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Outras Ondas – O dever, a obrigação e o compromisso

Numa vida controlada por relógios e calendários, o tempo se transforma num artigo de luxo. Quando pequenos, no período em que ainda vivíamos sob o controle dos pais, contávamos com agentes externos que nos lembravam sobre aquilo que aguardava por nós. Muitos, mesmo após vencida a infância e a adolescência, ainda preferem transferir a agentes externos tal responsabilidade. Terceirizam uma cobrança que, a rigor, deveria ser natural ao desenvolvimento da personalidade. Apegam-se a dogmas religiosos, que coíbem aquilo que a ética pessoal não foi capaz de frear. São tiranizados por chefes exigentes, que forçam a um aprimoramento profissional. Se deparam com aquela namorada linha-dura, que dá as diretrizes de um relacionamento maduro. Pagam até por um personal trainer que os acorde e cobre a realização das atividades físicas até o fim, em vez de se encarregarem com a própria saúde.

Dever, obrigação e compromisso. A quem cultiva a autoindulgência e o prazer a qualquer custo, parecem sinônimos – desagradáveis, por sinal. No entanto, são aspectos que constituem o desenvolvimento pessoal em todas as instâncias. Passos fundamentais para o amadurecimento, a prosperidade e a integridade.

Etimologicamente, o compromisso está ligado a uma promessa prévia – seja por acerto tácito ou contratual – entre duas partes. Estas se dispõem a estabelecer um resultado final, com contrapartidas predeterminadas, a fim do bem comum. Coisa bem rara de se encontrar nos dias atuais. Inclusive, a capacidade de burlar regras em nome do próprio benefício tem sido cada vez mais interpretada como virtude. E, sem o comprometimento, os deveres se transformam em medidas elásticas: adiadas, corrompidas, reformuladas ao longo do jogo. “Só não me mexa nos meus direitos”, gritam de lá os descompromissados, sem nenhum constrangimento.

Quando não há possibilidade de escapatória, o dever (mesmo que previamente acertado e bem razoável ao que se exige) se transforma em obrigação. Acorrentados a grilhões pontiagudos, tentamos mobilizar a sensibilidade de alguém que nos resgate das ingratas tarefas (na verdade, do que precisa ser feito). Mostramos o quanto o trabalho nos consome, como a corrupção me prejudica, o quão injustiçado sou, mesmo fazendo tudo que faço. Obrigação rima com vitimização, e a vitimização escraviza. Enquanto nos queixamos das oportunidades escassas, deixamos de aproveitar aquelas que foram oferecidas previamente – e que encaramos como um enfado inútil, por não termos a força de persistir até que o resultado desponte.

A falta de compromisso com agentes externos reflete o descompromisso do indivíduo consigo mesmo. Tal processo sinaliza uma falha no processo de maturação psíquica. O sujeito que não se imbui de responsabilidades ainda convive numa crença mágica de resolução espontânea dos problemas, semelhante ao que ocorre com as crianças de colo. Na mente primária, há uma associação de que os danos produzidos por si são insignificantes. Acredita-se também que, quando a situação ficará insustentável, surgirá algum elemento interno que sanará a desconforto. O mecanismo tenta reproduzir a relação mãe-bebê, na qual a primeira se encarrega de eliminar do pequeno de qualquer situação desagradável, quase que imediatamente.

Isso explica também por que as pessoas que têm dificuldade de estabelecer compromissos também apresentam elevados graus de intolerância à frustração, além de se julgarem os maiores merecedores de qualquer benefício. Mal compreendem que, ao corresponderem a esse impulso, distanciam de si uma série de oportunidades e pessoas – especialmente, aquelas que estão compromissadas com a própria realidade. As dinâmicas enraizadas no inconsciente apontam tendências de comportamento. Cabe ao indivíduo a tarefa árdua e dolorosa de desenvolver e aprimorar a própria consciência, a fim de reduzir os cacoetes comportamentais e os danos por eles causados.

Acostumar-se com o compromisso, acatar o dever e não encara-lo como obrigação é uma forma de preparação para uma vida mais próspera, em todos os sentidos. Quando percebemos que cabe a nós avaliar o que precisa ser feito, e tratar de fazê-lo, otimizamos nosso tempo e nossa energia – paramos de desperdiça-la com reclamações inúteis. O maior e mais produtivo comprometimento que estabelecemos não é aquele firmado em contratos lavrados em cartório. E sim o que acordamos por dentro, conosco.

 

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Meia Um: A casa vermelha

 

Dentro de nós existe uma rua. Nela, nada lembra conjuntos habitacionais, planos urbanísticos ou qualquer coisa que os valha. Cada casa é de um jeito, moldada a partir das necessidades e condições de cada morador. Tem casa de fachada monumental, ostensiva. Tem taperinha, onde vive a espontaneidade. O sobrado alto é usado como torre de controle. Na casa grande, as portas estão sempre abertas para acolher os amigos. A rua é grande, sinuosa, tão populosa quanto é a nossa alma. Logo na entrada, temos uma casa vermelha. Resplandece, como os ipês no auge da seca. Essa é a casa do desejo.

Lá dentro, tudo parece imprescindível. Há sempre uma parede lisa, pedindo um quadro; um cômodo vazio, que exige mobília. A demanda é a lei nesse lar. Nem tudo que se deseja é necessário, é verdade. Mas a falta consome, mobiliza, inquieta. Até quando tudo parece preenchido, vem um estranho desejo de desejar. Quanto mais observamos a casa vermelha, mais ela cresce. Invade, empurra as demais, tomando-lhes o lugar para existir.

A sensação de falta é condição natural ao homem. Marcamos nossa progressão a partir daquilo que adquirimos, do que conseguimos suprir – seja na dimensão material, psíquica, social ou espiritual. O contentamento, entretanto, não chega. O desejo está associado a nossa capacidade de reflexão sobre a própria vida. Estabelecemos, com ele, parâmetros de uma suposta felicidade, que virá a partir de diversos fatores. Queremos ser bem-sucedidos, ou seja, atestar que conseguimos suprir faltas: relacionamentos, estabilidade profissional, conta bancária, saúde, autoimagem… uma lista composta por um sem-número de fatores.

A base de diversas filosofias orientais é uma máxima: a insaciedade é a porta para que adentremos o sofrimento. Uma vez dentro da casa vermelha, o exercício de percorrêla se transforma num martírio. Surge sempre um novo aspecto a ser explorado. Ela é sedutora demais para ser abandonada. O mundo nos diz que é nela que reside a felicidade. Demoramos, inclusive, a perceber o dano que ela nos gera, até que nos decidamos por abandoná-la. Mas, mesmo de fora, ela permanece convidativa, provocante. Impossível encará-la sem que afetos sejam mobilizados.

A falta de algo, ou a incapacidade circunstancial para adquiri-lo, desperta em nós um sentimento distorcido de impotência. Mas, afinal, a impotência é o antônimo de potência ou de prepotência? Seríamos mesmo capazes de conquistar tudo que está na casa dos desejos? Um dos desafios da existência é aprender a distinguir a necessidade da vontade e do desejo. Ou seja, separar aquilo que é verdadeiramente imprescindível para que prossigamos. E elencar as motivações que nos fazem buscar isto ou aquilo. Em geral, a aura de realização que cremos encontrar naquilo que buscamos não se encerra em si: queremos um bom emprego para suplementar um déficit relacional, cremos que um bom casamento repararia as feridas da família de origem, um corpo atraente para disfarçar a baixa autoestima… Ou seja, o desejo deturpa as necessidades reais – age nocivamente, como paliativos que levam a crer que a doença foi curada.

Em suma, verdadeiramente necessitamos de muito pouco para viver – isto é, quando comparado com tudo aquilo que supomos ser primordial, mas que, após cinco minutos de observação mais apurada, percebemos que pode esperar. Sim, na maioria das vezes, adiamos os desejos, como quem não quer ficar órfão deles. Tolice. Desejos são tão profusos como a nossa vontade de sobreviver.

A depressão, apontada como doença do século, pode ser classificada como uma patologia do desejo: da ausência dele, para ser mais preciso. Parece incongruente num primeiro olhar. A questão é que a ausência de desejo não é sinônimo de saciedade. A depressão vem como um vazio, uma dissociação do sentido existencial. Nesse quadro, o desejo se faz necessário como instrumento de cura. Mas não os desejos vazios, que nada traduziam da alma – afinal, é geralmente isso que desperta a doença.

A “boa falta” é aquela que nos leva a compreender que lidamos com um cronômetro em contagem regressiva, escondido na casa escura da incerteza – nunca sabemos quanto tempo nos resta, mas não conseguimos ignorar que ele continua gotejando a vida que se esvai. Para alguns, tal imagem nutre apenas uma angústia. Em outros, propicia o resultado: querem buscar um legado, uma afirmação do que foram enquanto indivíduos, únicos, exclusivos. Geralmente, esses últimos têm como resultado a dita felicidade. Não aquela lida nos parâmetros estatísticos, e sim a que se mede a partir da realização pessoal. Esse é o desejo bem-vindo, que gera bons frutos.

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