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Outras Ondas: Como fazer um amor

Olhar, gostar, desejar, e, se houver correspondência, ficar, vincular, manter, aprofundar. Parece uma matemática simples, mas, na prática, desenvolver uma relação não é algo tão cartesiano assim. Deveria ser, mas não é. Temos uma tendência natural às complicações, uma vez que as nossas decisões são, na verdade, uma concessão realizada pelos complexos afetivos que nos constituem e povoam. Ou seja: nossas experiências acumuladas, e as devidas emoções a elas atribuídas, ditarão as formas como cada um conseguirá se relacionar. E cada psique vai operacionalizar a construção de um amor como um empreendimento particular.

Os mais desejados, e invejados, são aqueles ditos amores espontâneos: surgem de uma forma despretenciosa, mas, na medida em que se moldam, se transformam em obras inovadoras, criativas. São Monalisas, Guernicas, Girassóis, Nascimentos de Vênus: únicos, indiscutíveis, marcantes, definitivos, sem modelos nem ensaios nem comparações. Influenciam os demais, mesmo sem que se proponham a isso. Almejamos sempre obras primas, mas quase nunca somos capazes de produzi-las de fato.

No mundo contemporâneo, parece que a moda não é construir uma arte própria de amar – e sim lançar mão de algo que preencha as paredes da alma. Espalhamos pelas paredes uns Romeros Britos comprados em feiras de artesanato. Não por gostarmos deles, mas porque parecem que estão em alta. E também por atenderem o propósito de colorir a parede branca, que estampa a nossa angústia existencial. Somos fatalmente sozinhos, e, mesmo assim, tememos nos deparar com a nossa própria companhia. Preferimos vozes dissonantes e que pouco acrescentam, a ouvir aquilo que a alma ecoa. Em tempos em que tudo parece estar conectado, estamos cada vez mais desarticulados das nossas verdadeiras necessidades. E, consequentemente, perdemos a habilidade de cultivar amor.

Há também os amores artesanais, que vão sendo construídos aos poucos. Nutrimos expectativas em torno de seres, adornamo-nos com os nossos mais valorosos recursos, tentamos dar a eles as melhores características. Burilamos e entalhamos como uma peça da mais fina porcelana. Vemo-nos já em uma posição de destaque na nossa casa, como um vaso secular da Dinastia Ming. O preço da idealização é de, muitas vezes, ao colocarmos a peça no forno, encontramos um resultado muito diferente do imaginado: o calor mostrou que faltava amálgama à argila, revelando trincas e tortuosidades. Algumas vezes, ainda fazíamos como os antigos chineses, que preenchiam as fissuras com ouro, na tentativa de salvar o investimento valorizando-o ainda mais. Outras vezes, a própria peça não aceita tal intervenção, esfacelando por completo ao primeiro toque. Resta começar novamente.

Há ainda as relações patchwork, daquelas que tentamos articular peça por peça, encontrando nesse mosaico os fragmentos que mais ornam na constituição de uma harmonia. Sim, pois a perfeição não existe, temos de lidar com imperfeições que levam a um resultado aproximado, mas ainda distante daquele que idealizamos. Talvez, das técnicas, essa seja a que mais traduza a arte do amor possível, daquele que vivemos de fato, distante das idealizações ou negações excessivas. Feliz de quem encontra outras duas mãos dispostas a trabalhar com o mesmo propósito.

Triste mesmo é quem se vê inábil para qualquer tipo de construção: acham que toda e qualquer tentativa de obra sairá torta, errada, insuficiente, feia. Em geral, tem nessa forma de vida um desdobramento da história que viveram: sem boas referências, não foram estimulados a arriscar diante do outro e mantêm, num esboço mental, a nota de que nada de bom vingará. Temem as críticas do outro, a incapacidade de execução de uma obra iniciada, a falta de recursos para mantê-la em desenvolvimento. Afastam a possibilidade de desenvolver o talento de amar, uma vez que não se familiarizam com os pincéis da alma. Acabam por atrofiar as possibilidades, evadindo-se inclusive dos convites de quem se dispõe a conduzir-lhe a mão até que o traço se faça mais firme, mais seguro.

O velho Jung nos ensina que, no terreno do amor, o maior dos erros que podemos cometer é tentar manter uma relação experimental, como quem aposta pouco para não ter prejuízo. São palavras que adoro, e que tenho buscado entender, vivendo-as cada vez mais. Talvez por isso não tenho poupado matéria prima quando o assunto é amar. Tem sido um exercício de coragem.

“O amor tem mais que um ponto em comum com a convicção religiosa: exige uma aceitação incondicional e uma entrega total. Assim como o fiel que se entrega todo a seu Deus participa da manifestação da graça divina, também o amor só revela seus mais altos segredos e maravilhas àquele que é capaz de entrega total e de fidelidade ao sentimento. Pelo fato de isto ser muito difícil, poucos mortais podem orgulhar-se de tê-lo conseguido. Mas, por ser o amor devotado e fiel o mais belo, nunca se deveria procurar o que pode torna-lo fácil. Alguém que se apavora e recua diante da dificuldade do amor é péssimo cavaleiro de sua amada. O amor é como um Deus: ambos só se revelam aos seus mais bravos cavaleiros” (Civilização em transição, 2007, p. 108).

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