Self

Psique: Um corpo bonito é aquele que acolhe bem a sua alma

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woman pinched her fat on body

Temos o corpo como a primeira e, muitas vezes, a principal referência de sermos indivíduos. O ego, a estrutura que gerencia a consciência, apropria-se dele para definir-se e ganhar funcionalidade. “Meu braço”, “minha cabeça”, “minha pele”, dizemos, seja para gerar referências ou para refletirmos sobre nós mesmos. Essa apropriação é, inclusive, uma dos indicadores no desenvolvimento da personalidade: mostra que a criança já consegue distinguir-se no mundo que a envolve.

Daí, você se olha e, por alguma razão, percebe que o corpo que habita não parece certo. Tem mais gordura que o que vê como padrão. A pele não está representada nos comerciais de produtos com credibilidade. Não há uma liderança que adote a mesma estrutura dos seus cabelos. Não aparece o bíceps, e o abdômen, que não deveria aparecer, está marcado. O primeiro pensamento: o que sou não serve.

Poderia ter sido assim com Amanda Souza, por exemplo. Esta semana, ela publicou um texto tocante, intitulado “Mas você tem um rosto tão lindo.” Conviver com o sobrepeso desde a infância, e ouvir a infame frase, poderia ter sido venenoso para sua autoestima. Felizmente, não foi. Amanda compreendeu que sua estrutura corporal não era um erro. Era um traço de si. Amanda é bonita. Ou, como diz, também é bonita – não precisamos desqualificar o outro para valorizar o que somos.

Saúde além da gordura
É natural que a maioria dite a regra. No entanto, o que percebemos é que a regra da aparência vem sido ditada por uma minoria. E os demais fazem um exercício frenético para caber em exigências tiranas. E por que se prestar a algo tão sofrido e descabido? A explicação está em associações equivocadas.

O dito “corpo bonito” da atualidade está sempre associado a hábitos saudáveis. A saúde é o caminho para o bem-estar – com essa parte eu concordo. No entanto, nem sempre os meios adotados para alcançar tal corpo são, de fato, saudáveis. Ora por estressarem ao extremo a estrutura física, ora por impor um alto grau de sofrimento psíquico.

Coleciono uma série de transtornos alimentares na experiência clínica. E não pense nas óbvias bulimia e anorexia, tão estigmatizadas por corpos cadavéricos. Falo aqui de duas primas pouco famosas, apesar de extremamente populares no mundo contemporâneo: ortorexia e vigorexia, geradas por hábitos compulsivos.

O mal escondido no bom hábito
Você certamente conhece (ou é) aquela pessoa que vive em busca do “alimento do século”, o mais cheio de nutrientes, o mais funcional, a semente de não-sei-o-que combinada com o farelo-de-qualquer-coisa. E que muda seus hábitos alimentares a cada Globo Repórter. Quando essa necessidade de “comer corretamente” cruza os limites da razoabilidade, estamos diante da ortorexia.

Também não deve estar longe de si aquela pessoa que quer esculpir cada fibra muscular, a qualquer custo, para se adequar a um padrão estético muito pouco razoável. E que, em nome disso, afasta-se de qualquer outro interesse, e restringe de forma desproporcional os contatos sociais. Esse ser pode estar sofrendo de uma patologia psíquica, chamada vigorexia.

Num passado próximo, era um mal predominantemente masculino. Mas hoje tem ganhado espaço entre as mulheres, que querem ficar “saradas”, rasgadas”, “secas” e outros adjetivos. Às vezes, tais traços compulsivos se combinam. E daí vemos pessoas “saradas” abrindo marmitas frias e pálidas em pleno restaurante, contrariando o bom senso e os pratos de seus convivas, para não fugir da dieta numa comemoração qualquer.

Amanda me parece muito mais saudável que isso. E também mais feliz. Talvez por ter entendido que os valores maiores da existência vão além daquilo que é percebido, de forma superficial, pelos cinco sentidos. Talvez por saber que, numa missão, o cavaleiro é mais importante que o cavalo.

Psique: Está na hora da arrumação – a moda da faxina

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Colorful buttons in the white wooden box

Quando um livro encabeça a lista dos mais vendidos, com certeza ele revela um traço da sociedade naquele determinado momento. É o que acontece agora com “A mágica da arrumação”, de Marie Kondo. Aparece por todos os lados: mãos, prateleiras, reportagens, conversas, prescrições. A tradução: estamos bastante desorganizados.

Basicamente, o método KonMari se fundamenta em dois pilares: descarte e organização. Temas que vão além da bagunça de armários e gavetas, convenhamos. A vida está repleta de coisas e relações empoeiradas, esquecidas em algum lugar, sem nenhuma função. Mas que, juramos de pés juntos, que precisaremos um dia. E, quanto mais acumulamos, maior a chance de nos perdermos diante daquilo que é verdadeiramente necessário.

O nível de dificuldade de viver está diretamente proporcional ao número de compromissos que eu contrair para o meu dia. Essa é uma conclusão óbvia, não precisamos de nenhuma japonesa para nos ensinar isso. No entanto, estamos inseridos num modelo existencial que nos cobra agendas lotadas (a de compromisso, a de relações).

Prateleiras cheias
Curiosamente, a queixa mais comum que escuto se resume em dois termos: “cansaço” e “falta de tempo”. E não duvido disso. Afinal, nossas prateleiras psíquicas estão entulhadas de eventos pouco gratificantes, que mais nos lembram das nossas faltas do que das nossas glórias. É como se comprássemos um brinquedo novo. Mas que, para funcionar, precisa de um determinado acessório. Mas que o encaixe dependesse de outro acessório. E outro. E assim sucessivamente, numa exigência sem fim.

Uma vida saudável depende de pluralidade. Na nutrição, na natureza das relações, na função das atividades. Mas isso não significa apenas em preencher espaços vazios com o que estiver na moda, ou com “itens de promoção”. A vastidão do mundo nos proporciona a possibilidade de nos ocuparmos com coisas que nos traduzam e contemplem enquanto seres únicos. Ou seja, que traduzam aquilo que verdadeiramente somos, em predileções, crenças e tendências.

Nisso, Marie Kondo acerta em cheio. Segundo ela, a triagem dos objetos que nos cercam deverá se dar usando um critério único: fique apenas com aquilo que te traz alegria. Seja imediata, seja secundária. Descarte tudo que não trouxer contentamento. O mesmo vale para aquilo que “um dia pode ser útil” ou que “parece que é bom ter”. Se, até agora, isso não transformou o seu caminho, não o fará no futuro. O que já cumpriu a missão original, pode seguir adiante.

A casa simbólica
Administramos duas casas, nas quais moramos – uma externa, de concreto e pertences, outra interna, de imagens e sentimentos. Ambas se refletem, mutuamente. Por esse motivo, em alguns momentos, o processo de organização torna-se um exercício difícil, e não somente trabalhoso. Envolve questões profundas, das quais nem sempre nos damos conta.

Organizar, arrumar, faxinar, descartar. Fazer um inventário do que guardamos, agruparmos por afinidades. Percebermos o que carece de manutenção. O que poderá ser ajeitado para facilitar. Tudo isso expande os ensinamentos de Marie Kondo para o território simbólico, onde residem nossas emoções. E assim tudo ganha seu lugar. A vida fica mais arejada, clara, prática.

 

Artigo: A anorexia e seu demoníaco maternal

O artigo científico abaixo foi produzido em parceria com a psicóloga Maria da Guia Ramos, como atividade integrante à especialização em Psicossomática, pelo Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, em 0utubro de 2013. 

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A ANOREXIA E SEU DEMONÍACO MATERNAL

 

João Rafael Torres

Maria da Guia Ramos

O conceito de beleza se encontra intimamente ligado ao conceito de perfeição. E os limites estéticos estabelecidos pela sociedade contemporânea têm se apresentado cada vez mais rígidos, privilegiando um padrão de aceitação constituído por mulheres magras e atléticas e homens fortes e corpulentos. Sob essa óptica, o indivíduo perde a referência de valores próprios e sofre com a debilidade de uma identidade, tornando-se altamente vulnerável ao meio. No culto ao corpo, a relação com a alimentação é revalorada: transcende a função de nutrição e promoção de saúde, passando a ser objeto de excessiva preocupação, controle, recompensa, traição etc.. Ocupa, assim, com mais vigor um signo de tradução psíquica, especialmente das problemáticas existentes no campo do psiquismo.

Em O ego e o id, Freud lembra que os investimentos libidinais no próprio corpo são a base do narcisismo, um dos temas centrais que norteiam nossa sociedade e valores culturais atuais. Como fator constituinte da personalidade, a maneira pela qual cada indivíduo vive o narcisismo será determinante para a estruturação egoica e para a formação de sintomas corpóreos (REGO, M.G.S., in BUSSE, 2004, p. 121).

Alheio à própria existência, o indivíduo passa a viver em busca da perfeição, sem perceber que caminha na contramão da realidade humana, negando sua condição de potencialidades e limitações. Nesse campo, a supervalorização das imagens e impressões superficiais, residentes apenas na dimensão e nos valores do corpo, torna-se fonte de um exibicionismo exacerbado, perdido, coletivo, que gera frustrações e produz sérios desconfortos emocionais. E, ao perceber que a imagem buscada não é encontrada, ou não sacia o esvaziamento interior que o coloca em crise, surge o inconformismo com a realidade da imperfeição humana. E daí decorrem os quadros neuróticos, como os distúrbios de autoimagem – a porta para os transtornos alimentares, um mal epidêmico no mundo contemporâneo. Destacam-se, entre eles, a obesidade, a bulimia nervosa, a vigorexia e a anorexia nervosa, objeto deste estudo.

A anorexia nervosa é um transtorno alimentar, cujo quadro psicopatológico consiste na representação alterada da forma corporal, associada a uma preocupação excessiva com o peso e o medo patológico de engordar. Em geral, suas primeiras manifestações se apresentam na fase transitória entre infância e adolescência, fase do desenvolvimento da personalidade onde se percebe a necessidade de negação dos vínculos parentais de infância, para uma autoafirmação como indivíduo independente da família de origem. Sem um lastro egóico bem constituído, o adolescente busca referências em padrões ditados por modismos, distante de referenciais de razoabilidade. Enxerga os próprios valores com lentes míopes e, sem ter estrutura para uma diferenciação entre o simbólico e o concreto, acaba por transpor tal distorção para a imagem que vê refletida no espelho.

O transtorno anoréxico consiste em restrição dietética progressiva e eliminação de alimentos da dieta, atingindo o limite extremo na recusa em alimentar-se. Pode estar associado ou não a outros comportamentos para a manutenção do peso, como o uso de métodos de expurgo (laxantes ou induções ao vômito) e a prática excessiva de exercícios físicos, com a finalidade de eliminar as calorias ingeridas nas refeições.

Diversas escolas de estudo da psique humana, entre elas a Psicologia Analítica, apontam para um aspecto importante do papel materno: a relação estabelecida entre mãe e filho, nos primeiros anos de vida, determinará a forma como este perceberá a si próprio e o mundo que o cerca. Num primeiro momento do desenvolvimento da personalidade, a mãe atuará como veículo para promover o Self infantil, uma vez que o bebê não dispõe de recursos internos suficientes para atender suas necessidades básicas.

O estudo das relações objetais, responsável por disseminar essa concepção, também aponta que a falha básica, reside na relação íntima pais-filhos, na qual foi dada pouca atenção às necessidades e desejos da criança, podendo gerar, no menor, diversos transtornos perceptivos e conceituais. A falha em tal mecanismo também definirá a capacidade de resiliência do novo indivíduo: a capacidade de se frustrar e tolerar a frustração, o enfrentamento às adversidades apresentadas pelo mundo, o grau de confiança em si e nos demais etc. Desse contexto, surge uma criança insegura, vulnerável, que se vê diante da necessidade de acionar precocemente o instinto de autopreservação e desenvolver mecanismos de defesa, que substitua a segurança da mãe.

O indivíduo que não experimentou o amor como fluido fundamental tenderá a assumir uma tônica afetiva conduzida pelo medo e pela necessidade ilusória do controle. Essas são temáticas essenciais nos mecanismos compulsivos, assumidos sob a forma de quadros neuróticos ou psicóticos. “A criança à qual não se permite viver os seus próprios ritmos espontâneos desenvolve um ritmo petrificador do poder dos seus próprios instintos, visto estar apartada do seu próprio Ser interior, e, portanto, distante da realidade da vida” (WOODMAN, 1991, p. 110). Esses são indivíduos que, em geral, se tornam despreparados para lidar adequadamente com novas experiências e expectativas e que, diante de tais desafios, expressam suas necessidades inconscientes a partir de ricas sintomatologias.

Entendido como um movimento neurótico, o transtorno alimentar assume características psicossomáticas, ou seja, uma tradução dos conflitos psíquicos que não ganharam elaboração e ressignificação a partir da linguagem dos sintomas corporais. Jung defendeu esse aspecto psicóide do sintoma, ao perceber que “os mais assustadores e compulsivos sintomas psíquicos contêm, frequentemente, objetivos e propósitos específicos” (MINDELL, 1989, p. 16), na medida em que “matéria e psique parecem estar em constante união nos fenômenos do corpo onírico, e aparecem separadas apenas quando consideramos conscientemente sonhos, sintomas ou sincronicidades surpreendentes” (ibid., p. 156).

Woodman (1991) acredita que “a vida não vivida dos pais pode se manifestar na filha mediante algum tipo de distúrbio de alimentação” (p. 130). A anorexia pode ser interpretada, desta forma, como uma expressão de um dano psíquico familiar, uma vez que percebe-se nitidamente, a partir da experiência clínica, que a patologia deriva de um caráter simbiótico e destrutivo na relação mãe-filha, assim como assinala Spgnesi (1992): “a mãe da anoréxica é dominadora, exigente, frustrada e ambiciosa” (p. 44). Alheias às questões da própria feminilidade, e francamente associadas aos valores do masculino, muitas vezes tais mães alimentam as filhas com uma espécie de “nutrição imprópria”, orientada pelas “necessidades, desejos e ambições não realizadas” (ibid., p.45).

Quando convertida em anorexia, a inadequação de maternagem é geralmente provocada pela insuficiência. “Inconscientemente, a criança foi rejeitada pela mãe; portanto, ela não é uma pessoa, mas uma coisa” (WOODMAN, 2002, p. 94). Essa desumanização se reflete na dificuldade de reconhecer a própria identidade e opinião, revertida numa espécie de dependência da afirmação e aprovação do outro. Possivelmente, derive daí o quesito de transtorno de autoimagem que acomete as vítimas do transtorno alimentar. A menina torna-se um objeto psiquicamente indefeso e manipulável: busca ser a “boa filha” da “mãe perfeita”, a quem precisa prontamente agradar, atendendo-lhe as expectativas imaginadas. “É como se o corpo não fizesse parte do self das anoréxicas, mas pertencesse a seus pais, não havendo individualidade própria para essas meninas”, (BUSSE, 2004, p. 53). Mas, para cumprir tal compromisso, o faz de uma forma excessivamente rigorosa e controladora: compulsivamente, tenta se impor sobre as circunstâncias vitais, a começar pela alimentação, e colateralmente, as relações interpessoais. Aos poucos, bane o prazer, em nome do poder que, ilusoriamente, esse controle oferece.

Woodman defende que uma mãe que nega a sua essência feminina, vinda do corpo, não terá condições plenas para transmitir à filha “o sentido de harmonia com o Self e com o universo, que é fundamental para o sentido ulterior de totalidade” (1991, p. 109, grifo da autora). Sem essa referência de conforto e acolhida à própria natureza, a criança dificilmente conseguirá reconhecer em si a valia, impedindo assim o alicerçar seguro da estrutura egoica. E “sobre tão frágil alicerce será construída uma sobre-estrutura rígida, baseada em valores coletivos: disciplina, eficiência, dever. A energia que quer fluir no criar, no viver, no brincar, é forçada a encontrar saída em compulsões cegas” (2002, p. 118).

Associando a si própria como um fracasso da mãe, e com baixa capacidade para simbolizar os aspectos da existência, a criança poderá viver uma busca por uma perfeição que compense sua frustração. Assim, o desencadear da anorexia nervosa registra a negação do corpo (o eu), negligenciado desde os primeiros momentos de vida, através da imagem internalizada da figura materna, facetando o feminino não reconhecido nela e por ela. Nesse sentido, a recusa da anoréxica em relação à comida ultrapassa o âmbito da alimentação, significando uma tentativa de sublimar o corpo e suas exigências. A patologia assume assim uma espécie de missão espiritual de limpeza, muitas vezes associado ao asco e pavor desenvolvidos em torno da comida, da gordura, da proximidade e do contato com o outro.

Manifestado principalmente nos primeiros anos da adolescente, o transtorno alimentar impede também a realização da sexualidade latente – interpretada como uma ameaça biopsíquica, na medida em que pode separa-la do papel de filha. Busse (2004, cf. p. 54) ressalta que o emagrecimento intenso da anoréxica a destitui das formas arredondadas que marcam o corpo feminino, objetivando uma assexuação que as cristaliza na fase infantil. Mesmo naquelas que desenvolvem a anorexia nervosa após a fase adulta, a falta de nutrientes e perda de peso ocasionam um prejuízo no ciclo menstrual, impedindo a concepção e a gestação. O autor associa o medo de que o alimento provoque o aumento da barriga a uma possível dificuldade de assumir o papel de mãe. “Os conflitos existentes entre mãe e filha mobilizam a anoréxica a não introjetar a figura feminina adulta (mãe), vista como negativa, e o desejo de não copia-la.” (ibid.)

Nos estágios mais avançados de inanição da anoréxica, a presença da autonomia e ausência de ansiedade se deve ao vínculo simbiótico que ela estabelece com a mãe. “Vivem como se estivessem ainda inconscientemente unidas a uma mãe nutridora mantendo uma insistência ilusória que são suas próprias provedoras e, por isso, não dependem de suprimentos de alimento real” (SPGNESI, 1992, p. 45). Nesse estágio, ignoram a possibilidade da morte, já que o fantasma que as perturbam é a própria incapacidade de lidar com a vida.

A psicossomática preconiza que o sintoma físico é uma representação simbólica de um conflito que não ganhou uma significação elaborada na psique. É um símbolo, que evoca a fusão entre o eu e o inconsciente, entre o ego e a sombra, na polarização de opostos etc.. Inclusive, a supressão dos sintomas físicos, sem uma devida compreensão do conteúdo que ele representa, pode ser inútil ou até mesmo nociva, vista a função compensatória desempenhada pelos mesmos.  Mindlell (1989) explica que “os sintomas aparecem como doenças apenas para a consciência”, enquanto o inconsciente os vê como “parte natural do processo onírico” (p. 168).

Existem casos nos quais o corpo até acusa a consciência de “causar” a doença, por manter atitudes de cura racionais desvinculadas que isolam o corpo do resto da personalidade. A “cura” pode ser uma atitude potencialmente destrutiva, por não escutar os distúrbios ou considera-los como sinais patológicos, pode força-los a se amplificarem a fim de serem levados em conta (ibid.).

 É o caso de Alice (nome fictício). Aos 27 anos, ela submeteu-se à cirurgia bariátrica, como estratégia para combater uma obesidade mórbida. Imatura e ansiosa, demonstrava reservas sobre a intimidade, com dificuldade de vinculação e enfrentamento. Após o procedimento, desenvolveu um quadro de preocupação excessiva com a perda do peso e manutenção do mesmo. Três anos após a cirurgia, ela retorna ao atendimento clínico com quadro de anorexia nervosa: além de uma grande dificuldade para ingerir alimentos, mantinha-se angustiada quando comia. Sentia-se “envenenada” e provocava vômitos. O quadro desenvolveu nela um misto de apatia, diante dos afazeres, e agressividade, para com os familiares que tentavam força-la a comer.

Durante o processo de análise, Alice revelou uma relação extremamente conflituosa com a mãe. Esta era vítima de esclerose múltipla, deflagrada aos 2 anos da filha, e sempre manteve um comportamento agressivo. Dedicada e dependente em excesso ao marido, de quem era extremamente ciumenta, assumia muitas vezes um comportamento vitimizado para sensibiliza-lo. Usava os filhos nesse jogo, criando intrigas entre pai e filhos, para que ele os punisse com surras e castigos. Aos 10 anos, Alice teve meningite. A mãe convenceu o pai que era fingimento e a garota só teve assistência médica quando socorrida por uma tia, após o agravamento dos sintomas. Na adolescência, ouviu um diálogo dos pais, no qual a mãe manifestava o desejo de mandá-la a um internato, para sanar a profunda irritação que Alice a provocava. Era nítida a relação de possessividade da mãe em relação ao pai, e, obviamente, o ciúme da mínima atenção que ele destinara aos filhos. Nessa época, Alice passou a se isolar e desenvolveu compulsão alimentar. “Sinto que vivi em total desproteção, ainda me vejo sem voz. Até hoje não consigo falar para me defender”, reflete a paciente. Mesmo depois do casamento, Alice mantém uma obediência doentia em relação aos pais, pelo temor de represálias. E tem associado a isso uma espécie de responsabilidade sobre o bem-estar, especialmente da mãe. Busse (2004) associa a anorexia nervosa a fatores de depressão, presentes nos pacientes do transtorno, mas também em seus familiares (cf. p. 47).

A relação entre a mãe e o pai de Alice nos impele a pensar numa dinâmica distorcida, onde o masculino recebia um valor exacerbado. Woodman ensina que isso pode derivar da relação conflituosa que a mãe estabelecera com o próprio corpo, em virtude do quadro de esclerose múltipla.

A mulher que não se encontrou em seu próprio corpo depende de um homem que a ajude a nascer nesta terra, inclinando-se, por conseguinte, a projetar o seu Self no homem que ama.  Eis que a sexualidade se torna demasiado carregada de conotações espirituais. Quando fé e amor são sinônimos, a mulher projeta Deus no seu homem, apenas para ser testemunha do colapso dessa ponte que não foi construída para suportar esse peso (1991, p. 115).

Histórias como as de Alice sinalizam como a doença une mãe e filha num propósito comum: convergir à atenção dos demais para problemáticas psíquicas estruturais, com as quais não conseguem lidar. A anoréxica muitas vezes busca repetir um desejo secreto da mãe, de ansiar pela simpatia e cuidado dos demais – coisa que conseguem, torpemente, pela doença. Quem se recusa a comer adquire poder sobre os demais, que têm a rotina comprometida pela preocupação com a manutenção da saúde da paciente. As mães podem assumir, assim, um papel complementar ao transtorno: vinculam-se à doença tanto quanto a filha, mas no papel de cuidadora. Podem buscar, dessa forma, uma espécie de reparação das negligências que entendem ter vivido na própria história, enquanto filhas. Nesse aspecto, se enredam num conflito significativo, resultante da sintomatologia, pautada na relação de amor e ódio indiferenciados. Para a filha, o alimento se transforma em um tirano, que a impele a compartilhar do reino da mãe (cf. SPGNESI, 1992, p. 44).

 Woodman (cf. 2002, p. 58) defende que a estrutura ritualística da alimentação, geralmente associada ao quadro da anorexia, tem fortes relações com o quadro ambivalente traçado na relação mãe-filha. Ao fragmentar o alimento em pequenas porções, a anoréxica reascende a temática arquetípica do esquartejamento da mãe. O desmembramento aponta para um processo da mãe negativa em positiva, pela separação. Ao eleger um único pedaço, ou uma pequena porção deles, para se alimentar, a anoréxica promove uma espécie de comunhão com a temática materna. Supostamente, uma tentativa de integração psíquica, sinalizada pelo Self, para que possa estabelecer uma ressignificação na relação com a comida, além de estabelecer um contato real com seu corpo e de elaborar uma autoimagem positiva. Essa mudança é entendida pela autora como a transformação arquetípica da bruxa devoradora, em Sofia – a sabedoria. É quando o ser adquire novamente a significação humana esquecida por ocasião da dissociação com o princípio feminino.

Assim, entende-se que o processo de cura exige que o indivíduo trabalhe criativamente o corpo rejeitado, reconhecendo-se que é vítima de um distúrbio de autoimagem provocado por uma fantasia fundamental: a busca compulsiva pela perfeição. Ao se dar conta da inviabilidade de recuperação do paraíso perdido (a saber, a relação simbiótica e harmônica entre mãe e filha, muitas vezes somente idealizada e não vivenciada), a anoréxica poderá perceber que só ela poderá suprir a sensação de bem estar e completude, abandonando a busca pela perfeição. No caminho pelo resgate, será necessário enfrentar a desordem inicial, e celebrar com ela esse retorno, a fim de reformular a percepção do Si-mesmo e do mundo que a cerca. “Somente ao desenvolver o ego e ao aprender a dar valor ao seu próprio sentimento, será ela capaz de construir um núcleo forte o bastante para suportar o conflito entre opostos e para levar o sofrimento ao ponto de ruptura” (WOODMAN, 1991, p. 112).

Além disso, todos os fatores familiares correlacionados à anorexia nervosa levam a crer que o tratamento não deve ser focado exclusivamente na paciente anoréxica, mas deve se estender aos entes mais próximos – tendo em vista que, apesar de apresentar os sintomas em um dos membros, a doença representa uma disfunção complexa da psique familiar, como ressalta Lupo.  “Quando ignoramos o sistema familiar, corremos o risco de o (a) paciente melhorar e isso ameaçar os familiares. Os pais têm de se sentir seguros com o tratamento e o terapeuta deve evitar que eles ‘sabotem’ o tratamento” (in BUSSE, 2004, p. 282).

Gabbard sintetiza a psicodinâmica da anorexia nervosa em seis itens, a saber:

1) Tentativa desesperada da anoréxica de ser única e especial; 2) ataque ao falso sentido do self incentivado pelas expectativas dos pais; 3) afirmação de um self verdadeiro nascente; 4) ataque ao introjeto maternal hostil, visto como equivalente ao corpo; 5) defesa contra a voracidade e o desejo; e 6) esforço para fazer os outros se sentirem ávidos e desamparados no lugar da paciente (ibid., 2004, p. 54).

O caos aparente, sinalizado pela exuberância dos sintomas, nada mais é que o instrumento usado pelo Self para estabelecer um novo ordenamento numa estrutura psíquica adoecida. Em última instância, o que se busca é a integração de conteúdos sombrios na consciência. 

O espírito mercurial do corpo provoca pânico na consciência, ameaçando o fim do mundo em seu aparente esforço para promover uma mudança instantânea. (…) O corpo onírico precisa falar em termos absolutos, para conseguir até as menores mudanças diante da natureza insensível da consciência (MINDELL, 1989, p. 178).

Desta forma, poderá compreender a necessidade de se enxergar como um indivíduo uno e indivisível. “Individuação significa que os olhos, a cor da pele, os lábios, os movimentos da mão, a postura corporal, o tom da voz, as palavras e as fantasias manifestarão todas uma e a mesma informação: a personalidade real, o mito vivente.” (Ibid.)

REFERÊNCIAS

– BUSSE, Salvador de Roses (Org.). Anorexia, bulimia e obesidade. Barueri: Manole, 2004.

– MINDELL, Arnold. O corpo onírico: o papel do corpo no revelar do si-mesmo. Trad.: Maria Sílvia Mourão Netto. São Paulo: Summus, 1989 (Novas buscas em psicoterapia, v. 39).

 – SPGNESI, Angelyn. Mulheres famintas: uma psicologia da anorexia nervosa.

– WOODMAN, Marion. A coruja era filha do padeiro: obesidade, anorexia nervosa e o feminino reprimido. 10ª ed. Trad.: Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Cultrix, 1991 (Coleção de Estudos de Psicologia Junguiana por Analistas Junguianos).

– WOODMAN, Marion. O vício da perfeição: compreendendo a relação entre distúrbios alimentares e desenvolvimento psíquico. Trad.: Maria Sílvia Mourão Netto. São Paulo: Summus, 2002.

 

 

Outras Ondas – A boa loucura

“Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, nunca convivi com pessoas muito ajuizadas”. As palavras da psiquiatra Nise da Silveira têm repercutido bastante nas redes sociais. Em tom de alerta e alento, validam a admissão das nossas loucuras corriqueiras, abafam a vontade de ser normal em excesso.

Uma coisa tem me despertado a atenção no exercício clínico: a quantidade de diagnósticos prefabricados, que validam a existência de pessoas que me procuram. Sob a justificativa de desmistificação da psiquiatria, se espalham nas prateleiras das livrarias títulos que elucidam os transtornos psíquicos – daqueles clássicos, como a histeria, aos vanguardistas, como dos transtornos disso ou daquilo. Num mundo onde todos buscam justificativas para o sofrimento e a frustração (naturais à trajetória, vale ressaltar), logo esses livros se transformam em best sellers. E seus autores, em celebridades.

Informação e conhecimento não ocupam espaço, é fato, mas interferem no que somos. Quem já teve aulas de psicopatologia sabe o quão desesperador pode ser reconhecer em si diversos sintomas das mais aterrorizantes formas de loucura. Potencialmente, temos todas elas guardadas. Mas em poucos (estima-se que em aproximadamente uma a cada dez pessoas), o sintoma se deflagrará verdadeiramente como uma psicose. Resumindo: tenhamos calma, tenhamos prudência.

Minha escolha pela escola junguiana deriva, principalmente, de uma crença fundamentada pelo psiquiatra suíço: não devemos nos ater às doenças, e sim aos doentes. Até porque isso seria injusto demais com o ser humano: coisificá-lo como o hospedeiro para um mal alienígena e independente, de forma simplista. Jung nos ensina a olhar através do sintoma, para saber o que ele representa, como chegou, quem o trouxe e, principalmente, para que ele está ali. A doença, em si, não é um problema e, como tal, seria um erro querer bani-la sumariamente. Ela é a estratégia de crescimento, encontrada por alguma instância psíquica. Uma vez compreendido o seu sentido, o sintoma cessa.

Nise da Silveira percebeu isso muito bem, ao despontar a reforma psiquiátrica brasileira. Percebeu que não adiantava combater a esquizofrenia de seus internos, mas sim dar voz às vozes que atormentavam seus doentes. Fez isso a partir da arte. E de pessoas tidas como incapazes, conseguiu extrair um rico conjunto de telas e esculturas, que hoje compõem o acervo do Museu de Imagens do Inconsciente. As obras não traduzem a dor de uma alma atormentada, e sim os tormentos da alma de todos nós. Mostram que, no fundo, somos todos muito semelhantes: uns, no entanto, têm exacerbadas a fragilidade, a imperfeição e a sensibilidade que compõem o ser humano.

Concordo com Nise e me sobe um arrepio quando me vejo diante daqueles que caçam soluções imediatas para suas loucuras. Muitas vezes, é a partir delas que temos a fresta para perceber o potencial de humanidade que mais traduz tal indivíduo. Quando perdemos a “insanidade cotidiana”, somos recompensados com a impessoalidade, os gostos robóticos e padronizados – belo presente, não? Os gregos encontraram em Dioniso a personificação divina da insanidade. Ele é o deus do êxtase e da mania, ou seja, dos desejos imperativos que a mente instala sobre o homem.  Mas que também traduz a vontade dos outros deuses, a partir da inspiração. Nas palavras de Platão, em Fredo: “As maiores bênçãos nos chegam através da loucura, quando é enviada como uma dádiva dos deuses”.

John A. Stanford completa, dizendo que o efeito de Dioniso (ou seja, da loucura) sobre os homens não era o de produzir efeitos extravagantes ou a destrutividade, e sim a verdade: “uma verdade tão profunda que não pode ser alcançada pelo intelecto, mas que pode ser conhecida pelo espírito vivo”, distante de repressões ou de oposições entre o certo e o errado, permitindo ao  espírito humano a liberdade “para ser seu mais verdadeiro eu” (em Destino, amor e êxtase – Ed. Paulus).

Em vez de combater a loucura, ou de tentar limita-la a rótulos psicopatológicos, podemos tomar-lhe proveito. O próprio Jung conduziu grande parte dos seus escritos após presenciar, ou vivenciar, experiências dignas de diagnóstico. Mas soube dar uma borda ao conteúdo vindo do inconsciente, transformando-o em subsídio para a criação de uma teoria que revolucionou a psicologia. O problema não é experimentar a loucura, é não saber o que fazer com ela.

 

Jornal Santuário: Você tem fome de que?

O Jornal Santuário de Aparecida me convidou para elaborar um artigo sobre compulsões alimentares. Está publicado na edição deste mês.

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Você tem fome de que?

Todo sintoma que se manifesta no corpo simboliza algo que a alma reclama. Ou seja, não há mal físico que não tenha sido originado na  psique. Quando se observa algum distúrbio alimentar, essa relação fica ainda mais evidente: a silhueta se transforma para apontar algo que está em desacordo.

Na compulsão alimentar, costuma-se fazer associações simbólicas com o “apetite” desmedido que ali se apresenta. Os versos dos Titãs podem nos ajudar nessa hora. Você tem sede de quê? Você tem fome de quê? Quais são as carências que esse corpo manifesta? Ou seria uma busca por sabores que gratifiquem a vida? A gente não quer só comer, a gente quer prazer pra aliviar a dor.  Qual vazio está sendo compensado durante o comer? De qual problema se quer escapar? A gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte.

Em geral, comedores compulsivos preferem alimentos de baixo valor nutricional, ricos em sabor, calorias e gorduras. Substâncias essas que deleitam o paladar e desencadeiam uma sensação de entorpecimento, mas que, como consequência, atraem para si o sobrepeso. O acúmulo de gordura, escudo natural contra as adversidades em eras primitivas, ganha na contemporaneidade uma nova configuração: é causa de menosprezo e rechaço. “Quem se ama não faz isso consigo mesmo”, diz o julgamento de muitos, impiedoso e indiferenciado.

Já vi pessoas que comiam compulsivamente pela falta ou excesso de vaidade; para se sentir forte ou na fantasia de se fortalecer contra um problema que acusa sua impotência. Em todos, percebi um traço comum: a dificuldade de enfrentar adversidades. O grande desafio no tratamento é o de ir além da patologia. Como ensina Jung, temos de enxergar o doente que está por trás da doença: um ser único, individualizado, com uma história que desembocou naquele momento, em que ele admite o problema e decide buscar ajuda.

 

nivas gallo