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Outras Ondas* – Guerra e Paz

A semana passada foi marcada pelo estarrecimento: tanques blindados das Forças Armadas em contraste com os belos cenários do Rio de Janeiro. Disputavam espaço com carros e ônibus incendiados, em uma cena tenebrosa. O ódio se faz evidente entre polícia e traficantes de drogas. Nós, brasileiros, temos a fama de povo pacífico. Mesmo assim, basta surgir a volta uma situação peculiar como a vivida no Rio para que a belicosidade aflore: apesar dos alertas policiais, cariocas insistem em observar de varandas e viadutos, as brutais ações promovidas pelo combate. Para quem está distante ou busca mais proteção, a imprensa municia a curiosidade com farto material sobre o terror. Repetimos brutais palavras de ordem contra traficantes. A população se rende a uma das energias mais primordiais da civilização: a guerra.

Guerras são inerentes à cultura. E também são inevitáveis. Elas surgem quando, de alguma forma, a ordem estabelecida é ameaçada por algum fator invasor: seja por defesa de um território, posses, amores ou ideais. Ou seja, resume-se na necessidade da manutenção ou ampliação do poder. Não é só um ímpeto pela violência gratuita, e sim pela conquista do poder. A maior arma de todas as guerras é a carga afetiva que as lideranças conseguem mobilizar. Muitas vezes, o envolvimento não parte especificamente da causa em jogo, e sim do encantamento desenvolvido por quem está à frente do pelotão. É necessário ter carisma e inteligência para recrutar soldados. Em um exército, a guerra também serve para evidenciar valores como confiança e a cumplicidade – mesmo que isso seja comprovado a duras penas.

Em diversas mitologias, temos a figura do combate personificada em deuses. Ares, Marte e Ogum são representantes desse mesmo arquétipo: todos trazem consigo o poder da mudança e da inconformidade, o caráter impulsivo e indomável, um quê justiceiro. Mas também são precipitados, inconsequentes, desmedidos. Em muitos de seus arroubos, não conseguem medir os interesses do bem comum. A confiança e a assertividade se transformam em intransigência e, por resultado, vem o sofrimento coletivo.

Jung dizia que o poder da coletividade é nefasto nesses momentos. Quando encontra apoio em semelhantes, a vontade de destruição ganha corpo de medidas desproporcionais. Sentindo-se apoiado pela massa, o indivíduo fica vulnerável diante dos próprios limites. Cometem-se assim atrocidades, resultando na punição de inocentes – o espírito da guerra provoca a cegueira, a incompreensão, o exagero.

Desde a Antiguidade, a guerra é vista também como um espetáculo. Há, de certa forma, um quê de gratificação na vitória do semelhante. Vemos no sacrifício do derrotado uma forma de exorcizar nossos conteúdos sombrios – exorcismo esse feito, muitas vezes, com excesso de preconceito e tendencialismo. Ouvi de uma pessoa próxima que a solução para tudo isso seria o extermínio daqueles que aparecem como participantes do narcotráfico. A medida sumária partiu de uma mulher formada, de cultura elevada, casada e com filhos, de situação econômica estável. Ou seja, uma pessoa “normal”, completamente ajustada aos padrões sociais que se espera. A guerra faz isso: cega para valores sublimes, como a vida.

Quem assiste a uma guerra urbana, como temos nas ruas do Rio, torce pela vitória da ordem, da segurança e da proteção – para a maioria da sociedade, valores representados pela polícia; para os habitantes das favelas, muitas vezes, representada pelo poderio dos traficantes.

Combates mortais funcionam, assim, como elementos de contraste. Não só entre bandidos e mocinhos, mas principalmente entre as disparidades sociais. Da mesma forma, temos a oportunidade de reavaliar nossos valores de humanidade: percebemos o valor da paz, reavivamos a necessidade das conquistas, entendemos a força de uma convicção. Uma situação como essa é preciso ser encarada com responsabilidade: o papel de quem assiste não é tão passivo como parece. Se buscamos a paz, precisamos temer o espírito da guerra e afasta-lo, em vez de exalta-lo. Quanto mais cedo refletirmos sobre isso, mais rapidamente teremos as maravilhas de volta ao Rio.

* A coluna Outras Ondas é publicada aos domingos no blog da Revista do Correio: www.correiobraziliense.com.br

Outras Ondas* – A casa do Pai

A partir do momento em que o homem crê em um deus, uma questão torna-se inerente: onde Ele viverá? A concepção que temos dessa força regente do universo está intimamente ligado ao lugar que designamos para que a divindade resida. Para quem O vê com distanciamento e respeito exacerbado, Deus morará em suntuosos palácios revertidos com ouro e diamantes. Há quem O enxergue na natureza: na simplicidade de uma flor, no vento forte que sopra ou na fêmea que pare. Outros O sentem sutilmente no silêncio, na força reveladora do acaso.

Ao edificar templos, o homem tenta reproduzir um local para que a divindade possa expressar, de forma mais plena, os mistérios e potências que representa. Pedras são consagradas como altares, edificações de arquitetura apontam para os céus, signos e pinturas marcam a presença de Deus. Dessa forma, fieis orientam a própria fé: canalizam nos santuários a possibilidade da iluminação e da salvação. Tentam estabelecer, dessa forma, o religare entre Pai (ou Mãe) e filho – a essência das religiões.

A Torre, o arcano 16 do tarot, é também chamado de “A casa de Deus”. A visão é um tanto assustadora: corpos que caem sobre uma edificação que rui, sob um efeito de um raio que corta o céu. Algo bem diferente da placidez que imaginamos. Interpreto a carta como o fim das ilusões, daquilo que foge à essência. A carta traz referências ao mito bíblico da Torre de Babel, que, visando alcançar o céu, despertou a ira divina. Quando essa carta nos chega (ou quando chegamos à suposta casa de Deus), as aparências e superficialidades caem por terra e revelam o que temos de mais puro e singelo – representado pela Estrela, o arcano seguinte.

Entre os neurocientistas, Deus mora no lobo temporal. Em estudos promovidos com religiosos e ateus, constatou-se que essa é a região cerebral que mais trabalha quando estamos em momentos de contemplação fervorosa ou durante os processos meditativos. Deus (ou a crença que temos n’Ele) também estimularia a amígdala e, com isso, promoveria uma descarga de energia no sistema límbico – que rege nossas emoções e sentimentos. O neurologista e pesquisador indiano Vilayanur Ramanchandran garante que nascemos equipados com um “hardware da fé”, ou seja, somos inerentemente impelidos a crer no inexplicável, no transcendente. Estudos brasileiros feitos com médiuns também encontraram uma pista de Deus na hipófise: os sensitivos têm uma incidência maior de cristalização na glândula-mestra, com profusão desses cristais entre aqueles que têm uma vivência prática da espiritualidade.

A ciência também é capaz de provar que o pensamento é facilitado entre aqueles que têm fé. Desta vez, por conseqüência da ativação do circuito frontopariental do córtex cerebral. Crer em algo, seja lá onde esse algo estiver, pode nos oferecer soluções mais claras para os problemas.

Toda essa nomeclatura é uma novidade desnecessária para a grande maioria das pessoas que acreditam em Deus. Com ou sem ciência, Ele está presente e atuante. Para Jung, esse sentimento é resultado da cultura: enquanto se diferenciava dos animais pela reflexão, o homem acabou criando uma imagem divina interior, a Imago Dei. Esse foi um dos conceitos fundamentais para a formatação da Psicologia Analítica. Jung dizia que era impossível comprovar a existência de Deus, mas que era inegável o papel que a Imago Dei tinha para o desenvolvimento psíquico do indivíduo. As referências de Deus (ou a falta delas) têm intensa participação na forma como cada um enxerga a vida e o mundo. Nelas, encontramos sentido para a manutenção da vida.

Essa Imago Dei teria uma relação direta com o princípio de unificação dos conteúdos psíquicos. Ela representa, ao mesmo tempo, o centro e o todo – representado graficamente a partir das mandalas. Esse tipo de imagem se manifesta espontaneamente em praticamente todas as culturas, no decorrer dos anos, desde eras mais remotas. O círculo é a representação primária da divindade: em constante expansão, sem limites, sem começo e sem fim. Jung estudou as mandalas por anos a fio e concluiu que nelas temos o símbolo mais claro da eternidade e da síntese. Ou seja, daquilo que chamamos de Deus.

O curioso é que a estrutura das mandalas se manifesta em simplesmente tudo o que conhecemos: pegue um fragmento de qualquer matéria (mineral, animal ou vegetal, não importa) e a submeta a uma daquelas poderosas lentes de aumento usadas em análises químicas. Seja qual for a substância analisada, lá estará revelada uma belíssima mandalas, elaborada com uma infinita riqueza de detalhes. Seria uma prova da onipresença divina?

Na Bíblia, temos o anúncio de que a casa do Pai tem muitas moradas. Em Lucas, Jesus ensina onde se encontra o verdadeiro reino de Deus: “Nem dirão: Ei-lo aqui! Ou: lá está! Porque o reino de Deus está dentro de vós”. Garimpar a presença da divindade é inútil quando não nos dispomos a sentir a Sua potência. Não importa saber o endereço de Deus – certamente ele não pára em casa. Ele está sempre com você.

Outras Ondas* – Bach e a história dos florais

Muitos enxergam os remédios florais com descrédito. Outros priorizam o método como opção mais saudável para lidar com emoções em descompasso. O crescente número de adeptos das gotinhas tem levado ao desenvolvimento de diversos sistemas florais mundo afora. O sistema de Bach continua como a principal referência, pelo pioneirismo. Ele foi criado pelo médico inglês Edward Bach entre os anos de 1930 e 1934. Quarenta anos depois, passou a ser reconhecido pela Organização Mundial de Saúde como método alternativo para a promoção da saúde.

A pesquisa do Dr. Bach se deu de forma empírica, a partir da observação das plantas que compunham o as imediações da casa dele. Nessa análise, ele identificou que cada espécie tinha uma forma peculiar de “comportamento” no relacionamento que estabeleciam com as demais plantas e com o meio em que estavam inseridas. Curiosamente, eram padrões bastante semelhantes aos apresentados pelos pacientes que o procuravam. O médico também percebeu que as dinâmicas emocionais dos doentes tinham uma relação direta com o prognóstico: cada um reagia de forma diferente ao mesmo tratamento, apesar de apresentarem a mesma patologia. Entendeu, assim, que para obter a cura real era mais importante compreender a enfermidade, em vez de simplesmente livrar-se dela – conceito que sustenta os estudos sobre a psicossomática.

Admirador e prático da homeopatia, o Dr. Bach usou a mesma base desse ramo da medicina na criação das 38 essências que criou. O princípio ativo dos florais é energético, e não químico. Corresponde a um radical mínimo, que conduz no remédio o padrão de comportamento apresentado pela planta. Dessa forma, criou um sistema seguro: não provoca dependência química, nem interação medicamentosa ou possibilidade de intoxicação. Age somente sobre as emoções, por similaridade. Ou seja: o floral só age se há ressonância nas emoções de quem o usa. Caso contrário, ele não é assimilado – não desperta efeitos indesejados, como ocorre quando usamos tomamos um remédio químico errado.

O sistema é simples por prioridade do criador. O desejo dele era de que cada indivíduo fosse capaz de observar-se e perceber quais seriam as essências mais indicadas para o momento. O legado do médico está registrado em um livro fininho, de linguagem simples e direta – tudo muito condizente com aquilo que acreditava. Os remédios florais do Dr. Bach (Ed. Pensamento) está dividido em duas partes: Cura-te a ti mesmo, onde conceitua essa nova medicina, e Os doze remédios, onde apresenta as 38 essências e a melhor forma de usá-las. A cada dia, o sistema criado por Bach é revisitado por teóricos em terapias alternativas, que tentam ampliar os ensinamentos dos médicos. Nem sempre conseguem fazê-lo com a eficácia do original.

A eficácia das gotinhas em bebês e animais tem desperta a curiosidade entre os mais céticos da comunidade médica, pois, nesses casos, não há como pensar em efeito placebo. A explicação mais condizente para a ação dos florais vem da física quântica, a partir do estudo sobre o dinamismo energético. Um tema complicado demais para tentar explicar aqui – além de irresponsável, seria leviano para com os pesquisadores da área.

Quando observava plantas e flores, o Dr. Bach teve a sensibilidade de perceber o símbolo que se apresentava em cada uma delas. A cura promovida pelos florais também é simbólica: nos evidencia fragilidades, mas não se esgota como possibilidade única e definitiva.

Os remédios das flores têm a capacidade de refinar os canais de percepção de quem os usa. Despertam, dessa forma, uma atenção maior sobre os padrões emocionais que desenvolvem. E é assim que a cura se processa: em vez de combater a ansiedade, por exemplo, o floral nos leva a refletir sobre os fundamentos e conseqüências que esse comportamento gera. Dessa forma, age como um ampliador para a consciência e oferece uma chance de aprimoramento pessoal. Não deve ser buscado como um simples amenizador de sintomas, e sim como um instrumento para compreender a função que eles têm na nossa vida.

* A coluna Outras Ondas é publicada aos domingos no blog da Revista do Correio: www.correiobraziliense.com.br

Outras Ondas* – Quem é meu santo?

Sou adepto do candomblé. E, sempre que comento o assunto, ouço a mesma pergunta: “Quem é o meu orixá?”. A crença da “filiação” espiritual é peculiar a todas as religiões. Mas no caso do culto africano, essa relação se destaca e provoca curiosidade. Isso porque estamos acostumados ao padrão ocidental cristão, onde Deus é visto como uno e pai de todos.

No candomblé, também temos a crença de um deus supremo. Mas acreditamos que esse deus se manifesta de diferentes formas a partir de cada elemento da natureza. Os orixás seriam cada uma dessas manifestações: Oxum nas nascentes de água, Ossain nas folhas, Oyá nos ventos… Da mesma forma, as divindades também regem atributos humanos: Ogum com a coragem, Xangô com a justiça, Oxalá com a paz… Têm qualidades e defeitos: Logun e suas manhas, Omolu e seus rancores, Exu e sua inconsequência… O conhecimento sobre eles é transmitido a partir da mitologia, transmitida oralmente século após século.

Na África, cada um desses deuses era cultuado de forma regional. Assim, todos que nasciam naquela região eram considerados protegidos pelo mesmo orixá. Quando chegaram ao Brasil, os escravos acabaram agregando os orixás de diferentes povoados da mesma região em um culto único. Nascia assim o candomblé.

Isso propiciou uma nova interpretação da “filiação”. Os adeptos são iniciados para aqueles orixás com quem mantém uma relação espiritual mais estreita. É como se, dentro de cada pessoa, existisse uma fração daquela energia da natureza. Cada pessoa tem um orixá predominante, chamado eledá, e um segundo santo, o ajuntó. Além desses, podem existir outras divindades “herdadas” de família ou que façam parte do contexto espiritual.

Em geral, o orixá se torna perceptível pelo temperamento do indivíduo e, em alguns casos, até mesmo por atributos físicos. O olho das pessoas mais experientes na religião é um bom balizador nessa identificação. O jogo de búzios, instrumento de comunicação com os orixás, também indicará as divindades mais afins. Mas só se tem certeza absoluta do regente do noviço no ato da iniciação. Essa é a forma mais usada (e também mais garantida) para indicar o “santo” de uma pessoa – apesar de hoje se multiplicarem métodos diferentes, como a relação com a astrologia, que arrepia os adeptos tradicionais.

Mas e se eu estiver agradando o santo errado, enquanto negligencio o meu verdadeiro orixá? Não creio nessa possibilidade, ainda mais entre aqueles que são apenas simpatizantes, sem vínculos diretos com a religião. Nesse caso, creio que a melhor forma de lidar com o próprio orixá seja conhecê-lo, seja a partir de bons livros ou da vivência em algum templo. Basta avaliar aquele com quem mais se identifica, pelas características que traz. Orixás são naturalmente pais e mães. Como tais, não renegariam a quem quer admirá-los, a quem recorre em busca de auxílio.

Um dos instrumentos usados para marcar esse elo é o fio de contas ou guia, confeccionado com miçangas ou contas nas cores preferidas da divindade homenageada. O colar ritual age como um talismã (atrai bons fluidos) e amuleto (defende de energias nocivas). Depois de pronto, ele é lavado com as folhas litúrgicas do orixá e passa a representá-lo.

Assim como era feito na Grécia antiga, uma das funções dos sacerdotes é correlacionar os dramas pessoais às passagens míticas que envolvem os deuses. Ao rememorar a história dos orixás, promovem o conforto psíquico a quem sofre.

Deixando de lado as questões dogmáticas, a identificação com os orixás age como um bom instrumento de autoconhecimento. Cada deus aparece com traços peculiares de caráter, reagem de formas diversas quando expostos a problemas, têm afetos e desafetos. Não existe orixá exclusivamente bom ou ruim, melhor ou pior, mais ou menos virtuoso – assim como ocorre entre nós, humanos. E é na inspiração gerada por essa semelhança que os deuses negros realizam a sua função maior: devolver o equilíbrio para quem enfrenta problemas.

A curiosidade que o tema desperta me levou a pensar em uma série de posts sobre orixás. Sempre no primeiro domingo de cada mês, a coluna Outras Ondas trará o perfil de três deles. Em dezembro, teremos Exu, Ogum e Oxossi.

* A coluna Outras Ondas é publicada aos domingos no blog da Revista do Correio: www.correiobraziliense.com.br

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