Primeiro achei que seria sujeira. Depois vi que era mesmo o desgaste que marcara determinada região do tapete de meu consultório – um daqueles feitos com recortes de couro de boi. Justo no lugar onde repousam os pés de meus clientes, uma clareira se abriu entre os claros pelos. Cada milímetro na mancha de couro nu denuncia a angústia dos que ali sentam.
Os pés que se movimentam ali, inquietos, traduzem outros passos – os dados fora do consultório, na vida. Caminhos que gostariam de esquecer, outros que prefeririam ter percorrido. A hesitação se apresenta como um frear. A insegurança finca os pés no chão. Difícil mesmo é encontrar alguém que se permita relaxar sobre a poltrona, deixando que os solados acarinhem o solo.
O movimento se dá quando, enquanto confessam suas memórias e fantasias, o corpo é atravessado por uma série de outras emoções: tristeza, euforia, raiva, melancolia, nostalgia, rancor. São elas que arrancam, fibra a fibra, os pelos da tapeçaria. Isso traduz a força dos afetos. Quando nos visitam, imprimem marcas profundas na psique e no corpo.
O afeto é uma emoção ativa, capaz de provocar alterações no nosso estado de espírito. Imprime uma nova marca, nos coloca em outro ritmo. É vivo, mobilizador, tem vontade própria e é voluntarioso: não se convence a ficar quando é desejado, permanece mesmo quando não é querido. O ego, aquele que acha que manda no que somos, muitas vezes trava com o afeto uma luta inglória. Quer dominar, sente-se superior, mas acaba sempre submetida a essa força superior, primitiva, imensurável – age como a ilha que busca ignorar estar sujeita aos desígnios do oceano.
Exercício de reflexão
Quem pisa em meu tapete quer buscar estratégias de alívio a afetos perturbadores. Mas logo entendem que a análise nada mais é que um exercício regular de reflexão. Ao soltar histórias no chão e debruçar-se sobre a própria vida, aumentamos a chance de reconhecer nos fatores de incômodo uma função, um sentido na existência. Somos o que gostamos de ser, mas, principalmente, precisamos aprender a conviver com os conteúdos negados que nos habita. E a tal felicidade (prefiro dizer “bem estar”) aparece quando nos pacificamos com esse nosso avesso.
Obviamente, essa compreensão não leva ninguém a querer cultuar o desconforto. Não é essa a função. Mas precisamos aprender a entendê-lo como uma limitação que nos oferece a chance de desenvolvimento. Uma grande parte da falha do carpete surgiu de discursos apaixonados, contra pessoas e situações que levavam ao descontentamento. O tempo e a compreensão mostraram que os alvos de crítica eram, na verdade, o canal mais adequado para que a vida se ajustasse.
Decidi que a marca no tapete continuará ali, até que surja um rasgo que não caiba remendo. Ela não representa um dano patrimonial. É justamente o contrário: pelas histórias que testemunha e registra a cada sessão, sinaliza o orgulho de meu ofício. Impregnado de afetos, ele sustenta não só as poltronas nas quais sentamos. Ele é o território, no qual aprendemos, eu e meus clientes, a perceber a vida.
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