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Outras Ondas* – Um Cristo entre nós

Milhões de pessoas mundo afora comemoram hoje a ressurreição de Jesus, a ascensão do Cristo. A imagem do redentor, aquele que nos oferece a chance de transformação em prol da vida, perde espaço para os apelos comerciais da data para muitos. Outros enxergam a Páscoa com alívio – ou fim do martírio da Paixão. Mas não se atentam para lições preciosas enviadas por Jesus nos últimos momentos terrenos.

Jesus aparece calmo e sereno, uma figura bastante diferente daquela que havia padecido três dias antes na cruz. Superava a dor da incerteza, já não duvidava mais da proeza de Deus, nem tinha mais uma atitude de revolta contra Ele. A ressurreição era o indício que faltava para que se completasse o caráter messiânico na figura do homem.

Esse é o grande mistério que envolve a história de Jesus. Ele, que já conhecia a função divina a partir dos milagres que realizou, precisava enfrentar o peso do Calvário, a sina enunciada há séculos por profetas como Isaías. Só ao conviver com as incertezas provocadas pela dor física, ao entender os limites do corpo, ele experimentaria (e despertaria) a compaixão diante dos demais. Jesus se faz, assim, Deus e irmão da humanidade.

Ao ressuscitar, Jesus não se desprende instantaneamente ao corpo mortal que assumiu. O faz como um instrumento de convencimento de seus seguidores para a grande verdade: não devemos ignorar o plano físico para elevarmos o espírito – um depende do outro para que possa se realizar. Mesmo após a ressurreição, Jesus sente fome e alimenta-se de peixe e mel, como narrado em Lucas. Alimentos sagrados, símbolos da vida e da ternura.

A escolha de Maria Magdalena como a primeira testemunha de sua condição divina também é indecifrável. Textos apócrifos indicam que ela seria, na verdade, esposa de Jesus. Outros interpretam que a ligação dos dois estava associada à fidelidade extremada desenvolvida por ela em relação ao Mestre – a quem oferece uma das mais bonitas lições de humildade, ao lavar-lhe os pés e enxugar-lhes com os cabelos. Ela, que absorvera grande parte dos ensinamentos ao acompanhar Jesus nas pregações, foi a eleita para levar aos demais a notícia da confirmação da santidade.

No entanto, o olhar de fascínio diante da maravilha da ressurreição que certamente Magdalena transmitia não foi suficiente para despertar a credulidade entre os discípulos. Jesus precisou recorrer novamente ao corpo para poder dobrar o pragmatismo dos próprios seguidores. A cada aparição, lidou com a fé titubeante dos companheiros. Eles não conseguem reconhecê-lo de imediato, mas o fazem somente depois de ouvirem, ditas pelo “estranho”, as palavras já enunciadas pelo Mestre, ou ao vê-lo repetir gestos emblemáticos, como a divisão do pão tal qual fizera na última ceia.

Tais passagens das aparições apontam para uma das grandes lições do cristianismo. Ao transfigurar-se, Jesus nos ensina a reconhecê-lo a partir dos propósitos e atitudes, e não pela imagem física. Esse é o grande desafio dos verdadeiros seguidores do Cristo: perceber que as injustiças por ele rechaçadas continuam em vigor no mundo contemporâneo e perceber que as lições por ele deixadas precisam ser praticadas – e não simplesmente reproduzidas oralmente, sem uma vivência visceral e verdadeira. Este é, certamente, a forma mais genuína de cultuá-lo.

O legado deixado por Jesus transcende qualquer consideração religiosa e serve de inspiração para um comportamento digno e fiel. Jesus ensinou a santidade da retidão em prol da consciência, deu aos irmãos homens a chance de remissão dos pecados a partir da ética e da atenção diante dos atos praticados. A imagem do homem sangrando na cruz muito diz sobre a vida do nazareno, porém não é a sua melhor definição. Consigo enxergá-lo de forma muito mais plena na imagem daquele que experimentou e reconheceu a existência e os limites do corpo, mas soube manter-se firme no propósito do desenvolvimento. Afinal, o sacrifício só é válido quando responde a uma finalidade nobre. Jesus foi um ser em prol da vida, abundante em justiça e felicidade.

Outras Ondas* – A arte de ser educado

Por favor, obrigado, silêncio ao escutar, gentileza e atenção com os demais. Valores que remotam à vida em sociedade se transformam em artigo raro entre crianças e adolescentes. Ter educação foi promovido a um elogio, em vez de ser uma obrigação. Muitas vezes, força-se uma assimilação entre o comportamento de baixa civilização com a espontaneidade e rebeldia inerentes às essas fases do desenvolvimento humano. Admitamos: não sabemos como educar nossos filhos.

Crianças e adolescentes vivem o ápice da ausência de limites. É como se, ao assim serem tratados, fossem contemplados com uma dita liberdade. Há ao menos três décadas, educadores e psicólogos alertam para a ausência de preparo para no exercício da maternidade e da paternidade. A dedicação excessiva ao trabalho afasta pais e mães da convivência necessária com os filhos. Abrem mão disso numa busca incessante pelo ter, sem perceberem que, aos poucos, passam a mercantilizar também as relações afetivas: conquistam-se filhos com presentes, em vez de carinho e confiança. Consequentemente, eles aprendem que o desenvolvimento pessoal depende do que conseguimos acumular de riquezas na vida, além de desenvolverem um egoísmo exacerbado diante do que é “seu”.

Oferecer limites é ensinar que a unipotência não é um atributo humano. Consequentemente, aprende-se a lidar com as frustrações e desenvolve-se o poder da resiliência: a elasticidade diante das adversidades, com o intuito de manter-se íntegro em vez de ceder à deformação. Perde-se assim a chance de aprender a sábia lição de que “o que não nos mata nos fortalece”. Uma pessoa que não admite dificuldades não lida bem com as frustrações. E, para evitá-las, tentará burlar regras ou desenvolverá um poder de destruição quando se sentir contrariada. Ou, numa situação extrema e cada vez mais comum, sucumbem às drogas e à marginalidade.

A boa educação não depende de boas regras, e sim de bons exemplos. Içami Tiba afirma que educar é orquestrar o crescimento. Ele defende o conceito de cidadania familiar, onde as regras de dentro de casa devem valer na rua, e vice-versa. Não existe indivíduo educado, e sim família educada.

Esse talvez seja o grande desafio ao pensarmos as próximas gerações. Cobramos o que não temos, e que não estamos dispostos a desenvolver. Cultivamos a intransigência, mas queremos filhos maleáveis. Optamos pelo caminho mais fácil para a resolução de nossos problemas, mas queremos crianças íntegras. Mantemos uma postura extremamente competitiva, e sentimos vergonha ao percebê-las tacanhas e raivosas diante de uma derrota.

Um indivíduo sem limites tem uma dificuldade imensa para entender o sentido do verbo cuidar. Não consegue conjugá-lo consigo mesmo e nem com os outros. A educação, nesses moldes, prescinde o exercício do compromisso e da responsabilidade. Educar é entender que algo que é ruim precisa e pode ser melhorado. É despertar à consciência de que cada ato, palavra ou intenção gerará consequências capazes de alterar – positiva ou negativamente o cenário que se tem em redor. É desenvolver a empatia, o “colocar-se no lugar do outro”.

Tais pensamentos aproximam bastante o gesto de educar com o desenvolvimento de uma ética. Revisa, assim, conceitos distorcidos de felicidade. A única forma de corrigir as incongruências biopsicossociais do mundo contemporâneo é investir na valoração do ser e do servir – em vez do ter e do aproveitar. Para que nossas crianças e jovens entendam que esses valores merecem atenção e dedicação, vão antes precisar de bons exemplos. Antes de desenvolver qualquer senso crítico, o ser humano aprende a viver por assimilação de imagens experimentadas. Desenvolver a própria educação é a melhor fórmula para educar.

Outras Ondas* – Fé cega, faca amolada

A espiritualidade é um valor inerente ao homem, motivo pelo qual a religião torna-se um fenômeno cultural intrínseco à civilização. No entanto, nem sempre o que é apregoado em cada templo ou livro religioso desemboca em um bem para o indivíduo. Tivemos esta semana uma triste prova disso. Um rapaz ceifou as expectativas de uma dúzia de famílias, além de interferir diretamente no futuro de outras centenas. Sim, todos os estudantes da Escola Municipal Tasso Silveira, além de vizinhos (e de todos nós, espectadores da tragédia) terão a vida transformada pela ação de alguém que, contaminado por pensamentos religiosos distorcidos, praticou o gesto mais vil que um ser humano pode cometer: retirar a vida de um semelhante.

É impossível dizer que o crime tenha sido motivado pelo dogma de alguma religião específica – até porque o fato de ele ser ex-aluno da escola e ter alvejado mais meninas que meninos é bastante significativo. Mas a carta deixada pelo autor da barbárie revela que o comprometimento psíquico que apresentava exercia um diálogo franco com o fascínio despertado por ideais religiosos. Há falas sobre pureza, pedidos de perdão a Deus, tudo em um tom missionário. Wellington Menezes de Oliveira entra para o hall de milhares de pessoas que agridem, matam e degredam em nome da fé.

Não quero dizer aqui que o valor redentor das religiões não seja ainda o principal caminho para que os indivíduos alcancem os valores da espiritualidade. Somos naturalmente atraídos por templos e ritos, aprendemos com os ideais morais e éticos lá ensinados. Mas esses também podem ser instrumentos para o desenvolvimento de neuroses e psicoses. A determinação dependerá do nível de ajustamento psíquico do indivíduo, da capacidade dele de distinguir minimamente as orientações dogmáticas de determinações fanáticas.

Para Wellington, a religião era o veículo da doença. Assim também o foi com a morte do filho do cartunista Glauco. Tais exemplos configuram situações extremadas. No entanto, não é preciso ter mortes para que enxerguemos o quão nociva pode ser a crença desmedida. Recentemente, os jornais baianos noticiaram a destruição de mais um terreiro de candomblé nos subúrbios de Salvador, por seguidores de outras denominações religiosas. Nem precisamos sair de Brasília: as imagens da Prainha precisaram passar por uma restauração completa em virtude de tantas agressões que sofreram. Ainda esta semana, observamos mais uma manifestação de crença nociva: uma garota do Entorno teve parte do corpo queimado com álcool em chamas, ao participar de um ritual de exorcismo encomendado pela família a um médium – um vizinho com 12 anos de idade.

A religião é um canal prático onde o homem busca conectar-se com o desconhecido, por crer que ele poderá provê-lo com respostas aos seus anseios. Muitas vezes, encontra tais explicações ou alcança a resignação necessária para o enfrentamento do problema. A segurança da ponte, no entanto, dependerá da perícia de quem caminha sobre ela. O problema é que esse desconhecido, que chamamos Deus, inspira mistérios e maravilhas capazes de cegar a razão. Em alguns casos, pode afastá-lo do terreno da realidade: é como se a ponte se rompesse, impedindo o retorno ao mundo real. Tomado pelo fascínio, o indivíduo não consegue discernir entre as vontades que lhe tomam e as questões éticas que deve seguir. A verdade ganha um tom unilateral: de um lado, eu e minhas crenças; do outro, tudo que se opõe a mim e a elas. Fé cega, faca amolada. Quando não há diferenciação entre pessoa e crença, é difícil distinguir quem manda em quem.

Óbvio e felizmente, os casos de fanatismo patológico, desses que levam à morte e à destruição, são pouco comuns e repudiados em nossa sociedade. No entanto, não podemos nos esquecer que o mal se esconde na intolerância nossa de cada dia. Manifesta-se sempre que criticamos o diferente, que olhamos com desdém as crenças que não nos atendem. Deixamo-nos contaminar até mesmo nos templos que decidimos seguir – competimos como filhotes que despertam o seio que os nutrem, sem entender que a saciedade está ao alcance de todos. Criamos escambos com Deus, inocentes da incapacidade de ludibriá-lo.

As religiões têm, em comum, uma figura de totalidade, pureza e sabedoria. E é essa a fonte que nutre a nossa espiritualidade e ética. Nem sempre conseguimos encontrá-la diretamente nos lugares que indicam com letreiros a presença da divindade. Os grandes mestres nos alertam sobre isso. Jesus ensina que a casa do Pai tem muitas moradas. Khrisna diz que as religiões são contas de um colar, e que ele (Deus) é o fio que as une. Lições genuínas de amor ao próximo.

Outras Ondas* – Onde está você agora?

Enquanto você lê esse texto, diversos estímulos tentam atrair a maior parcela da sua atenção. O botão intermitente na base da página do computador informa o convite de um amigo para um bate-papo pela internet. Com ele, é reavivada a lembrança da conversa dura que você não queria ter tido na semana passada. É inevitável planejar o que será dito no encontro de mais tarde. Você sente o chamado de todos esses elementos e teme deixar de lado algum deles – afinal, somos cobrados a responder a tudo ao mesmo tempo, como se isso provasse uma eficiência em viver. O problema é que, nesse exercício, descuidamos de algo fundamental: o que se passa com você agora, neste exato momento.

De tão natural, a consciência do presente deveria ser um exercício automático. No entanto, o tempo tem sido interpretado cada vez mais como uma ferramenta de difícil manuseio. Talvez porque temos uma tendência natural a nos deslocarmos entre os extremos do passado e futuro, afogando-nos em memórias inúteis e ansiedades vãs. Nessa gangorra de ilusões, sentimos uma extrema dificuldade de encontrar o ponto de equilíbrio: manter-se no eixo da realidade torna-se uma tarefa complicada demais. Ignoramos que a resolução das distorções do passado e a realização do futuro dependem de um olhar acurado sobre o hoje.

A mente tem uma tendência natural a fugir da realidade. E isso não é um mal do mundo contemporâneo. Se assim o fosse, não teríamos o “problema do tempo presente” como uma das principais ocupações das milenares filosofias orientais, como o budismo. Elas alertam o homem para o mal inerente à ilusão do passado e do futuro. Ilusões que aprisionam, escravizam, tolhem a chance de escolha. Resistir à realidade é mergulhar no sofrimento, na ausência de expectativas, na impossibilidade de ação.

Enquanto vagueia pelo passado, a mente revisita conteúdos (conflitantes, em sua maioria) e, com isso, atualiza emoções e afetos. Esses nos contaminam de forma contundente. As emoções invadem o corpo e reproduzem desnecessariamente as sensações físicas desagradáveis, já experimentadas. Recordar é reviver, isso é certo. Mas nem sempre reviver significa elaborar, refletir sobre os fatos vividos para transformá-los em vivências.

Quando olha para frente, a mente nos contamina com projeções, desejos e anseios. Uma vida precisa de objetivos, é verdade. Mas nem sempre ter um planejamento tão minucioso do futuro é a garantia de que conseguiremos realizá-lo a contento. Assim sendo, o nível de expectativas que se projeta é proporcional à frustração que sofreremos quando nossos planos não são concretizados da forma como concebemos. Frustrados, nos sentimos fracos para novas conquistas. Automaticamente, esse estado nos conduz ao passado, à vida não vivida – e assim as dores da ilusão se tornam ainda mais intensas.

O exercício da atenção plena é a solução para evitar o sofrimento. Somente no estágio de vigília diante da própria vida que conseguimos entrar em contato com a nossa essência e também com a essência das coisas. Constatar e acatar a realidade não deve ser confundido com conformar-se com os problemas – é justamente o contrário: entendemos o que é realmente um problema e concentramos forças para solucioná-lo.

A atenção plena é a base das práticas meditativas justamente por promover a ascensão da consciência a níveis superiores. Muitos dizem que não sabem meditar, ou que não têm paciência para isso. A melhor estratégia para cultivar esse estado de presença nada mais é que perceber o que se passa por dentro e por fora. É como se, momentânea e gradualmente, nos “retirássemos” e assumíssemos um papel de “espectador” da própria mente: em vez de combater os pensamentos que insistem em ocupá-la (o que lhes daria ainda mais força), e passamos simplesmente a contemplá-los. Parece elementar, mas só se percebe a dificuldade enfrentada para domesticar os próprios pensamentos quando decidimos fazê-lo. Por esse motivo, o estado de presença é uma prática que só se constrói com continuidade.

Aos poucos, os conteúdos superficiais perdem espaço e acessamos um estágio maior de relaxamento, atenção e plenitude. Com ele, conseguimos ter uma visão mais clarificada de si e do mundo; clareza esta que será imprescindível para discernirmos entre os conflitos reais, que precisam ser enfrentados, e as armadilhas ilusórias, que nos tomam tempo e energia.

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“Haverá um ano em que haverá um mês, em que haverá uma semana em que haverá um dia em que haverá uma hora em que haverá um minuto em que haverá um segundo e dentro do segundo haverá o não-tempo sagrado da morte desfigurada.”
Clarice Lispector

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