Self

Psique: Aprendemos os valores de nosso caráter na convivência com o outro

 

Não nos resta outra realidade senão a de compartilharmos a existência com os outros. Dos mais felizes aos mais perturbadores, os eventos da vida terão sempre testemunhas. Algumas delas, participantes ativas. Outras, meras observadoras.

Usar o verbo “compartilhar”, logo de início, soa redundante neste mundo em que vivemos. Afinal, é bem provável que você tenha chegado a este texto depois de alguém ter clicado num botão com esse enunciado. Apesar de novíssimo, o hábito se tornou tão corriqueiro que parece fazer parte do repertório dos “sempre” da nossa vida.

De fato, o que mudou foi o meio – agora, com as facilidades do mundo virtual, ouvimos nossa voz mais alta, com maior capacidade de alcance. E, assim, replicamos tudo aquilo que gostaríamos de ter dito antes, as ideias com as quais nos identificamos, o acontecimento que julgamos relevantes.

E fazemos isso por esperarmos uma troca. Queremos que os demais também nos alertem dos perigos, instruam sobre as novidades, provoquem um sorriso. Alimentamo-nos de referências.

Buscamos trocas porque somos seres essencialmente gregários, relacionais. É só assim que aprendemos sobre quem somos, sobre os papéis que ocupamos no mundo. Nossos olhos precisam de espelhos que nos façam enxergar melhor. E buscamos isso no olhar do outro.

Nossa necessidade de estabelecermos vínculos é vital. A ciência já atestou que um bebê que é higienizado e alimentado de forma austera, sem o toque carinhoso e o olhar de quem cuida, terá sérios problemas de desenvolvimento, e pode não sobreviver.

Quando crescemos, e superamos a demanda por cuidados básicos, mantemos essa necessidade de estabelecer pontes com nossos semelhantes. É delas que apreendemos os valores que norteiam nosso caráter e nossa ética.

Há pessoas que dizem optar por uma vida reclusa. Não falo aqui dos introvertidos típicos – aqueles cuja necessidade legítima é de concentrar o foco da própria energia em seu mundo interior.

Refiro-me aos reativos. A quem acha que a relação pode subtrair, em vez de somar. Pessoas que têm aversão a outras pessoas. Ontem, assisti a um breve vídeo da Monja Coen, sábia que muito admiro, alertando sobre uma frase que circula por aí: “gosto mais de bicho que de gente”. Esclareceu e me fez pensar sobre o assunto.

Talvez tais pessoas prefiram os animais pela incapacidade destes de promover, diretamente, questionamentos e confrontos mais profundos. Ou de oferecer menos frustrações às expectativas neles projetadas. Ou pela fartura e disponibilidade de carinho que oferecem. Bicho é menos exigente, cobra menos para que sejamos melhores.

Muita dessa evitação é gerada por reatividade. As feridas abertas por outros nos colocam indisponíveis para novas possibilidades. O isolamento é uma opção imatura, pois sugere que podemos evitar novos danos. Mal percebemos que é das mãos do outro que poderá o surgir o sanativo para nossos males mais profundos.

Psique: Oito perguntas e duas afirmações sobre o fim de um relacionamento

 

Por que a gente não deu certo? Ninguém inicia uma história de amor pensando no dia em que ela se encerrará – e, convenhamos, esse dia chegará, mais cedo ou mais tarde. Quando acontecer, poderemos simplesmente esquecer o bom vivido. Toda relação dá certo por um tempo. Depois, acaba.

O que aconteceu de errado? Daí, quando acaba, inicia-se um pregão para disputar quem fica com a razão. Para crescer com a experiência? Nem sempre. Não há manuais que garantam eficácia nas relações. Errar faz parte do processo, é o risco que assumimos enquanto estamos tentando.

Será que a culpa foi minha? Nem sua, nem de ninguém. A baixa autoestima faz com que busquemos esse tipo de julgamento. As sentenças podem ser pesadas demais, e fundamentadas em feridas anteriores. Muitas vezes, o fim foi a melhor saída para evitar danos ainda maiores.

Entre nós, tudo ia bem. Os outros que eram o problema. Vivemos em comunidade e a vida sem “o outro” não existe. Eles, de fato, perturbam muito. Principalmente por espelharem grande parte dos nossos conflitos mais profundos: inseguranças, vícios, feridas. Acredite: uma relação blindada do mundo não duraria para sempre.

Por que complicamos tanto as coisas? De fato, tudo poderia ser mais simples. Mas somos seres complexos. Isso significa que nossos fatores psíquicos se engancham uns nos outros, o que muitas vezes nos leva à falta de coerência. Queremos sempre que as relações caminhem bem. Nem sempre conseguimos agir positivamente em nome disso.

Por que com os outros parece tão fácil? A grama do vizinho só parece mais verde porque, de longe, não vemos as pragas que a infestam. Comparar relações é um grande erro, especialmente por expor nossas vulnerabilidades de uma forma perversa. Ninguém erra por má vontade, simplesmente. Mas por não ser capaz de fazer melhor.

Tudo seria diferente se tivéssemos conversado mais. Concordo. Mas parece que invertemos a ordem das coisas, na medida em que a relação se aprofunda: vamos perdendo a vontade de conhecer as verdades do outro, enquanto passamos a impor mais o nosso jeito. Isso mina a intimidade e aguça o medo.

Você consegue me compreender? Você está sabendo expressar o que sente? Muitos dos desentendimentos se dão por uma inabilidade de comunicação, como se os agentes falassem em idiomas incompreensíveis. Isso faz com que objetivos comuns sugiram competitividade, por exemplo. Falar, sempre, é a forma mais honrosa e respeitosa de ajustar as coisas. Até mesmo na separação.

Como vou reagir quando te encontrar? Terminar uma relação não apaga uma parte da nossa história. O outro não se transformará em um estranho, ou num inimigo. Uma parte de cada pessoa com quem nos relacionamos ajuda a constituir quem somos, assim como levará um pedaço nosso. Agradeça por aquilo que ganhou e pelo que pode oferecer.

Será que vou conseguir amar novamente? É bem provável – felizmente, tendemos a acreditar na renovação. No entanto, esse novo amor dependerá da forma como você consegue encerrar o momento. Faça um inventário dessa relação, sem má vontade. Até para evitar que os mesmos equívocos se repitam nas próximas.

Psique: Sem autoconhecimento, corremos o risco de casarmos com nossos pais

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“Você está agindo igualzinho à sua mãe!” “Não espere que eu faça como seu pai!” Atire a primeira pedra quem nunca disse, ou ouviu, comentário semelhante numa discussão com o ser amado.

Em diversos momentos, as relações conjugais replicam ou repercutem os modelos relacionais experimentados na família de origem com os pais. Evidenciam, igualmente, os conflitos que os atravessavam. Os enfrentados e, em especial, os que por eles foram postergados.

Nossos pais (ou quem assumiu a função parental na nossa infância) servirão como nossa primeira referência quando o assunto é a relação com o outro. Mesmo sem ter consciência disso, eles nos ensinam formas de estruturarmos nossos vínculos. Até que nos surjam novas referências, esta predominará no nosso contato com o outro.

O problema é que buscar novas referências nos exige muito. A começar, uma desconstrução e nova assimilação das imagens de pai e mãe que carregamos internamente. Seja porque é difícil admitir que nossos heróis eram falhos, seja por não querermos sair da voz de condenação da educação que recebemos.

Quanto mais inconscientes estivermos do nosso processo de desenvolvimento pessoal, do autoconhecimento, maior a chance de casarmos com nossos pais. Buscaremos, nas relações que empreendermos, preencher cada silêncio, cada interrogação, cada negativa.

Podemos nos identificar com um deles e reproduzimos seu comportamento fielmente – buscando parcerias complementares, que atendam perfeitamente o script que herdamos. E copiamos tão bem o modelo apreendido que repetimos as mesmas frases, as mesmas reações, os mesmos medos, as mesmas doenças…

Podemos ainda buscar alguém que complemente a nossa infância. Um pai ou mãe complementar, que reproduza o comportamento daqueles que tivemos ou que os repare. Ou seja, procuramos os pais que não tivemos, que possam “acabar o serviço” que ficou para trás. Missão impossível.

A ampliação da consciência nos dá uma espécie de emancipação psíquica. Não é “matar os pais” internamente, e sim aprender a aceitá-los como são e diferenciar-se deles psiquicamente. Sem essa diferenciação, viveremos os conteúdos do inconsciente familiar como destino, como ensina Jung.

Apesar de difícil, esse processo é gratificante. Especialmente por ser capaz de interromper verdadeiras maldições familiares, transmitidas geração após geração. Ao tomarmos certa distância, conseguimos compreender que certas sinas só se cumprem porque ninguém teve a audácia de questioná-las.

Psique: Amar não deveria ser um problema. Mas esse afeto é tão complexo…

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Esta é a centésima edição de Psique. E, para comemorar, resolvi falar de amor. Dele derivam os grandes dilemas humanos e também partem as grandes soluções — aquilo capaz de transformar nossa realidade.

Amar não deveria ser um problema, mas esse é um afeto tão complexo, e tão subjetivo, que acabamos por confundi-lo com diversas outras coisas. E dessa confusão derivam os grandes sofrimentos humanos. Lido com eles diariamente em meu consultório.

Pessoas confundem amor com possessividade. Com a anulação em nome do outro. Com a indisposição para enfrentar uma nova realidade. Com o comodismo. Com a necessidade de reviver as marcas do passado. Com o medo de magoar. Entre outros incontáveis equívocos.

Tudo isso ocorre porque nem sempre conhecemos de fato o amor. Somente imaginamos, tomando por base a referência de sua antítese: o desamor. Chamamos de amor o contrário daquilo que queremos evitar: o abandono, a incompreensão, a insegurança, a incompletude.

Fazemos isso sem compreender que, de fato, tudo que tememos já está em nós, faz parte da nossa condição humana.

Tudo isso é atenuado de alguma forma, interpretamos como uma atitude amorosa. Nem sempre é. São incontáveis as razões que levam duas ou mais pessoas a se aproximarem. Vão da confluência de propósitos aos interesses mais escusos.

O amor real se define pelo compromisso desinteressado e generoso, o que é profundo e difícil de ser exercido. Nas palavras de Jung:

“O amor custa caro e nunca deveríamos tentar torná-lo barato. Nossas más qualidades, nosso egoísmo, nossa covardia, nossa esperteza mundana, nossa ambição, tudo isso quer persuadir-nos a não levar a sério o amor. Mas o amor só nos recompensará se o levarmos a sério”.

Quem consegue chegar a esse lugar, mesmo que por um instante e uma vez na vida, saberá diferenciar com mais tranquilidade a natureza das relações. Saberá que algo pode valer a pena, mas não necessariamente terá de chamar de amor. Ganha-se a lealdade consigo mesmo.

 

Da mesma forma, aprende-se que amor é para sempre. Ele se transforma, converte-se numa outra qualidade de amor – mas nunca deixará de sê-lo como é. Quando é verdadeiro, o amor é gregário, e não competitivo; é compreensivo, e não inseguro.

Amar é uma forma de contemplarmos o que há de mais profundo em nossa alma. Coisas que vão além das heranças familiares, ou daquilo que o mundo julga como importante. Quando amamos, acessamos o sagrado em nós.

Por esse motivo, envolvemos os seres que amamos com tanta importância. A eles, buscamos oferecer o melhor lugar para que se sentem. Acolhemos da melhor forma, para que ali permaneçam. Sabemos que, por meio deles, podemos experimentar, mesmo que por instantes, a impressão de sermos inteiros.

Psique: Existe limite para o perdão?

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Quantas chances uma pessoa merece? Quando um erro pode ser compreendido, quando é inadmissível? Ceder é uma atitude louvável ou uma idiotice? Limites frágeis definem valores tão subjetivos.

Nós, terapeutas, somos muitas vezes acusados de complacência. Defendemos os errados, sob o argumento da inconsciência de seus atos. Já ouvi comentários até que soam como insultos: “é fácil falar, queria ver se fosse contigo” – o mais comum.

Até certo ponto, é verdade. Não somos (ou deveríamos ser, ao menos) tão inimigos assim do erro. Mas a defesa que fazemos não é por sermos bons ou tolos. E, sim, por compreendermos que qualquer ato está ligado a uma complexa rede de acontecimentos. E que, por trás de cada gesto, há uma mensagem que tenta ser transmitida. Mesmo que da forma mais torpe.

Assim como ninguém nasce para ser um fracasso, não há nenhuma atitude planejada para dar errado. O sucesso, no entanto, derivará de uma série de fatores. Muitos deles serão incontroláveis, até ao sujeito mais minucioso.

Quando o outro comete uma falha, ele nos frustra duplamente. Não só por interromper nossos planos, mas principalmente por nos lembrar que lidamos intimamente com a possibilidade do erro. Isso justifica a dificuldade dos perfeccionistas em abonar o erro do outro.

Ao darmos outra chance a quem erra, fazemos mais que uma simples aposta no acerto. É um voto de confiança, uma forma de mostrar solidariedade à condição falível que nos atravessa a todos. É também uma atitude amorosa: capacitar o outro a refletir sobre o ocorrido, para que possa revisar atitudes e corrigir posturas.

Há um limite razoável para isso? Obviamente. Não se trata de um chamado a cegar-se diante das falhas. É necessário discernir entre uma incapacidade legítima e uma intenção maligna, pois, é fato, existem aqueles que estão impregnados por mal maior que a minha capacidade de detê-lo.

A estes, também cabe alguma misericórdia, novas chances para que possam interagir com o mundo de forma menos nociva. Mas, pergunte-se: serei eu a pessoa mais indicada e capacitada para auxilia-lo, ou é o momento de me preservar?

Uma coisa é certa: a outra chance, seja ela para quem ou o que for, só é válida quando é uma decisão madura, genuína. E não quando aparece como uma espécie de crédito para validar meus futuros erros. Muitos negociam indulgências com esses trunfos, e impedem que as relações em questão sejam maduras, honestas e profundas.

Mas estou certo de que esgotamos as possibilidades bem antes do nosso verdadeiro limite. Desistimos fácil do outro, não só por não crermos na sua capacidade de melhorar. Mas por saber que, para que o erro do outro seja superado, exige-se também uma reforma naquilo que somos. A vida não é somente uma disputa por razão.

nivas gallo