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Psique: Amigo de verdade suporta sua felicidade, seja ela qual for

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Tendemos a querer adaptar o outro àquilo que somos. Não necessariamente por querer-lhes o bem, mas para que a nossa vida fique mais fácil. A felicidade é um conceito subjetivo. Cada um concebe as próprias imagens de paraíso. Impor as nossas aos demais é um erro.

Fazemos escolhas que podem representar motivo de preocupação, ou desgosto, para quem nos ama. Principalmente por forçarem a assumir uma nova perspectiva. Isso incomoda porque, numa dessas, poderá despontar a percepção de estarem equivocados. E isso é frustrante.

Daí vem sempre aquele argumento da defesa, do prevenir o outro dos males que pode atrair para si. Falamos isso como se o erro não fosse edificante. Ou como se tivéssemos uma visão privilegiada da realidade, capaz de antever fracassos. E nós, também não fracassamos?

Suportar a felicidade do outro, seja ela qual for, é o sinal da verdadeira amizade, a prova do amor fraterno. Com quem se relaciona, o que consome, o que decide fazer, qual a hora certa de entrar ou sair de uma situação? Tudo isso é de responsabilidade de cada um. Cada escolha, boa ou ruim, só compete a quem poderá sustenta-la.

Vender ao outro as nossas verdades é uma atitude tirana. Basta inverter os papeis nesse balcão: como você reage quando a paixão chega (por algo ou por alguém), e vem aquele amigo aconselhar sobre os riscos desse empreendimento? Isso é suficiente para deter o sentimento?

Por mais que algo seja notoriamente negativo, tal situação foi a forma encontrada pelo outro para algum aprendizado. Não é que devemos ser negligentes: advertir é o papel de quem gosta e cuida. Mas é imprescindível que saibamos que é do outro a escolha – e que nossa visão está sempre contaminada por nossos preconceitos. A verdade tem muitas faces.

O bem estar do outro pode nos elevar, servir de estímulo para que busquemos melhorar a vida. Mas também realça o que há de errado conosco, nossas faltas ou excessos. Daí brotam emoções incomodativas, como a inveja e a competitividade. E, como reação, buscamos formas de desqualificar a felicidade alheia – um mecanismo muito comum. Somos terríveis.

Por isso, entenda o verdadeiro amigo como quem que divide o ombro para chorar, mas também sorri ao ver seu sorriso. E que se alegra com suas conquistas, até quando a própria vida não foi capaz de satisfazer-lhe os desejos. Esses merecem respeito e consideração, por saberem que amar é respeitar o outro como ele é.

Psique: Romances pautados em disputa ou anulação têm de tudo, menos amor

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Hand sweeping heart from the floor with brush cleaner.

Uma verdadeira história de amor não tem preço, não há nada que a substitua. E o amor que eu falo aqui não é exatamente aquilo que pregam os românticos, excessivamente floreados. Refiro-me às relações de verdade, possíveis, recheadas de cumplicidade, afetuosidade, respeito. Tudo feito de maneira recíproca, harmônica, sem envolver medo ou competitividade.

Acho linda a imagem que Rubem Alves usou para descrever o bom funcionamento de uma relação: deve ser uma partida de frescobol, na qual um parceiro deve tentar compensar a falha do outro para manter a bola em jogo – e não uma disputa de tênis, cujo objetivo é fazer uma jogada indefensável. Na prática, entretanto, vemos muito mais Roland-Garros e Wimbledon que brincadeiras à beira do mar.

E o que é pior: muitos ainda confundem concessão com anulação. Em vez de compartilhar a vida, abrem espaço e servem de degrau para que o outro possa se realizar. Fazem do bem-estar do parceiro a fonte prioritária de gratificação – chegam até a esquecer aquilo que trazem como valores genuínos, verdadeiros prazeres, crenças e ambições.

Carentes por natureza
Quando é assim, amar sai caro demais. Tem o preço de uma vida. A frustração de chegar num determinado ponto do trajeto e perceber que somos um engano, que somos personagem na história de alguém, mas não sabemos qual é a nossa própria. É pior que a clandestinidade: é não ter o direito de existir além da relação. É concentrar todo o poder no outro e dele depender para não morrer à míngua.

Nem um, nem dois, nem três. São incontáveis os casos semelhantes que acompanho, já acompanhei – e, bem provável, hei de acompanhar. E não é exclusividade minha. Todos os meus colegas têm histórias semelhantes a relatar.
E por que isso acontece? Porque somos carentes por natureza. Porque não sabemos mais construir relações baseadas na reciprocidade. Porque idealizamos um amor perfeito, imaculado. Porque ficamos apavorados diante da solidão – sem percebermos que, quando estamos em relações dessa qualidade, já vivemos sozinhos. Não queremos perder o que já não temos, uma falácia.

Só mistificamos a dor da solidão quando não confiamos naquilo que somos, na capacidade de nos reinventarmos. Estamos tão acostumados a aplicar nossos recursos para sanar as necessidades do outro, mas nem sempre acreditamos que eles serão suficientes para manter nossa qualidade de vida. Outra falácia.

Silêncio perturbador
Na fantasia, o silêncio e a passividade são uma forma eficaz de evitar um mal-estar. Mas não é verdade. Não é a contestação quem pare o problema, ela só desperta aquele que já está adormecido.

Discutir é a melhor forma de resolver um desentendimento: se cada um apresenta seus argumentos, com o máximo de clareza e a menor passionalidade possível, o que está torto se endireita. Ou será reconhecido por ambos como algo sem solução. Assim, solucionado estará. Deverão chegar a um acordo sobre o que fazer com esse fato.

Não há relação mais importante que a nossa individualidade. Inclusive, se soubermos preservá-la, teremos um romance ainda mais saudável, consensual, maduro – e, principalmente, sem o ranking do quem pode mais. É a receita do frescobol de Rubem Alves. “Ninguém ganha para que os dois ganhem.”

 

Psique: Negar o passado do outro demonstra insegurança com a própria história

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Paris, France - March 10, 2013: Old black and white and sepia photos at flea market. There are more than 20 flea markets in Paris.

Vidas não tem rascunhos, nem ensaios. Tudo é à vera, com chances de correção mas sem a possibilidade de rasuras. Edificam-se mais a partir dos erros, que dos acertos. É óbvio, mas temos uma dificuldade enorme para aceitar esse fato. Especialmente quando falamos do passado do outro. Ainda mais nas relações amorosas. Nos apoiamos na grande tolice de crer que o outro nasceu no dia em que nos conheceu.

Ciúme, inveja, avareza, vaidade. Quatro dos sete ditos pecados capitais servem de pilares para essa crença mesquinha. Não aceitar os passos percorridos pelo outro é um exercício de egoísmo, é querer negar-lhe o direito de ter uma história. E isso não acontece à toa.

Geralmente, evidencia os nós que nós mesmos não conseguimos desatar no nosso próprio caminho. Os equívocos que cometemos. A incapacidade de finalizarmos processos e relações de forma honrosa e apaziguada. Medimos o outro com nossa régua torta: e queremos que ele apague de si as memórias pois temos, em nosso armário, caveiras não sepultadas.

Somos nossa história

Quando conheço uma pessoa, entro em contato com uma história complexa, que a moldou. Inclusive, se me interesso por alguém, devo ser grato a esta história pregressa. É justamente ela que fez esse ser interessante. Mais que os fatos do passado, vale saber o que cada um fez com a vida que teve.

Um velho sábio me ensinou que, quando nos batem à porta, perguntamos “quem é?”. Nunca “quem foi”, para que não sejamos injustos. No entanto, devemos valorizar trajetórias. Chegamos aqui porque fomos quem fomos.

Clarice Lispector sintetiza isso lindamente: “Antes de julgar a minha vida ou o meu caráter, calce os meus sapatos e percorra o caminho que eu percorri, viva as minhas tristezas, as minhas dúvidas e as minhas alegrias. Percorra os anos que eu percorri, tropece onde eu tropecei e levante-se assim como eu fiz. E então, só aí poderás julgar.”

Histórias e personagens não desaparecerão por um simples desejo. Elas se transformarão. É difícil mudar, mas tudo muda: sentimentos, escolhas, crenças. Em resumo, pessoas se reinventam. Para ter o mínimo de paz e segurança, é preciso acreditar nisso. Confiança é lastro em relações de qualquer natureza. Caso contrário, até convive-se, mas sem qualidade.

Novo nascimento
A função maior de cada encontro entre pessoas é fazer despontar, em cada indivíduo, aspectos ainda não experimentados de sua alma. De certa forma, não nascemos quando conhecemos ninguém. Mas renascemos, reinventamo-nos. E isso é maravilhoso.

Grande parte desse movimento se dá a partir da escuta. A partir dela, percebemos o caráter do outro – ou seja, a forma como ele se porta diante das situações. Mas não é só. Vemos aí também a nossa reação. Inclusive a bobagem de quem quer afrontar o imutável. Não tente competir com o passado de alguém. Ele é, você apenas está.

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