo que, apesar de estar “em más companhias”, poderia ser útil para a nossa progressão. Por um lado, os afetos nos expõem a riscos. Entretanto, sem eles vivemos a apatia de quem é expectador da própria trajetória, sem encarnar na própria vida.

Afetos têm, por característica, o poder de modificar nossas emoções, impressões e pensamentos. Condicionam os gestos, nos mobilizam a uma compreensão altamente subjetiva da realidade. Chegam-nos quando querem e não necessariamente quando evocados – são como deuses, que se apresentam de forma arrebatadora, mas que não se deixam conduzir pelas vontades da consciência. Agitam nossos espíritos, conjurando-lhes vontades, e nem sempre se mostrando de frente. Quase sempre, só nos atentamos às consequências por eles geradas quando nos abandonam, ou cessam.

Os afetos não são meus, nem seus, nem de ninguém. Assim sendo, não podem ser razão de orgulho ou vergonha, de cassação ou de promoção. São simplesmente dignos de respeito, acato e reverência. Não devemos afrontar os afetos, sob a pena de sermos penalizados por eles – até o mais benevolente dos deuses é irascível quando ignorado ou menosprezado. Todo afeto tem a sua importância e necessidade, e nos cabe aprender a hora, o local e a companhia para vivenciá-lo. Precisam ser cultivados, em vez de cativados: quando conciliados com os afetos, podemos aproveitar deles e fazê-los presentes sem que nos surpreendam – tanto. Esse é o caminho da saúde, em seu conceito mais amplo: físico, emocional, mental e espiritual.

Nem sempre busco esse ou aquele afeto para conduzir meus escritos. Mas é meio mágico: logo que começo, algum se aproxima mais. Não entendo, nem procuro entender, o que eles vieram fazer aqui, nesse exato momento. Mas fico atento a perceber quais as transformações que propiciam. Em mim, nos outros, no mundo. Sinto que o dever foi cumprido quando promovem essa remexida, seja quando o leitor concorda ou quando ele discorda das minhas ideias. Minhas, que nada! Das ideias que me atravessam, que me inquietam, que me levam ao desconforto e à necessidade de falar o que precisa ser dito, de fazer o que precisa ser feito.

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Bethânia, cantora que admiro profundamente, soube sintetizar a força dos afetos quando nos atravessam. Compartilho com vocês.

Outras Ondas: Vida padrão-IBGE

 

Institutos de estatística servem para ler a realidade de uma nação, de um povo, de um segmento social. Dão a noção de predominância de casamentos, de religiosidade, da relação trabalho e remuneração. Apontam para o ponto médio da população: quantos anos estudamos ao longo da vida, quantos filhos temos e com qual idade, no que aplicamos nosso salário, o peso estimado para a altura. E, a partir desses números, são geradas políticas públicas, bases eleitorais, curvas de crescimento ou de decréscimo.

No entanto, muitas pessoas transformam a própria vida numa comparação entre diversos parâmetros estatísticos. É uma gente que sofre por não conseguir se enquadrar no padrão-IBGE. Acham que estão atrasadas demais, ou adiantadas demais, no curso natural da vida. Entendem que há um momento certo, um quê de normalidade que precisa ser resguardada. E nisso perdem toda a espontaneidade do ser o que se é. Estão fora do padrão, e sofrem com isso.

Os limites entre o normal e o anormal pautam a filosofia, e não é de hoje. De Platão à Elisa Lucinda, passando por Foucault, questionamo-nos sobre os benefícios e malefícios da rotina. A busca desmedida pela aceitação nos leva a crer num padrão de razoabilidade dos nossos atos, pensamentos e sentimentos. Mas, muitas vezes, sangramos diversas possibilidades de aproximação da felicidade, em nome de um tal “o esperado” – tememos tudo que é espontâneo ou exasperado, tudo que nos destaque de forma única. E, posteriormente, nos queixamos da mediocridade do ser: ressentidos por sermos “mais um no mundo”, encontramos valores do lado de fora e o esvaziamento do lado de dentro.

Jung nos ensina que, para que o homem se sinta realizado diante de sua meta existencial, ele precisa entrar em contato com o âmago da própria essência. É o que ele definiu como processo de individuação. O passar da vida nos permite perceber, e ressaltar, cada nuance de nossa personalidade. As potências afloram, em qualidades ou em defeitos, e aprendemos a lidar com elas de uma forma genuína. Tornamo-nos cada vez mais particulares, individuais. E aprendemos qual a nossa função no mundo, qual legado deixaremos aos demais. A partir de então, a necessidade de pertencimento a grupos restritos cessa: entendemos que todos pertencem a um todo, de forma orgânica e funcional.

Sob essa óptica, o progresso está diretamente vinculado à necessidade de aceitação do que somos. Não de uma forma estanque, com a crença em uma sina que engessa nossos passos (o que oportuna e ironicamente chamo de filosofia-de-Gabriela: eu nasci assim, eu cresci assim, sou mesmo assim, vou ser sempre assim…). Tudo o que temos de características pode nos servir ou nos escravizar, a depender do uso que se dê.

Quando não me encaixo nessa ou naquela estatística, tenho algumas alternativas a escolher. A vitimização leva a assumir a limitação, mas condiciona a visão a só enxergar a si e ao mundo a partir da falta.  A revolta, que nos prende à contrariedade e à frustração de não sermos o que queríamos ser – pode chegar ao limite de querer combater quem é o que não somos. A transformação é o ideal, mas nem sempre é possível, visto que nem sempre estamos aptos e em condições de mudar a realidade de forma imediatista. A aceitação soa como algo mais razoável: nos exige buscar a plasticidade necessária para viver e conviver com aquilo que somos.

Os limites das tabelas nos oferecem uma falsa ilusão de normalidade, o que dá acolhida e alívio. A normose, quando a obsessão por ser normal desencadeia uma neurose, é a doença mais agressiva da civilização: ela se traveste de saúde, infiltra-se nos nossos pensamentos como uma necessidade, e dificilmente é diagnosticada como um mal. É autolimitante, vazia de sentido e superficial.

Submeter-se a julgamentos estatísticos ou dos nossos “formadores de opinião” (família, amigos, sociedade etc.) é como fixar um teto muito baixo diante de uma alma que quer continuar crescendo. O que precisa ficar é que esses parâmetros servem apenas como referência de amostragem para quem gosta ou precisa contabilizar e padronizar feitos. É coisa de indústria em larga escala de produção. E nossa alma é artesanal, por natureza. Tanto que a individuação é sempre considerada um processo: ou seja, não há individuados, e sim individuandos. Ser normal é seguro, mas importante mesmo é ser especial. E, para isso, a fórmula é simples: ser leal a si.

Correio Braziliense – Revista: O legado de Jung

Para celebrar os 50 anos de morte de C. G. Jung, a Revista do Correio resolveu publicar uma reportagem especial sobre a contribuição da Psicologia Analítica para a sociedade. Recebi o gratificante convite de ser o responsável pelo material e aceitei o desafio. O resultado foi gratificante: tivemos uma boa repercussão do público e da comunidade junguiana.


Reproduzo, abaixo, o conteúdo na íntegra.

Cinquenta anos depois da morte do psiquiatra suíço, a psicologia analítica se desenvolve no Brasil e ganha novos adeptos. Sonhos, pinturas e muito estudo promovem o autoconhecimento e a cura para os mistérios da alma

O LEGADO DE JUNG

João Rafael Torres // Especial para o Correio

“Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou.” Com essas palavras, usadas para iniciar a sua autobiografia, o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung tenta sintetizar a experiência de 85 anos e 10 meses de vida a serviço da compreensão da mente humana. Você pode nunca ter ouvido falar dele, mas certamente já ouviu os termos “complexo”, “sincronicidade” e “inconsciente coletivo”. Se os tem incorporados em seu léxico, você compartilha ideias junguianas mesmo sem se dar conta disso.

Jung foi contemporâneo de Freud e chegou a trocar com ele uma série de experiências e conceitos sobre o inconsciente. Conta-se que o primeiro encontro entre eles durou mais de 13 horas ininterruptas de conversa. As divergências teóricas fizeram com que rompessem a parceria: Jung não concordava com a redução dos males psíquicos à sexualidade, feita pelo colega; Freud acreditava que o interesse do suíço pelas religiões e temas místicos era um devaneio inútil, que nada podia contribuir para a psicologia.

Filho de um pastor luterano e primo de uma médium, Jung percebeu uma enorme influência da fé sobre a psique — seja de uma forma saudável ou doentia. Isso o despertou a estudar a filosofia oriental, oráculos, mitologias e a alquimia. Some a esse conhecimento os grandes clássicos da literatura internacional, biologia, física quântica… O resultado de tanta erudição foi a Psicologia Analítica, que o sagrou como o segundo nome mais citado no mundo quando o assunto é o entendimento do que se passa com a mente humana. Amanhã, o mundo celebra o cinquentenário da morte do autor. E, para homenageá-lo, a Revista apresenta uma reportagem especial sobre o misterioso e encantador universo do inconsciente, pela óptica junguiana.

Esqueça o porquê. Pergunte-se para quê?

Enquanto muitas abordagens psicoterápicas se focam no “por que” (as razões dos conflitos) ou no “como” (estratégias comportamentais), a análise junguiana objetiva o “para que”. Ou seja, a função final, o sentido intrínseco de cada experiência. Dessa forma, o futuro não se configura como o resultado de circunstâncias, e sim no fruto de escolhas responsáveis. Além disso, a compreensão sobre o inconsciente leva a um entendimento e integração dos conteúdos desejáveis e indesejáveis, do masculino e do feminino, e da interação do indivíduo com o mundo e do mundo com o indivíduo.

A relação entre cliente e analista também se diferencia de outras abordagens. O atendimento geralmente é feito face a face, e as sessões são mais dialogadas — não há o distanciamento e o excesso de formalidade que muitas vezes marca a psicanálise freudiana. Sonhos, fantasias, produções artísticas, eventos sincronísticos e sintomas são integrantes no processo analítico: eles oferecem mensagens vindas do inconsciente. “Mas convém lembrar que o sucesso de qualquer terapia se dá a partir da empatia que surge entre cliente e terapeuta. Isso terá variações até mesmo entre analistas junguianos”, ressalta Tito Cavalcanti, da SBPA.

Depois de passar por outras duas abordagens psicoterápicas, a administradora Flávia Lopes, 38, encontrou na Psicologia Analítica a sua escolha para o autoconhecimento. A escolha não foi deliberada. “Conheci a terapia junguiana por acaso, num momento marcante de perdas. Hoje posso dizer que sou seguidora convicta”, brinca. O diferencial que a despertou a atenção foi o olhar global sobre o homem: as necessidades do corpo, da mente e da alma recebem a mesma atenção dentro do consultório. “Isso dá uma noção mais viva das próprias emoções, ensina a aproveitar o melhor momento em cada situação, leva a entender sobre meu ritmo e o ritmo do mundo”, sintetiza.

O encontro com o inconsciente, a partir da análise dos sonhos, aprofundou o encontro consigo mesma. “Percebi, em primeiro lugar, que os sonhos não nos deixam mentir. Eles denunciam nossa verdadeira essência diante dos conflitos, mesmo quando queremos ignorá-la”, explica. A familiaridade com a linguagem simbólica promoveu em Flávia uma maior integração com os valores do masculino e do feminino. “Aprendi inclusive a dar expressão ao meu lado ‘mulherzinha’, sem perder a determinação e a força para vencer os desafios da vida”, avalia.

Decifrando o enigma

A reedição da obra junguiana no Brasil é apontada como a mais importante das ações de homenagem aos cinquentenário da morte do psiquiatra. Pela primeira vez, os livros são traduzidos diretamente do alemão para o português em um trabalho de anos. O grande desafio está no alto nível de erudição de Jung: enquanto a leitura de Freud é de compreensão simples e direta, os escritos do suíço são rebuscados e não lineares. Um grande desafio para quem se propõe a estudá-lo. No entanto, o interesse pela obra se mostra crescente: seja pela procura de cursos de formação ou de literatura especializada.

O administrador Cleudir Santos, 51, sempre teve um interesse aguçado pelas questões religiosas, especialmente pelo catolicismo. Tanto que decidiu fazer uma formação paralela em teologia, onde teve os primeiros contatos com os conceitos de Psicologia Analítica. Na teoria, encontrou respostas para validar a própria fé. “Jung foi um grande teólogo, na medida em que estudou a fundo as ações da fé sobre a vida das pessoas a partir de diferentes religiões”, considera. A curiosidade e a identificação que sentiu o levaram a uma especialização na área.

Para Cleudir, Jung conseguiu sintetizar e explicar as experiências dos grandes místicos e santos a partir dos movimentos psíquicos. “Ele entendeu que todos eles (os místicos) viveram experiências intensas, que apontam para a presença de Deus dentro de nós, e não num mundo exterior”, entende. Essa consciência, ainda criticada por muitas instituições religiosas, aponta principalmente para a ligação individual que se estabelece entre o homem e a espiritualidade. “Descobrimos que o autoconhecimento é a função maior para o encontro com a divindade. Isso é capaz de nos libertar, mas também nos confere mais responsabilidade sobre o próprio caminho.”

O interesse de pessoas como Cleudir tem impulsionado o estudo da obra junguiana no país. No Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (IJEP), por exemplo, a cada semestre, cerca de 30 brasilienses ingressam no curso de especialização em Psicologia Analítica. Desse total, 40% não têm formação em psicologia, nem demonstram interesse em se tornarem analistas. Waldemar Magaldi Filho, fundador do IJEP, atribui essa procura à temática abordada por Jung, que se mantém atual. “Ele foi visionário, ao entender o homem e o planeta em um contexto maior e mais complexo, defendendo uma visão mais integral e autossustentável”, explica.

Para começar
Jung – O mapa da Alma, de Murray Stein (Ed. Cultrix): apresenta os conceitos junguianos de forma concisa e clara, essencial para quem quer se familiarizar com a teoria.

O homem e seus símbolos, de C.G. Jung (org.) (Ed. Nova Fronteira): um compilado de textos do suíço e seus principais colaboradores, com linguagem acessível.

Guia para a Obra Completa de C.G. Jung, de Robert H. Hopcke (Ed. Vozes): apresenta um resumo conceitual, com referências diretas para os textos originais.

O livro dos mistérios

A maior preciosidade da teoria junguiana só veio a público há três anos, com a publicação de O Livro Vermelho – Liber Novus: um compêndio de ilustrações e textos elaborados em manuscrito caligráfico, no estilo dos pergaminhos medievais. O livro foi escrito entre 1914 e 1930, e retrata fortes experiências psíquicas vividas por Jung durante três anos: sonhos, visões e premonições, que o incomodaram tanto a ponto de decidir suspender as conferências e compromissos médicos. O primeiro, que motivou o registro, é excessivamente perturbador: em 1913, ele viu toda a Europa coberta por sangue e cadáveres.

“Jung julgou estar psiquicamente perturbado. Quando, no ano seguinte, estourou a primeira grande guerra, com seu incontável número de mortos e sofrimento para milhões, percebeu o caráter antecipatório de sua visão”, explica Walter Boechat, revisor da tradução do livro para o português, membro-fundador e ex-presidente da Associação Junguiana Brasileira (AJB). O psiquiatra encontrou no relato minucioso e nas pinturas a melhor forma de amenizar tais imagens, além de atribuir-lhes um sentido.

O conteúdo controverso o levou a decidir por uma publicação póstuma do livro — desejo que foi mantido pela família até o ano de 2000. Em sua autobiografia, ele aponta o Livro Vermelho como o cerne para toda a Psicologia Analítica. No Brasil, o livro foi publicado pela Editora Vozes, seguindo as mesmas dimensões e a qualidade de impressão anglo-americana.

De polêmica e controvérsia

Curiosidade, coragem e humildade. Tais atributos são primordiais para definir a postura de Jung diante de temas polêmicos, até então não contemplados pela academia. Entre eles, a necessidade de nutrir valores espirituais para a realização do indivíduo — talvez o maior ponto de divergência entre ele e Freud, o grande motivo do rompimento entre eles. Jung defendia que a espécie do homem contemporâneo pode ser definida como Homo religiosus — traz a necessidade da crença em um princípio unificador e totalizante, como um traço genético da fé. A maior prova disso seria a manifestação religiosa como um bem inerente a todas as culturas, independentemente do local ou do tempo. Esse conceito o levou a ser interpretado erroneamente como um místico.

Joyce Werres, diretora de ensino do Instituto Junguiano do Rio Grande do Sul (IJRS), avalia que um dos grandes méritos do psiquiatra foi buscar informações em fontes não óbvias na época. Entre elas, as filosofias orientais, mitologias, religiões e a alquimia medieval. Estudou a fundo oráculos como o I Ching, o tarô e a astrologia. Era amigo de físicos como Albert Einstein e com eles percebeu uma grande similaridade entre as leis físicas e o dinamismo psíquico. “Jung explorou todos os caminhos capazes de atribuir sentido ao homem, pois esse é o diferencial de sua psicologia. Com sua grande erudição, agregou informações importantes para explicar o funcionamento da psique, sem os reducionismos que dominavam a ciência da época”, explica.

Esse aspecto faz com que a conceituação dos principais termos junguianos seja tão complicada. O próprio Jung dizia que muitos de seus conceitos não estavam concluídos. É o caso da sincronicidade: ele só se decidiu a publicar suas ideias aos 75 anos, quase 30 anos depois de usar o termo pela primeira vez em um discurso. Tais controvérsias são o tema do congresso “O lado mal dito de Jung”, a ser realizado em setembro pelo IJRS. Os avanços científicos também ofereceram uma compreensão maior de teorias estruturadas naquela época, e contestadas pela academia ortodoxa. Hoje, a sincronicidade é apontada como uma possibilidade plausível graças aos avanços na física quântica, que comprovam a relatividade do tempo.

No entanto, os junguianos estão atentos ao mau uso das terminologias criadas pelo psiquiatra suíço. Principalmente para evitar que a teoria se transforme em alguma espécie de dogma. “Ler sobre astrologia, I Ching e alquimia na obra de Jung pode levar à falsa crença de que ele defendia o misticismo, e não a psicologia. Esse é um erro de quem olha a produção com superficialidade”, defende Tito Cavalcanti, membro-analista e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica.

O que ele quis dizer

Sincronicidade: O termo foi criado por Jung para definir as ditas coincidências significativas: eventos que aparentemente não correlacionados pelas leis de causa-efeito, mas que, ao se realizarem, denunciam uma intensa ligação entre si. Oferecem um novo sentido a pelo menos um dos envolvidos. Os eventos sincronísticos são interpretados por Jung como uma manifestação direta da sabedoria inata do inconsciente.

Arquétipos: São ideias conceituais ou padrões de percepção e compreensão psíquica de determinado tema, formados pelo resultado de toda a experiência humana sobre aquele mesmo tema. Por exemplo: o arquétipo da mãe contém todos os atributos comuns à maternidade (o cuidado, a mama, a proteção etc. — traços semelhantes em todas as mães, independentemente da cultura ou do período histórico em que estejam inseridas). Os arquétipos são herdados por todos os humanos. Não tem forma e só pode ser percebido a partir das imagens arquetípicas, que se formam a partir das experiências vividas por cada indivíduo. Não são negativos ou positivos. Dão origem às mitologias.

Inconsciente coletivo: É o nível mais profundo do inconsciente formado pelos arquétipos e pelos instintos, é o resultado de toda a experiência humana, compartilhado por todos que pertencem à raça humana. O acesso ao seu conteúdo, no entanto, é mais limitado: geralmente é percebido nas cisões psicóticas, em experiências de êxtase, oráculos e em alguns sonhos.

Complexos: É formado por uma ideia arquetípica, em torno da qual se concentram imagens resultantes de experiências ligadas a este tema. Essas imagens são amalgamadas por afetos, as emoções ativadas. Cresce como uma bola de neve. Na medida em que se desenvolve, o complexo ganha força e autonomia, interferindo diretamente na consciência.

Self ou Si-mesmo: É o princípio unificador, regulador e organizador, e, ao mesmo tempo, a representação da psique. É a sabedoria inata, a expressão da individualidade. Jung o chamou de “o deus em nós”. O Self não é Deus em si (um conceito religioso), e sim a imagem divina que carregamos e moldamos durante o nosso desenvolvimento. É o que nos norteia para o caminho de realização de nossa existência — a chamada individuação.

Da loucura à arteterapia

A ideia parece inconcebível: um paciente psicótico em surto, completamente alheio da realidade e do autocontrole, toma nas mãos tinta e pincéis e, com eles, produz imagens de grande força e expressividade. Verdadeiras obras de arte. Na medida em que avança com o trabalho, o comportamento se apazigua e surge a possibilidade de uma reinserção social nos parâmetros ditos normais. Essa história foi vivida por centenas de pacientes do Hospital Psiquiátrico D. Pedro II, do Rio de Janeiro. Tudo por iniciativa da médica alagoana Nise da Silveira, a grande responsável pela inserção da psicologia junguiana no Brasil e também por impulsionar a reforma manicomial no país.

Nise sempre foi vista como uma pessoa revolucionária — não é à toa que ficou dois anos presa no período da ditadura militar. Essa experiência foi decisiva para que ela desenvolvesse um novo olhar sobre a loucura: negava-se à aplicação de eletrochoques ou a reclusão individual dos doentes, por exemplo. Em substituição, oferecia-lhes instrumentos para que pudessem expressar a criatividade. “Ela via que a expressão artística despotencializava as emoções que tanto aflingiam os doentes. Eles conseguiam dar forma e cores ao que sentiam”, explica Gladys Schincariol, que foi estagiária de Nise em 1974 e hoje é a atual coordenadora do Museu de Imagens do Inconsciente. O acervo, que passa de 350 mil obras, é formado pela produção dos pacientes.

A amizade de Nise e Jung se iniciou em 1954, quando ela soube do interesse do suíço pela simbologia das mandalas. Escreveu ao colega, dizendo que vários de seus pacientes produziam, espontaneamente, imagens circulares como os desenhos orientais estudados por ele. Jung a chamou a expor os estudos que desenvolvia no Segundo Congresso Internacional de Psiquiatria e, desde então, ficaram amigos e parceiros de trabalho.

Nas diretrizes da Psicologia Analítica, o inconsciente registra todas as impressões que tem do mundo a partir de imagens. Até mesmo quem nunca enxergou carrega em si a capacidade de abstração imagética. Parte desse conteúdo nos é revelado diariamente, a partir dos sonhos. Juntos, Nise e Jung perceberam que a expressão artística espontânea favorece a organização dos elementos psíquicos, promovendo a cura — bases para a arteterapia. “O alívio não surge somente nos psicóticos, mas também naqueles indivíduos que têm dificuldades para enfrentar seus dramas e conflitos pessoais”, completa Gladys.

Corpo e mente: separados, mas juntos
A visão integral de Jung para o homem correlaciona diretamente a psique e o corpo, e não como entes separados que coexistem. Ele entendeu os distúrbios físicos e psíquicos como formas de expressão de uma dinâmica distorcida da psique. Percebeu também um intenso paralelo entre esses dinamismos e as grandes questões da alma humana, manifestas nas diferentes mitologias. Contestou assim a ideia de Nietsche: os deuses não estão mortos, eles se transformaram em sintomas. Essa é a base da psicossomática, que investiga a íntima relação entre mente e corpo.

Sonhos, fonte de sabedoria

Jung acreditava que os sonhos funcionavam como fotografias do dinamismo psíquico. As imagens neles contidas teriam uma função não só compensatória, como acreditava Freud, mas também serviriam para educar, orientar e até mesmo revelar lampejos de futuro — os ditos sonhos premonitórios, capazes de romper as fronteiras do tempo e do espaço. O olhar sobre o sonho, ensina, nunca deve ser restritivo: não cabe uma interpretação direta, como as sugeridas nos “dicionários dos sonhos”. O conteúdo deve ser sempre contextualizado a partir das referências pessoais do indivíduo que sonha. Abaixo, algumas dicas para que você tire proveito dos recados que o inconsciente oferece a cada noite.

— Construa um “sonhário”: Jung dizia que o simples registro diário dos sonhos já constitui um exercício terapêutico. Na medida em que anotamos as imagens, peripécias, sensações e emoções experimentadas no mundo onírico, conseguimos “organizar” os movimentos psíquicos. Compre um caderno que deverá ser dedicado exclusivamente aos sonhos e transforme o registro dos mesmos em um hábito diário.

– Descreva sempre um sonho no momento presente, como quem relata algo real. Comece pelos lugares, seguindo pelo contexto e pelo papel que você assume. Em seguida, relate as emoções vivenciadas, a evolução da cena e o desfecho. A preguiça deve ficar de lado: anote todos os detalhes que lembrar.

— A linguagem do inconsciente é sempre alegórica, simbólica. Assim sendo, todos os elementos presentes num sonho (dos personagens aos objetos) não devem ter interpretação literal — tudo faz parte de você e fala de você.

— Ao terminar o relato, tente fazer um exercício livre de associações entre aquilo que vê e as relações que se estabelecem com a vida. Jung chamou esse exercício de amplificação. Por exemplo: ao sonhar com uma colega de trabalho com quem não se tem muito contato, observe quais as principais características que ela transmite. O mesmo vale para os objetos: resgate a história relacionada a eles. Amplificar é buscar sentido diante das imagens que aparecem.

— Não tente encerrar o conteúdo de um sonho, atribuindo um significado único. Quanto mais múltiplo for o sentido, mais valia terá. Se achar interessante, escreva o resultado da amplificação abaixo do sonho.

— Em geral, todos os sonhos da mesma noite têm uma temática comum e, depois de serem analisados individualmente, deverão ser observados como um conjunto conciso. O mesmo vale para aqueles tidos durante um período específico da vida (durante uma viagem, ao fim de uma relação etc.). Dessa forma, o sentido que eles oferecem torna-se mais claro.

— Você quer começar, mas simplesmente não consegue lembrar do que sonhou? Não se aflija. Encare como um exercício. Na medida em que começamos a dedicar tempo para os sonhos, eles tendem a ficar mais limpos, vívidos e vivos na memória.

— A observação continuada dos sonhos, acompanhada por um psicoterapeuta ou analista, é um poderoso instrumento de cura e de desenvolvimento pessoal. O processo promove o autoconhecimento a partir dos elementos vindos do inconsciente.

Outras Ondas* – Qual será a minha loucura?

Ninguém mais fica triste num luto, todos se deprimem. Crianças não são mais travessas, elas têm distúrbios neurológicos que as transformam em hiperativas. A falta de interesse por uma disciplina enfadonha, associada à baixa persistência para compreendê-la, transforma o adolescente em uma vítima de transtornos de déficit de atenção. Afetos não servem mais como agregadores de experiência de vida humana: são doenças que merecem tratamento. A insanidade seria a nova majestade do mundo?

O verso “de perto ninguém é normal”, popularizado por Caetano Veloso em Vaca profana, ganha novas atribuições no mundo contemporâneo: a tal normalidade, vista antes como um desejo comum, torna-se pequena demais para se viver. Todos têm ou precisam ter um distúrbio qualquer, uma intolerância qualquer, um comprometimentozinho que seja. Cada vez mais se recorre aos rótulos patológicos na corrida desenfreada para justificar as limitações pertinentes ao humano, inconcebíveis num mundo que prima perigosamente pela perfeição. E junto com tais rótulos, vêm de maré os milagrosos fármacos – dotados do poder excepcional de transformar a todos em pessoas normais, adequadas ou livres do sofrimento de viver.

C. G. Jung ensina em suas obras que o grande exercício do terapeuta é de enxergar o doente em vez da doença. Assim sendo, pouco importa a nomeclatura científica usada para definir o quadro de sofrimento que o indivíduo apresenta. O que vale é a sua história e a sua capacidade de se adaptar a ela. Atualmente, inclusive, até mesmo os profissionais chegados aos rótulos sofrem com a síndrome da desatualização: a cada dia, surgem novas patologias, que desbancam as anteriores pela especificidade que conseguem alcançar. Caçam um dos tais rótulos que se enquadre nas queixas. E muitas vezes se esquecem de investigar as origens do conflito, as limitações subjetivas que ele impõe e, principalmente, os benefícios que ele traz para o doente e para quem o cerca.

No olhar junguiano, cada doença tem uma função específica por estar ali. Elas são a expressão de uma psique que não consegue, por motivos diversos, adaptar as inclinações do mundo interior com o que encontram no mundo externo. O sintoma surge como a manifestação da tensão que se forma. É a voz da psique denunciando o que não percebemos, ou (na maioria das vezes) não queremos perceber. Nesses parâmetros, a medicação desenfreada para normalizar que se vê perturbado não passa de um disfarce diante das evidências. Ao cessar o efeito, o conflito se retoma com ainda mais vigor.

Isso não significa dizer que a evolução dos fármacos não devolva a plenitude de atividades para muitos que se encontram em crise. O complicador está na profusão do uso dos mesmos como o método mais eficiente de tratamento e cura, dispensando o autoconhecimento. Para chegar a ele, é necessário lidar com uma difícil lição: o enfrentamento dos problemas – complicado demais por nos levar a reconhecer o nosso papel diante da dependência efetiva diante daquilo que nos faz mal, dos ciclos de sabotagem que estabelecemos para mantê-lo, do olhar intransigente com o qual fitamos as necessárias mudanças íntimas.

Bem mais fácil é atribuir dores e frustrações a enzimas cerebrais descompensadas. Não somos preguiçosos diante dos desafios impostos pela vida, somos doentes – vítimas, dignas de piedade e de novas chances para repetir os mesmos erros. Despejar a culpa nos distúrbios, déficts e depressões é um exercício cômodo de quem busca ignorar que as emoções alteram a fisiologia do cérebro na mesma proporção que acontece ao contrário. Para perceber a verdade dessa premissa, faça a experiência: busque uma memória desagradável e veja como o seu corpo reage instantaneamente.

Pautar a cura no enfrentamento desenvolve um dos principais atributos para o desenvolvimento da psique: a resiliência. Essa é a qualidade do bambu: ao ser direcionado pelo vento em diferentes direções, ele desenvolve mais nós e torna-se mais forte, resistente e, ao mesmo tempo, flexível. Resiste assim às intempéries vindouras. Conosco, ocorre da mesma forma: fortalecemo-nos na medida em que nos percebemos capazes de vencer um problema com nosso próprio esforço, sem nenhum tipo de ferramenta que burle as regras do viver. O que não mata, fortalece – já diziam os antigos. Um atleta livre de aditivos artificiais percebe muito mais sabor na vitória, se comparado com aquele que venceu sob a tensão de ser pego no exame antidopping. Isso porque o primeiro conheceu, verdadeiramente, os seus limites e as possibilidades de superá-los.

Outras Ondas* – Somos todos complexados?

O complexo é um dos conceitos mais banalizados da Psicologia Analítica . A maioria das pessoas, no entanto, assume o termo de uma forma generalista, correlacionando-o à repetição de um padrão de comportamento. Mal sabem que a força de um complexo vai bem além disso. Na verdade, ele é uma estrutura indispensável para a manutenção psíquica.

Na denominação junguiana, os complexos são estruturas pertencentes ao inconsciente pessoal. Ele é formado por ideias e imagens que experimentamos ao longo da vida. Esses elementos são amalgamados por afetos, por emoções vivas. Os complexos se expandem na medida em que abarcam novas imagens ou ideias ligadas à mesma temática (representações, pensamentos, fantasias, impressões, lembranças, referências etc.). Ficam mais fortes quando ganham doses extras de carga afetiva, a partir de novas experiências. Assim, vão “engordando” com o passar do tempo. São como organismos vivos, dinâmicos e com autonomia.

O centro de cada complexo é arquetípico, ou seja, relaciona-se ao resultado de todas as experiências da humanidade no que diz respeito a um determinado tema. A melhor forma de compreender é a partir do exemplo. Tomo o complexo materno. Ao nascer, todo o contato que o bebê tiver com a mãe será registrado no inconsciente: as palavras, os gestos, os toques etc. Os afetos (bons e maus) transmitidos por essa mãe serão a “cola”, que transformará todas essas experiências em uma estrutura única, o complexo. Esse sistema vai crescer de acordo com o desenvolvimento do próprio indivíduo, e do contato que ele tiver com aquilo que estiver associado à palavra “mãe”. Além das experiências pessoais com a genitora, acrescente aí as demais referências que se adquire ao longo da vida sobre o tema maternidade: o que experimentamos pela observação das mães dos outros, as mães que vemos na televisão ou em um livro, as imagens das “mães divinas” (como Maria, por exemplo)… Tudo isso formará o complexo materno.

Escolhi o exemplo de propósito, já que o complexo materno é universal, experimentado invariavelmente por todos – até mesmo entre aqueles que nunca conheceram a própria mãe. Nesses casos, o complexo materno será formado a partir da pessoa que exercer os papeis da maternagem: a alimentação, o cuidado, a docilidade, a proteção… Assim, pode ser constituído a partir das experiências com a avó, com a vizinha, com a cuidadora do berçário, ou até mesmo com o pai, se ele desempenhar essas funções.

O nosso complexo mais importante é o ego, o centro da consciência. Ele é o mediador, o ponto de referência entre o mundo interior e exterior, onde se referenciam os traços da personalidade, o corpo e o nome. Começa a ser constituído na infância, quando a criança descobre o “eu”: o uso dessa palavra sinaliza os primeiros indícios de diferenciação, quando começa a se moldar um indivíduo único.

Pela capacidade de autonomia que têm, Jung comparou os complexos a pequenas psiques individuais, ou personalidades secundárias ou parciais. São como gênios, capazes de interferir no ego. Se pudéssemos enxergar o inconsciente pessoal, veríamos os complexos distribuídos como que em uma rede. Apesar de serem organismos individuais, eles tocam uns aos outros, mantendo uma interação constante entre si.

O ego surge como o complexo estrutural da consciência, responsável pela manutenção da unidade do indivíduo. As neuroses surgem quando um outro complexo interfere diretamente nele, provocando-lhe uma limitação de ação. Sempre que tomamos uma atitude estranha demais ao nosso padrão comum, como se num processo automático, estamos sobre esse domínio. É comum, inclusive, nos questionarmos: “não sei como fui capaz disso.” Ou dizermos: “era como se algo tivesse tomado conta de mim”. O complexo é capaz de nos influenciar e interferir nas decisões, mesmo fora da nossa vontade consciente. É praticamente um “encosto”.

Quantos complexos cada pessoa pode ter? A resposta é impossível de ser dada. Percebemos a atuação de alguns a partir do processo de análise, entendemos parte da interação entre eles. Mas nunca temos o conhecimento pleno de todos. Esse entendimento é importante para que não nos tornemos reféns dos complexos – na medida em que conhecemos o mecanismo de ação deles, temos uma possibilidade maior de impedir que atuem. Isso se dá a partir da ampliação da consciência: fortalecemos o ego para que se torne menos suscetível à interferência dos demais complexos.

Costumo dizer que eles são como bombas-relógio instaladas na nossa psique: ao identificarmos o mecanismo de ação, fica mais fácil desarmá-la. Para evitar os danos de uma explosão, o desafio é desarmar o aparato logo que ouvir o primeiro “tic-tac”. Nem sempre é fácil, é verdade. Por isso, quanto mais informações tivermos sobre a bomba, mais fácil será mantê-la sob controle.

Jung dizia que não temos complexos, e, sim, que eles nos têm. O tema é vasto e, como não poderia deixar de ser, bastante complexo. Por esse motivo, voltarei a falar sobre ele em breve.

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