Self

O orixá de 2012 – por iyá Stella Azevedo Ode Kayodê

Esse blog é autoral. Mas, por concordar com os ensinamentos de iyá Stella de Oxóssi, iyalorixá do ilustre Ile Ase Opo Afonjá, dedici reproduzir o artigo produzido por ela para o jornal A Tarde, de Salvador (BA). No começo do ano a polêmica é sempre a mesma: qual orixá regente para o período que se inicia? 

***

Foto: Margarida Neide /Ag. A TARDE/ 08.11.2011

Este é um artigo que possui objetivo esclarecedor. Tentarei tornar compreensível um assunto que surge todo princípio de ano. A imprensa faz reportagens e as pessoas indagam uma das outras ou perguntam a si mesmas sobre o orixá que influenciará o novo ano que surge. Fazem isso na tentativa de adivinhar o que é preciso ser DIVINADO.

Adivinhar é fazer conjecturas sobre um tema usando a intuição, o que todo ser humano pode fazer. Divinar, todavia, é entrar em comunicação com o sagrado, através de rituais guiados por sacerdotes. É claro que todo ser vivo, por possuir uma parcela divina, é capaz de se conectar com os deuses. Mas a utilização de oráculos, os quais fornecem informações mais precisas sobre o destino da comunidade, requer uma preparação especial e um estilo de vida que propicia à intuição, inerente a todos, apresentar-se de maneira muita mais clara. A intuição se transforma aqui em revelação: quando os véus que encobrem os mistérios são retirados pelos deuses, a fim de que nossa jornada aconteça de uma maneira orientada e, assim, possamos cumprir a tarefa que nos foi legada com o mínimo de percalços possível, o que torna a vida bem mais leve.

Os leitores acostumados com os artigos que escrevo poderão estranhar a formalidade deste texto. É que “há tempo para tudo”: para contar anedotas, falar poesias, refletir sobre a vida… Esse tema pede seriedade! Faço isso porque creio ser a imprensa o meio ideal para esclarecer assuntos, que só não são melhor comentados por falta de oportunidade e conhecimento. Tendo agora essa oportunidade que me é dada pelo jornal A TARDE não quero desperdiçá-la. Mesmo tendo eu a consciência de que nada se modifica de um dia para o outro, aproveitarei o momento para tentar fazer com que a população melhor compreenda as respostas do oráculo trazido pelos africanos para o Brasil, esperando que as sementes aqui jogadas possam um dia florescer e dar bons frutos.

A pergunta correta não é qual o orixá que rege o ano, e sim qual o orixá que rege o ano para aquelas pessoas que cultuam estas divindades e estão vinculadas à comunidade em que o Jogo de Búzios foi utilizado. Se isso não for bem esclarecido e, consequentemente, bem compreendido, parece que todos os sacerdotes erram em suas respostas, uma vez que uma Iyalorixá diz que o orixá do ano é Iyemanjá, enquanto outra diz que é Oxum, ou um Babalorixá diz que é Oxossi. Mesmo correndo o risco de o texto ficar enfadonho, insistirei em alguns pontos, a fim de elucidá-los melhor. No nosso Terreiro, o Ilê Axé Opo Afonjá, o regente do ano 2012 é Xangô. A referida divindade, que se revelou no Jogo feito por mim, não está comandando o mundo inteiro, nem mesmo o Brasil ou a Bahia. Ela é o guia das pessoas que, de uma maneira ou outra (mais profunda – como é o caso dos iniciados; ou mais superficial – os devotos que freqüentam a “Casa”), estão vinculadas a mim enquanto Iyalorixá, ou ao Terreiro em questão.

O leitor, diante dessa explicação, poderá ficar confuso e sentir necessidade de perguntar: “E eu, que não cultuo orixá e não tenho relação com o Candomblé, não serei orientado nem protegido por nenhuma divindade?”. A resposta é: Claro que sim! Por aquela que você cultua ou acredita. Um católico, ou um protestante, será guiado pelos ensinamentos de Jesus; um budista, pelas sábias orientações de Buda… Outra pergunta ainda poderá surgir: “E quanto às pessoas que não são religiosas, elas ficarão a toa?”. Não, é claro que não. Essas serão guiadas e orientadas pela natureza, que é a presença concreta do Deus abstrato. Seus instintos, protegidos por suas cabeças e corações, conduzirão suas vidas de modo que seus passos sigam sempre na direção correta.

Que Xangô – divindade da eloqüência, da estratégia, do fogo que produz o movimento necessário a todo tipo de prosperidade – possa receber, de meus filhos espirituais, cultos suficientes para que fortalecido possa torná-los cada vez mais fortes para enfrentar as intempéries que todo ano traz consigo. Obrigado Ano Velho pelas experiências passadas para Ano Novo.

***

Clique aqui para ler o conteúdo no site do jornal A Tarde.

Outras Ondas – Eu não gosto de Natal

 

Falsas esperanças não me agradam. Hipocrisia não me agrada. Metas sem comprometimento não me agradam. Assistencialismo barato não me agrada. Por essas e outras, cheguei a uma conclusão: eu não gosto de Natal. Pode ser duro demais ler isso enquanto luzes piscam em seu redor, enquanto o verde-e-vermelho predominam na paisagem. E, sinceramente, nem costumo ser mal humorado. Mas o que me desagrada é tudo aquilo que corrói a verdadeira proposta natalina.

Jesus pode ser interpretado como um mito, como um deus, ou como um filósofo. Não importa. Em todas essas faces – e em outras incontáveis – ele se manifesta como um ideal de transformação para a humanidade. Ele nasce com uma missão crística, de salvação. Mas, nos seus trinta e poucos anos de vida antes do calvário, ele pôde experimentar muito da convivência entre os homens.

Para mim, Jesus se define como um mestre. Conseguiu exercer a maestria por ter um olhar diferenciado: ele sabia fugir do evidente, criar em cima dos fatos e, assim, pregar seus ensinamentos de fraternidade, amor e paz. Sua importância foi de conseguir conciliar dois valores fundamentais: inteligência e sensibilidade. Jesus foi um bravo, homem de coragem. Não pelo martírio – isso lhe veio como imposição. Mas sim por contestar um sistema de crenças falhas e embotadas. E essa é a sua mais valorosa lição, o exemplo a ser copiado.

Mas tudo isso fica pequenininho diante dos shoppings, dos panetones, das reuniões familiares para a troca de presentes e julgamentos. Jesus vira uma espécie de homenageado que não tem direito a comparecer na festa. Logo ele que nos ensinou a comemorar as passagens importantes da vida com abundância. Mas, se eu fosse Jesus, não iria nem que fosse chamado. Celebrar com quem deturpa seus valores é quase compactuar com eles. Coisa para quem não se ama. E isso seria para ele contradizer seu mandamento unificado: amar os outros como a si próprio? Jesus era um homem forte até mesmo para perdoar. E ensinou que esse gesto só é praticado quando o arrependimento é sincero, quando os ressentimentos se dissipam.

O caminho de Jesus é a verdade, que liberta. Se é assim, devemos nos comprometer com a realidade que nos abarca, com os afetos que nos povoam, com o desenvolvimento da nossa consciência. Assim, estaremos sendo fiéis a ele. O Jesus fofinho, deitado na manjedoura em um estábulo, é em si um sinal de resistência: filho de uma adolescente solteira que se dizia fecundada espiritualmente (imagina o rebu que não deve ter sido) e apontado como um risco para a lei vigente. Viveu na concepção e no nascimento o peso da controvérsia e da perseguição. Situações que culminaram em sua imolação.

Jesus inspira a coragem para a verdadeira missão do homem: servir, de forma fraterna, reconhecendo-se nas virtudes e também nos limites. Com um olhar um pouco mais atento, podemos perceber que não faltam formas de ajudar o mundo a ser melhor. A data é uma oportunidade anual para que tentemos entender o que realmente faz a diferença na vida. Coisas que marquem nossa contribuição essa família chamada humanidade. Reitero: não tenho nada contra festejos, comemorações, comilanças. Mas os valores edificantes devem vir antes do consumismo, do exagero e da ganância. Saibamos ordenar as prioridades.


Outras Ondas* – Um Cristo entre nós

Milhões de pessoas mundo afora comemoram hoje a ressurreição de Jesus, a ascensão do Cristo. A imagem do redentor, aquele que nos oferece a chance de transformação em prol da vida, perde espaço para os apelos comerciais da data para muitos. Outros enxergam a Páscoa com alívio – ou fim do martírio da Paixão. Mas não se atentam para lições preciosas enviadas por Jesus nos últimos momentos terrenos.

Jesus aparece calmo e sereno, uma figura bastante diferente daquela que havia padecido três dias antes na cruz. Superava a dor da incerteza, já não duvidava mais da proeza de Deus, nem tinha mais uma atitude de revolta contra Ele. A ressurreição era o indício que faltava para que se completasse o caráter messiânico na figura do homem.

Esse é o grande mistério que envolve a história de Jesus. Ele, que já conhecia a função divina a partir dos milagres que realizou, precisava enfrentar o peso do Calvário, a sina enunciada há séculos por profetas como Isaías. Só ao conviver com as incertezas provocadas pela dor física, ao entender os limites do corpo, ele experimentaria (e despertaria) a compaixão diante dos demais. Jesus se faz, assim, Deus e irmão da humanidade.

Ao ressuscitar, Jesus não se desprende instantaneamente ao corpo mortal que assumiu. O faz como um instrumento de convencimento de seus seguidores para a grande verdade: não devemos ignorar o plano físico para elevarmos o espírito – um depende do outro para que possa se realizar. Mesmo após a ressurreição, Jesus sente fome e alimenta-se de peixe e mel, como narrado em Lucas. Alimentos sagrados, símbolos da vida e da ternura.

A escolha de Maria Magdalena como a primeira testemunha de sua condição divina também é indecifrável. Textos apócrifos indicam que ela seria, na verdade, esposa de Jesus. Outros interpretam que a ligação dos dois estava associada à fidelidade extremada desenvolvida por ela em relação ao Mestre – a quem oferece uma das mais bonitas lições de humildade, ao lavar-lhe os pés e enxugar-lhes com os cabelos. Ela, que absorvera grande parte dos ensinamentos ao acompanhar Jesus nas pregações, foi a eleita para levar aos demais a notícia da confirmação da santidade.

No entanto, o olhar de fascínio diante da maravilha da ressurreição que certamente Magdalena transmitia não foi suficiente para despertar a credulidade entre os discípulos. Jesus precisou recorrer novamente ao corpo para poder dobrar o pragmatismo dos próprios seguidores. A cada aparição, lidou com a fé titubeante dos companheiros. Eles não conseguem reconhecê-lo de imediato, mas o fazem somente depois de ouvirem, ditas pelo “estranho”, as palavras já enunciadas pelo Mestre, ou ao vê-lo repetir gestos emblemáticos, como a divisão do pão tal qual fizera na última ceia.

Tais passagens das aparições apontam para uma das grandes lições do cristianismo. Ao transfigurar-se, Jesus nos ensina a reconhecê-lo a partir dos propósitos e atitudes, e não pela imagem física. Esse é o grande desafio dos verdadeiros seguidores do Cristo: perceber que as injustiças por ele rechaçadas continuam em vigor no mundo contemporâneo e perceber que as lições por ele deixadas precisam ser praticadas – e não simplesmente reproduzidas oralmente, sem uma vivência visceral e verdadeira. Este é, certamente, a forma mais genuína de cultuá-lo.

O legado deixado por Jesus transcende qualquer consideração religiosa e serve de inspiração para um comportamento digno e fiel. Jesus ensinou a santidade da retidão em prol da consciência, deu aos irmãos homens a chance de remissão dos pecados a partir da ética e da atenção diante dos atos praticados. A imagem do homem sangrando na cruz muito diz sobre a vida do nazareno, porém não é a sua melhor definição. Consigo enxergá-lo de forma muito mais plena na imagem daquele que experimentou e reconheceu a existência e os limites do corpo, mas soube manter-se firme no propósito do desenvolvimento. Afinal, o sacrifício só é válido quando responde a uma finalidade nobre. Jesus foi um ser em prol da vida, abundante em justiça e felicidade.

Outras Ondas* – Fé cega, faca amolada

A espiritualidade é um valor inerente ao homem, motivo pelo qual a religião torna-se um fenômeno cultural intrínseco à civilização. No entanto, nem sempre o que é apregoado em cada templo ou livro religioso desemboca em um bem para o indivíduo. Tivemos esta semana uma triste prova disso. Um rapaz ceifou as expectativas de uma dúzia de famílias, além de interferir diretamente no futuro de outras centenas. Sim, todos os estudantes da Escola Municipal Tasso Silveira, além de vizinhos (e de todos nós, espectadores da tragédia) terão a vida transformada pela ação de alguém que, contaminado por pensamentos religiosos distorcidos, praticou o gesto mais vil que um ser humano pode cometer: retirar a vida de um semelhante.

É impossível dizer que o crime tenha sido motivado pelo dogma de alguma religião específica – até porque o fato de ele ser ex-aluno da escola e ter alvejado mais meninas que meninos é bastante significativo. Mas a carta deixada pelo autor da barbárie revela que o comprometimento psíquico que apresentava exercia um diálogo franco com o fascínio despertado por ideais religiosos. Há falas sobre pureza, pedidos de perdão a Deus, tudo em um tom missionário. Wellington Menezes de Oliveira entra para o hall de milhares de pessoas que agridem, matam e degredam em nome da fé.

Não quero dizer aqui que o valor redentor das religiões não seja ainda o principal caminho para que os indivíduos alcancem os valores da espiritualidade. Somos naturalmente atraídos por templos e ritos, aprendemos com os ideais morais e éticos lá ensinados. Mas esses também podem ser instrumentos para o desenvolvimento de neuroses e psicoses. A determinação dependerá do nível de ajustamento psíquico do indivíduo, da capacidade dele de distinguir minimamente as orientações dogmáticas de determinações fanáticas.

Para Wellington, a religião era o veículo da doença. Assim também o foi com a morte do filho do cartunista Glauco. Tais exemplos configuram situações extremadas. No entanto, não é preciso ter mortes para que enxerguemos o quão nociva pode ser a crença desmedida. Recentemente, os jornais baianos noticiaram a destruição de mais um terreiro de candomblé nos subúrbios de Salvador, por seguidores de outras denominações religiosas. Nem precisamos sair de Brasília: as imagens da Prainha precisaram passar por uma restauração completa em virtude de tantas agressões que sofreram. Ainda esta semana, observamos mais uma manifestação de crença nociva: uma garota do Entorno teve parte do corpo queimado com álcool em chamas, ao participar de um ritual de exorcismo encomendado pela família a um médium – um vizinho com 12 anos de idade.

A religião é um canal prático onde o homem busca conectar-se com o desconhecido, por crer que ele poderá provê-lo com respostas aos seus anseios. Muitas vezes, encontra tais explicações ou alcança a resignação necessária para o enfrentamento do problema. A segurança da ponte, no entanto, dependerá da perícia de quem caminha sobre ela. O problema é que esse desconhecido, que chamamos Deus, inspira mistérios e maravilhas capazes de cegar a razão. Em alguns casos, pode afastá-lo do terreno da realidade: é como se a ponte se rompesse, impedindo o retorno ao mundo real. Tomado pelo fascínio, o indivíduo não consegue discernir entre as vontades que lhe tomam e as questões éticas que deve seguir. A verdade ganha um tom unilateral: de um lado, eu e minhas crenças; do outro, tudo que se opõe a mim e a elas. Fé cega, faca amolada. Quando não há diferenciação entre pessoa e crença, é difícil distinguir quem manda em quem.

Óbvio e felizmente, os casos de fanatismo patológico, desses que levam à morte e à destruição, são pouco comuns e repudiados em nossa sociedade. No entanto, não podemos nos esquecer que o mal se esconde na intolerância nossa de cada dia. Manifesta-se sempre que criticamos o diferente, que olhamos com desdém as crenças que não nos atendem. Deixamo-nos contaminar até mesmo nos templos que decidimos seguir – competimos como filhotes que despertam o seio que os nutrem, sem entender que a saciedade está ao alcance de todos. Criamos escambos com Deus, inocentes da incapacidade de ludibriá-lo.

As religiões têm, em comum, uma figura de totalidade, pureza e sabedoria. E é essa a fonte que nutre a nossa espiritualidade e ética. Nem sempre conseguimos encontrá-la diretamente nos lugares que indicam com letreiros a presença da divindade. Os grandes mestres nos alertam sobre isso. Jesus ensina que a casa do Pai tem muitas moradas. Khrisna diz que as religiões são contas de um colar, e que ele (Deus) é o fio que as une. Lições genuínas de amor ao próximo.

Outras Ondas* – Banidos do paraíso

“E lhe deu esta ordem: de toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque no dia em que delas comeres, certamente morrerás. (…) vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe o fruto e comeu, e deu também ao marido, e ele comeu. Abriram-se, então, os olhos de ambos; e, percebendo que estavam nus, coseram folhas de figueira, e fizeram cintas para si”.

O mito de Adão e Eva, protagonistas da criação na cultura judaico-cristã, vai além de uma explicação religiosa sobre o surgimento da humanidade. A linguagem simbólica presente nas escrituras bíblicas também nos apontam para o sacrifício inevitável à ampliação da consciência.

O fruto do conhecimento é descrito, antes de tudo, como algo bastante perigoso: ao simplesmente tocá-lo, o homem ganha a capacidade do discernimento entre o bem e o mal das coisas – e, obviamente, de si próprio. Ganhamos, com ele, a chance de discernir e julgar. Passamos a atribuir valores ao que nos cerca.
Tais atributos são despertados no homem graças à influência da serpente. No texto bíblico, ela não é apresentada como o demônio, mas sim como um fruto da criação divina – “o mais sagaz dos animais selvagens”. Ela oferece à mulher a tentadora chance de aproximar-se a Deus. Ele reinava como único detentor do poder do entendimento. Comendo do fruto, podemos entendê-lo melhor, pois sentimos a força de Sua plenitude.

Mas, antes de qualquer maravilha, a primeira percepção do homem ao comer do fruto do conhecimento é perceber a própria vulnerabilidade, expressa pela nudez. Estar despido nos remete à inocência e à naturalidade. Mas, desde Adão e Eva, interpretamos tamanha transparência como fragilidade. Ganhamos roupas, que nos protegem do julgamento alheio e promove a interação entre os iguais sem a exposição crua da intimidade.

Jung chamou essas “roupas” de personas – termo vindo do latim, usado para designar as máscaras usadas por atores na antiguidade. As máscaras são tão múltiplas quanto são os nossos campos de interação com os demais: a profissional, a amiga, a mãe, a religiosa, a ativista, a vizinha… Mudam constantemente a partir do que a situação exige. Deus presenteia o casal primogênito com peles de animais que deverão ser usadas a partir de então. Uma imagem bastante significativa: ao “nos vestirmos de animais”, associamos simbolicamente atributos inerentes aos mesmos. Tal assimilação é a base de diversas culturas religiosas primitivas. Entre elas, a dos xamãs. O exercício da consciência passa também pelo reconhecimento de cada uma dessas personas: o quanto são parecidas entre si, as dificuldades que temos em trocá-las e a confusão entre o que representam e o que realmente somos.

A morte presente na advertência de Deus sobre a árvore do conhecimento está relacionada ao fim da inocência. Ela nos limita, mas também protege. Quando somos tocados pela consciência, somos chamados a agir. Os olhos abertos não veem somente a própria nudez, mas avaliamos o cenário que nos envolve. Com tamanha percepção, fica impossível continuar vivendo no Éden. Banidos, Adão e Eva passam a observar a completude do paraíso como um desejo inalcançável, protegido por anjos que impunham espadas. Instigante, mas perigoso – assim como era a Árvore da Vida.

A consciência também impõe sobre os dois grandes sacrifícios. Para Adão, a necessidade do trabalho (“do suor do rosto comerás o teu pão”) e a consciência da morte (“até que tornes à terra, pois dela foste formado: porque tu és pó e ao pó tornarás”). Eva foi condenada a sofrer com os sofrimentos da gravidez e a dor do parto, além da submissão ao marido.

A serpente, pivô do rompimento entre Deus e homens, também recebeu punições severas. Ganhou o título de o mais vil dos animais, maldito entre todos os demais, e de eterna inimiga da mulher. Uma imagem intrigante: aquela que seduz é também a que mais amedronta o feminino. Não é a toa que a cobra e o falo estão sempre tão associados…

No mito, foi somente quando Adão e Eva foram expulsos do paraíso que puderam perceber os atributos da humanidade. Ganharam ali o livre arbítrio, a capacidade de decidir e, consequentemente, a necessidade de lidar com os resultados de cada decisão. Despertar a consciência é um exercício angustiante, mas compensador. A reflexão nos ensina sobre limites e virtudes. Se nos bane do paraíso, favorece o verdadeiro desenvolvimento. Herdamos, todos nós, as penas impostas dos pais míticos da humanidade. Mas também deles ganhamos a chance de explorar o mundo e de nos superarmos diante das adversidades. O fruto do conhecimento é doce e gratificante o suficiente para que deixemos de experimentá-lo.

* Outras Ondas é publicada aos domingos no blog da Revista do Correio: www.correiobraziliense.com.br

nivas gallo