Self

Psique: “Será que eu preciso de análise?”, questões que levam pessoas ao divã

Crédito: Metrópoles/iStock

Puzzle head brain concept. Human head profile made from brown paper with a jigsaw piece cut out. Choose your personality that suit you

1. “Lutei muito para chegar aqui, mas acho que não mereço desfrutar desse bom momento, uma vez que meus parentes não alcançaram o mesmo êxito.”
Moça, você precisa de análise. Como você disse, não foi sorte ou desonestidade que levaram você ao êxito – e sim o seu próprio esforço. Não vou questionar o fracasso da sua família (essa questão fica para eles), mas você não precisa se culpar pelo sucesso, e sim recompensar-se com ele.

2. “Quando vi, já tinha comido a geladeira toda, bebido o que tinha em casa. Mas não estou fazendo mal a ninguém e posso parar assim que quiser.”
Moço, você precisa de análise. Hábitos compulsivos e autodestrutivos falam de uma dificuldade para encontrar algum sentido para a vida. Não tente normalizar aquilo que já foge do seu controle.

3. “Não é possível que não reconheçam meu talento, enquanto promovem aquela pessoa estúpida.”
Moça, você precisa de análise. Quem precisa reconhecer o tamanho do seu talento é você mesma. De duas, uma: ou você não é tão eficaz como imagina, ou não está valorando seu potencial e se mantém atrelada a um lugar que não lhe respeita. Vamos refletir um pouco sobre uma decisão a tomar, em vez de apenas reclamar?

4. “Cada vez que fulano posta uma foto, fico mal. Queria trocar com vida com ele, nem que fosse por um dia. Por aqui tudo é meio sem graça”.
Talvez fulano dissimule melhor os problemas que enfrenta. Estabelecer redes sociais como parâmetro de bem estar é uma ilusão: os filtros farão sempre a vida do outro mais interessante. Será que você deve levar isso tão a sério? Qual a falta que gera seu sofrimento hoje? Moço, vamos agendar um horário?

5. “Vivo para meus filhos, com prazer. Não gosto nem de pensar no dia em que eles saírem de casa.”
Moça, você precisa de análise. Anular-se tem origens em uma baixa autoestima, e principalmente numa expectativa projetada sobre o outro. Uma hora, seus filhos deixarão de depender de você. Ignorar isso é abrir uma porta para o adoecimento – físico ou psíquico, muitas vezes usado para que eles se sensibilizem e devolvam os cuidados que você os empenhou. Melhor prevenir.

6. “Quero procurar um feiticeiro para que minha namorada não deseje outro homem.”
Moço, você precisa de análise. Nada contra o feiticeiro, mas achar que é normal querer anular a vontade de outra pessoa, a seu bel prazer, parece não ser uma boa. Não sei se é uma questão de autoestima baixa (afinal, vovó já dizia “quem não me quer não me merece”), ou de egoísmo exacerbado (quem é você para achar que merece controlar alguém?). Ou das duas coisas juntas.

7. “Tenho dedo podre, não arrumo ninguém que preste, não tenho sorte no amor”.
Será que você quer mesmo se relacionar, e lidar com todas as renúncias que isso gerará? Seu grau de tolerância para o outro está satisfatório? Você está disposto a mudar, a acessar os seus lados mais contraditórios? A desarmar-se da competição, a compartilhar, a confiar? Acho que você já sabe, né?

8. “Análise é uma besteira, pagar para alguém me ouvir e sequer dizer o que devo fazer? Já tenho amigos. Ninguém é capaz de determinar o que é melhor para minha vida.”
Concordo com esse final, moça. Mas, sim, você precisa de análise. Seu discurso soa um tanto rancoroso, parece que perdeu a crença no outro. A análise vai além de uma conversa: nela, exercitamos a escuta e a reflexão. Por exemplo, percebemos quantas oportunidades desperdiçamos, ou quanto insistimos em erros, além de entendermos sobre a força do inconsciente no nosso cotidiano.

9. “Sou analista e não preciso mais disso. Leio muito e, com isso, consigo entender plenamente dos meus problemas, controlar as situações.”
Jung nos diz que a teoria é fundamental, mas que ela não deve matar a sensibilidade. Pelos olhos do analista, entramos em contato com personagens internos, até então desconhecidos. Este outro olhar nos ajuda, inclusive, a escaparmos da inflação: a fantasia de que estamos acima do bem e do mal. Moço, talvez você seja dos que mais precisam.

Outras Ondas – A boa loucura

“Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, nunca convivi com pessoas muito ajuizadas”. As palavras da psiquiatra Nise da Silveira têm repercutido bastante nas redes sociais. Em tom de alerta e alento, validam a admissão das nossas loucuras corriqueiras, abafam a vontade de ser normal em excesso.

Uma coisa tem me despertado a atenção no exercício clínico: a quantidade de diagnósticos prefabricados, que validam a existência de pessoas que me procuram. Sob a justificativa de desmistificação da psiquiatria, se espalham nas prateleiras das livrarias títulos que elucidam os transtornos psíquicos – daqueles clássicos, como a histeria, aos vanguardistas, como dos transtornos disso ou daquilo. Num mundo onde todos buscam justificativas para o sofrimento e a frustração (naturais à trajetória, vale ressaltar), logo esses livros se transformam em best sellers. E seus autores, em celebridades.

Informação e conhecimento não ocupam espaço, é fato, mas interferem no que somos. Quem já teve aulas de psicopatologia sabe o quão desesperador pode ser reconhecer em si diversos sintomas das mais aterrorizantes formas de loucura. Potencialmente, temos todas elas guardadas. Mas em poucos (estima-se que em aproximadamente uma a cada dez pessoas), o sintoma se deflagrará verdadeiramente como uma psicose. Resumindo: tenhamos calma, tenhamos prudência.

Minha escolha pela escola junguiana deriva, principalmente, de uma crença fundamentada pelo psiquiatra suíço: não devemos nos ater às doenças, e sim aos doentes. Até porque isso seria injusto demais com o ser humano: coisificá-lo como o hospedeiro para um mal alienígena e independente, de forma simplista. Jung nos ensina a olhar através do sintoma, para saber o que ele representa, como chegou, quem o trouxe e, principalmente, para que ele está ali. A doença, em si, não é um problema e, como tal, seria um erro querer bani-la sumariamente. Ela é a estratégia de crescimento, encontrada por alguma instância psíquica. Uma vez compreendido o seu sentido, o sintoma cessa.

Nise da Silveira percebeu isso muito bem, ao despontar a reforma psiquiátrica brasileira. Percebeu que não adiantava combater a esquizofrenia de seus internos, mas sim dar voz às vozes que atormentavam seus doentes. Fez isso a partir da arte. E de pessoas tidas como incapazes, conseguiu extrair um rico conjunto de telas e esculturas, que hoje compõem o acervo do Museu de Imagens do Inconsciente. As obras não traduzem a dor de uma alma atormentada, e sim os tormentos da alma de todos nós. Mostram que, no fundo, somos todos muito semelhantes: uns, no entanto, têm exacerbadas a fragilidade, a imperfeição e a sensibilidade que compõem o ser humano.

Concordo com Nise e me sobe um arrepio quando me vejo diante daqueles que caçam soluções imediatas para suas loucuras. Muitas vezes, é a partir delas que temos a fresta para perceber o potencial de humanidade que mais traduz tal indivíduo. Quando perdemos a “insanidade cotidiana”, somos recompensados com a impessoalidade, os gostos robóticos e padronizados – belo presente, não? Os gregos encontraram em Dioniso a personificação divina da insanidade. Ele é o deus do êxtase e da mania, ou seja, dos desejos imperativos que a mente instala sobre o homem.  Mas que também traduz a vontade dos outros deuses, a partir da inspiração. Nas palavras de Platão, em Fredo: “As maiores bênçãos nos chegam através da loucura, quando é enviada como uma dádiva dos deuses”.

John A. Stanford completa, dizendo que o efeito de Dioniso (ou seja, da loucura) sobre os homens não era o de produzir efeitos extravagantes ou a destrutividade, e sim a verdade: “uma verdade tão profunda que não pode ser alcançada pelo intelecto, mas que pode ser conhecida pelo espírito vivo”, distante de repressões ou de oposições entre o certo e o errado, permitindo ao  espírito humano a liberdade “para ser seu mais verdadeiro eu” (em Destino, amor e êxtase – Ed. Paulus).

Em vez de combater a loucura, ou de tentar limita-la a rótulos psicopatológicos, podemos tomar-lhe proveito. O próprio Jung conduziu grande parte dos seus escritos após presenciar, ou vivenciar, experiências dignas de diagnóstico. Mas soube dar uma borda ao conteúdo vindo do inconsciente, transformando-o em subsídio para a criação de uma teoria que revolucionou a psicologia. O problema não é experimentar a loucura, é não saber o que fazer com ela.

 

Outras Ondas* – O que preenche um divã

A prática da psicoterapia me ensina, a cada dia, a mais valorosa lição do ofício do analista: o ganho compartilhado. Cada vez que um cliente senta diante de mim, busco seguir a máxima ensinada pelo velho Jung: esqueça tudo que leu, tudo que viveu, quem você é ou deixou de ser. Concentre-se diante do novo, desconhecido e surpreendente mundo da psique de quem se apresenta. Só assim se consegue desempenhar o serviço da promoção e ampliação da consciência.

Falar é visto como um instrumento terapêutico desde a antiguidade. Nos primeiros hospitais gregos, os pacientes passavam por uma longa entrevista – independentemente de terem ido parar ali por um problema do corpo ou da alma. Só então receberiam o tratamento necessário, em prol da cura.

Essa é a base para o exercício das diferentes escolas de psicologia e de psicanálise. O fundamento é de que, a partir da expressão de suas angústias, o indivíduo ganha a possibilidade de compreender melhor sua realidade, favorecendo as transformações necessárias. A melhora, no entanto, não está simplesmente no falar, mas principalmente no “ser ouvido”. Nesse ponto, entra a eficácia do terapeuta: ele não deve simplesmente escutar os relatos apresentados, mas principalmente ter a atenção plena sobre o que é dito. E, a partir de então, intervir com perguntas que favoreçam a reflexão não óbvia. Assim se desenvolve o contaponto necessário, que colocará em xeque os conceitos prefabricados que o cliente ou paciente carrega.

Desconhecer é uma prerrogativa básica para que um bom trabalho de análise se desenvolva. É preciso se despir de preconceitos e de teorias que condicionam nosso olhar ao mais fácil. Abandonamos a tentadora fórmula da “cama de Procrusto”, o personagem da mitologia grega que, passando-se por um anfitrião impecável, oferecia pouso aos viajantes. Ao serem recebidos, os visitantes se deparavam com uma cama de ferro para dormir. O problema é que Procrusto impunha a seus hóspedes uma sina terrível: os que eram grandes demais para a cama tinham as pernas cerradas; os baixinhos eram esticados para ocuparem-na por inteiro. Males de quem enxerga a realidade como uma medida imutável. Males igualmente nocivos dentro do setting terapêutico, quando se ignora a unicidade do cliente ao tentar enquadrá-lo numa determinada patologia ou distúrbio. Jung também nos ensina: tratemos doentes em vez de doenças.

Um ganho só é mútuo quando o sacrifício entre as partes é mútuo. Por um lado, é necessário manter uma relação desigual entre as partes de um processo de análise, para que a função terapêutica não se confunda com uma amizade – improdutiva, injusta e oportunista, onde um dos “amigos” se beneficia economicamente do outro. Ao manter o desprendimento e a entrega diante de cada atendimento, o terapeuta o transforma em um momento único de promoção da consciência. Favorece a quem atende, assim como favorece a si mesmo.

São diversos os motivos que levam alguém a iniciar um processo de análise: a necessidade de superar, a busca pelo autoconhecimento e até mesmo um falso status que a atividade envolve. No entanto, o que só se descobre durante o processo é que, para a grande maioria, a motivação inicial declarada é pequena demais diante do que será abordado. O mergulho vai além daquilo que foi estimado, coloca o indivíduo em confronto com elementos até então ignorados. Dói, angustia, revolta. Da mesma forma, o ganho também costuma ser maior que o esperado. Gratifica, elucida, facilita. Ao nos jogarmos para dentro, percebemos que somos muito maiores do que a consciência era capaz de perceber. E, cada vez que voltamos à tona, emergimos mais fortes, mais inteiros. Fiéis a aquilo que verdadeiramente somos.

“Um encontro de dois: olho a olho, cara a cara
E, quando estiveres perto, arrancarei teus olhos
E os colocarei no lugar dos meus,
E tu arrancarás os meus olhos
E os colocarás no lugar dos teus,
Então te olharei com teus olhos
E tu me olharás com os meus.
Assim até a coisa comum serve ao silêncio e
Nosso encontro é a meta sem cadeias:
O lugar indeterminado, um momento indeterminado,
A palavra indeterminada ao homem indeterminado.”
J.L. Moreno.

Outras Ondas* – Qual será a minha loucura?

Ninguém mais fica triste num luto, todos se deprimem. Crianças não são mais travessas, elas têm distúrbios neurológicos que as transformam em hiperativas. A falta de interesse por uma disciplina enfadonha, associada à baixa persistência para compreendê-la, transforma o adolescente em uma vítima de transtornos de déficit de atenção. Afetos não servem mais como agregadores de experiência de vida humana: são doenças que merecem tratamento. A insanidade seria a nova majestade do mundo?

O verso “de perto ninguém é normal”, popularizado por Caetano Veloso em Vaca profana, ganha novas atribuições no mundo contemporâneo: a tal normalidade, vista antes como um desejo comum, torna-se pequena demais para se viver. Todos têm ou precisam ter um distúrbio qualquer, uma intolerância qualquer, um comprometimentozinho que seja. Cada vez mais se recorre aos rótulos patológicos na corrida desenfreada para justificar as limitações pertinentes ao humano, inconcebíveis num mundo que prima perigosamente pela perfeição. E junto com tais rótulos, vêm de maré os milagrosos fármacos – dotados do poder excepcional de transformar a todos em pessoas normais, adequadas ou livres do sofrimento de viver.

C. G. Jung ensina em suas obras que o grande exercício do terapeuta é de enxergar o doente em vez da doença. Assim sendo, pouco importa a nomeclatura científica usada para definir o quadro de sofrimento que o indivíduo apresenta. O que vale é a sua história e a sua capacidade de se adaptar a ela. Atualmente, inclusive, até mesmo os profissionais chegados aos rótulos sofrem com a síndrome da desatualização: a cada dia, surgem novas patologias, que desbancam as anteriores pela especificidade que conseguem alcançar. Caçam um dos tais rótulos que se enquadre nas queixas. E muitas vezes se esquecem de investigar as origens do conflito, as limitações subjetivas que ele impõe e, principalmente, os benefícios que ele traz para o doente e para quem o cerca.

No olhar junguiano, cada doença tem uma função específica por estar ali. Elas são a expressão de uma psique que não consegue, por motivos diversos, adaptar as inclinações do mundo interior com o que encontram no mundo externo. O sintoma surge como a manifestação da tensão que se forma. É a voz da psique denunciando o que não percebemos, ou (na maioria das vezes) não queremos perceber. Nesses parâmetros, a medicação desenfreada para normalizar que se vê perturbado não passa de um disfarce diante das evidências. Ao cessar o efeito, o conflito se retoma com ainda mais vigor.

Isso não significa dizer que a evolução dos fármacos não devolva a plenitude de atividades para muitos que se encontram em crise. O complicador está na profusão do uso dos mesmos como o método mais eficiente de tratamento e cura, dispensando o autoconhecimento. Para chegar a ele, é necessário lidar com uma difícil lição: o enfrentamento dos problemas – complicado demais por nos levar a reconhecer o nosso papel diante da dependência efetiva diante daquilo que nos faz mal, dos ciclos de sabotagem que estabelecemos para mantê-lo, do olhar intransigente com o qual fitamos as necessárias mudanças íntimas.

Bem mais fácil é atribuir dores e frustrações a enzimas cerebrais descompensadas. Não somos preguiçosos diante dos desafios impostos pela vida, somos doentes – vítimas, dignas de piedade e de novas chances para repetir os mesmos erros. Despejar a culpa nos distúrbios, déficts e depressões é um exercício cômodo de quem busca ignorar que as emoções alteram a fisiologia do cérebro na mesma proporção que acontece ao contrário. Para perceber a verdade dessa premissa, faça a experiência: busque uma memória desagradável e veja como o seu corpo reage instantaneamente.

Pautar a cura no enfrentamento desenvolve um dos principais atributos para o desenvolvimento da psique: a resiliência. Essa é a qualidade do bambu: ao ser direcionado pelo vento em diferentes direções, ele desenvolve mais nós e torna-se mais forte, resistente e, ao mesmo tempo, flexível. Resiste assim às intempéries vindouras. Conosco, ocorre da mesma forma: fortalecemo-nos na medida em que nos percebemos capazes de vencer um problema com nosso próprio esforço, sem nenhum tipo de ferramenta que burle as regras do viver. O que não mata, fortalece – já diziam os antigos. Um atleta livre de aditivos artificiais percebe muito mais sabor na vitória, se comparado com aquele que venceu sob a tensão de ser pego no exame antidopping. Isso porque o primeiro conheceu, verdadeiramente, os seus limites e as possibilidades de superá-los.

Outras Ondas* – Lembro, mas não aconteceu

“A diferença entre as falsas memórias e as verdadeiras é a mesma das joias: são sempre as falsas que parecem ser as mais reais, as mais brilhantes”
Salvador Dalí.


Você jura que deixou o talão de cheques em uma determinada gaveta. É capaz de lembrar os detalhes: usou uma folha para pagar o encanador e deixou ao lado do cartão de visita da amiga decoradora. Mas você revira a gaveta, a estante, e nada. Dias depois, depois inclusive de você ter pedido um novo talão ao banco, os cheques aparecem dentro de uma bolsa há muito não usada – justo aquela que você levou para a festa de aniversário da tal amiga.

E se aquela lembrança que lhe parece inquestionável fosse, na verdade, fruto da imaginação? Meio assustador, não? O fenômeno das falsas memórias (FM) é muito mais corriqueiro do que se pode imaginar e atinge a todos, em maior ou menor proporção. Na maioria dos casos, não está relacionada a distúrbios neuropsíquicos.

O estudo das falsas memórias é objeto de investigação mundo afora, principalmente motivado pela psicologia forense: nesses casos, qualquer distorção de lembrança pode levar à condenação de inocentes. Mas não é de hoje que ela ocupa os cientistas. No início do século passado, Freud chegou à conclusão de que nem tudo que é lembrado realmente aconteceu. Na observação dos relatos dos pacientes, percebeu que a memória de eventos traumáticos narrados durante as sessões de análise podiam ser, na verdade, frutos de fantasias infantis ou de desejos primitivos. Tal conclusão se tornou um dos pilares da psicanálise. O tema deu origem ao livro Falsas memórias (Ed. Artmed), um compilado de textos de pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, organizados pela psicóloga Lilian M. Stein.

Muitas vezes, a FM é provocada por uma fragmentação no que foi vivido: a realidade perde espaço para a interpretação que temos do tema. Surge espontaneamente, a partir de associações próprias do indivíduo. Em geral, funciona como no exercício de completar as lacunas: para a compreensão de um determinado fato, as “brechas” que faltam são completadas inconscientemente com informações não-verdadeiras. Em algumas situações, porém, esses meros “detalhes” são capazes de alterar o conteúdo com grande intensidade, sem que nos demos conta disso. No processamento da memória, muitas vezes a psique prioriza a essência (sentido) do que foi vivido e não a história literal (fatos). Também é comum a troca de fontes de informação, como no exemplo citado na abertura: o talão de cheques foi tão associado à amiga decoradora a ponto de “criarmos” a FM de ter visto o cartão de visitas dela na mesma gaveta – ignoramos que o elo entre eles era a bolsa.

As FMs também podem ser sugeridas ou “plantadas” na psique por agentes externos. Assim como no dito popular, uma mentira bem contada pode se tornar uma verdade – acreditamos a ponto de ter a certeza de que aquilo realmente aconteceu. “Detalhes” narrados por outros são acrescentados naturalmente para enriquecer a história vivida. Ou, em alguns casos, nos apoderamos daquilo que sequer foi vivido. Não é simplesmente uma mentira: temos a nítida certeza de que aquela é a realidade.

Apesar de não se debruçar sobre a questão das FM, Jung fala da memória como um dos componentes indispensáveis ao funcionamento psíquico. Nem sempre é voluntária e controlável como desejamos: “…normalmente ela [a memória] é cheia de truques, assemelha-se a um cavalo ruim que não se deixa guiar”. Para ele, esse caráter arredio está relacionado à carga afetiva que cada
vivência provoca. Assim ela pode se tornar viva e constantemente atualizada na consciência a partir das lembranças. Pode também migrar para o inconsciente como conteúdos descartados, por serem banais, ou reprimidos, por serem conflituosos demais para serem lembrados.

Obviamente, é preciso observar a freqüência e a intensidade das FMs no cotidiano. Apesar de serem comuns a todos, o nível de comprometimento que elas oferecem às atividades corriqueiras e o mal estar que provocam merecem
atenção: elas podem surgir como indícios de algum distúrbio psíquicos ou neurológicos.

E você, tem certeza de tudo que se lembra?

* A coluna Outras Ondas é publicada aos domingos no blog da Revista do Correio: www.correiobraziliense.com.br

nivas gallo