Devo muito ao mundo por ser quem sou. Mas a ele, enquanto imagem do todo. Podia, então, dizer também que devo tudo isso a Deus. Ele também personifica o todo. Essa é a dívida que reconheço.
Sou filho de uma família de classe média, que pode me proporcionar o estudo em instituições particulares. Também nunca me faltou para a assistência básica: alimentação, saúde, segurança, diversão. Sou um privilegiado. E sou grato a meus pais por isso.
Grato, apenas. Pois sei que não foi o que tive que me fez ser o homem que sou. Foi uma colaboração importantíssima, ainda o é. Mas não me sinto um devedor. Nem deles, nem de ninguém. Também não aceito cobranças.
Minha forja foram quem consegui ser, os lugares que minha vista alcançou e as minhas decisões. Algumas, precipitadas e imprecisas, geraram tortuosidades daquilo que sou. Outras, moldaram duro o que carece de firmeza. E temperaram, deram maleabilidade para que eu pudesse me encaixar nos espaços que a vida oferece.
Sou grato a cada amigo, a cada amor, a cada professor. Mas também a cada praga rogada, a cada dúvida sobre meu caráter, a cada resposta que me foi negada. Tudo isso me revelou para mim. Fez com que eu precisasse remexer fundo, em busca de um potencial esquecido, de uma chave enferrujada.
O termo “gratidão” está super em alta, apesar de muitas vezes ser administrado de uma forma imprecisa, outras vezes jocosa. Substitui o “muito obrigado”, num reconhecimento muito honroso a quem ameniza nosso caminho, ao nos prestar algum favor ou gentileza. Acho adequado.
Afinal, estar “obrigado” é condicionar-se a uma recíproca à altura, quando nem sempre temos a oferecer – ou queremos fazê-lo. A verdadeira gratidão se distingue da dinâmica de devedor x credor. Compreender essa semântica, e internaliza-la, pode ser um exercício de libertação.
Muitas vezes, cremos que, para sermos gratos, precisamos estar sempre disponíveis ao outro. É como se tivéssemos sido aprisionados em troca do bem que nos foi favorecido. Sendo assim, somente trocamos de problemas.
Da mesma forma, quando estamos do outro lado do balcão, sentimo-nos autorizados a emitir promissórias sempre que fazemos algo por alguém. Mesmo que elas nunca venham a ser enviadas, ficarão guardadas, exalando uma substância densa, altamente tóxica: o rancor.
Participamos mutuamente uns na vida dos outros. De forma mais ou menos cordial, mais ou menos útil. Não há, entretanto, resultados que dependam mais de alguém que de mim mesmo: até mesmo para sermos ajudados, devemos antes nos autorizarmos a tal.
Quem se vangloria de ter auxiliado alguém não o fez por entrega ou grandeza de alma. É justo o contrário: “emprestou” uma força ao reconhecer um valor naquele que é ajudado, na expectativa de poder gozar no futuro de algum benefício. Nem que seja o status de bondoso, solícito, nobre.