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Correio Braziliense: No mundo dos sonhos

O Correio Braziliense me convidou para colaborar com uma reportagem sobre sonhos, para a Revista do Correio. Ficou assim (participações em negrito): 

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Eu sonho, tu sonhas…

Flávia Duarte

 

Falar de sonhos é entrar em um mundo impalpável. É tentar compreender um enredo cujo significado só faz sentido para o sonhador. Afinal, ele é personagem principal da história. Entrar na realidade aparentemente fictícia dos sonhos é correr o risco de se perder no caminho da superstição, dos mitos e das falsas interpretações. É visitar um local que só existe no cérebro de quem sonha e cuja existência é tão efêmera que, muitas vezes, nem o próprio criador lembra-se da criação onírica.

Cada vez mais, porém, deixa-se de lado o misticismo e acredita-se que os sonhos tenham papel importante na cura do corpo e da alma. Pesquisadores e cientistas se debruçam sobre os roteiros aparentemente sem sentido que aparecem durante a noite para entender o que se passa dentro dos indivíduos. Em Natal, por exemplo, o Instituto do Cérebro dedica-se a pesquisas para desvendar como os sonhos estão relacionados ao funcionamento físico do cérebro, inclusive como os relatos do que se pensou enquanto dormia podem confirmar diagnósticos de transtornos bipolares ou de esquizofrenia, por exemplo.

Terapeutas aprimoram cada vez mais as técnicas de análise dos sonhos para ajudar seus pacientes a resolverem traumas e conflitos internos. O médico Victor Dias, fundador e coordenador da Escola Paulista de Psicodrama, acaba de publicar um livro sobre o tema. Em Sonhos e símbolos na análise psicodramática, propõe dedicar-se ao material codificado que os sonhos apresentam para encontrar respostas para dramas pessoais.

O que não se nega é que o sonhar, desde a Antiguidade, desperta curiosidade e, quando acordados, há muitos séculos, os homens tentam atribuir a essa ação uma função. Os reis tinham interpretadores de sonhos. Oráculos capazes de desvendar as imagens que vinham à cabeça dos poderosos e tentar entender que mensagens elas traziam. As crianças da tribo Senoi, na Malásia, por exemplo, sempre tiveram o costume de relatar seus sonhos para os pais. A partir do que contavam, recebiam os conselhos dos mais velhos.

No século 2, Artemidoro de Daldis (veja quadro) ficou conhecido por ser um adivinho romano que tinha o dom de avaliar os avisos dados pelos sonhos. Em 1900, o psicanalista Sigmund Freud, ao lançar o livro A interpretação dos sonhos, declara oficialmente o material onírico como uma ferramenta de análise do subconsciente. Para ele, os sonhos não passavam de desejos reprimidos. Assim, o que não se podia fazer na vida real era realizado, sem culpas, pelo cérebro enquanto o corpo dormia. Em seguida, seu discípulo Carl Gustav Jung apresentou uma proposta menos limitada do sonhar. “Ele amplia essa visão e defende que os sonhos também têm uma função elucidatória, que fala o que está acontecendo na dinâmica psíquica e propõe soluções”, explica João Rafael Torres, psicoterapeuta e analista junguiano.

A partir deles, o mundo onírico se abriu. Atualmente, muitos são os terapeutas que não dispensam as mensagens sonhadas para entender a realidade vivida. O especialista em análise psicodramática Victor Dias compartilha a tese de que os sonhos são mensagens que o psiquismo manda para si mesmo. Na prática, funciona assim: algumas experiências e pensamentos não condizem com seu estilo de vida, valores e crenças. Assim, o cérebro mandaria todas essas informações para o que ele chama de zona de exclusão. Como defendia Jung, porém, a psique não se conforma com episódios mal resolvidos e encontra uma válvula de escape. E, durante os sonhos, avisa para a pessoa que ela precisa resolver certos incômodos aparentemente abafados, batizados pela psicologia de neuroses.

Por se tratar de um material negado, o recado não aparece escancarado. A solução é mandar mensagens simbólicas e, por tal razão, os sonhos, aparentemente, não têm sentido algum. “O psiquismo sai do impasse quando envia uma mensagem excluída para o eu consciente e, ao mesmo tempo, preserva o material negado que a pessoa não está em condição de aceitar”, explica o terapeuta.

Apesar da resistência em se conscientizar de certos recalques, ignorar um recado do inconsciente não seria uma boa ideia. São, supostamente, os conteúdos negados os responsáveis por tantos transtornos físicos e emocionais. Aí surge o desafio: se é uma mensagem cifrada, incompreensível inclusive para o paciente, como fazer para interpretá-la? Victor trabalha com a análise psicodramática dos sonhos. A proposta não é tentar fazer adivinhações e muito menos incorrer no erro de atribuir significados clichês aos elementos da história sonhada. A ideia é decodificar a mensagem aos poucos.

Para esclarecer, o terapeuta dá um exemplo. Uma mulher sonha que está sendo perseguida por um grande macaco peludo. Ela se sente amedrontada quando pensa na cena. O importante, para Victor, não é entender por que ela sonhou com um macaco, mas sim desvendar o porquê de ela ter produzido um contexto de perseguição. Assim, nos encontros com o terapeuta, o paciente é convidado a contar quais as situações da vida em que se sentiu da mesma maneira, acuado, com a sensação de ser vítima de uma outra pessoa mais forte.

Esse estímulo, o de pensar em momentos reais nos quais as mesmas emoções vieram à tona, produziria novos sonhos, e, aos poucos, seria possível compreender a mensagem que o inconsciente manda em doses homeopáticas por puro medo de a consciência rejeitá-la. “Na decodificação dos sonhos, você vai interpretar o mínimo possível e esperar os outros sonhos, em que os elementos irão se repetir até ir clareando”, explica o médico. “Não adianta perguntar o que significa o sonho. Se o paciente soubesse, o material não viria codificado. Por isso, atentamos para a sequência dos sonhos e a evolução da simbologia até ser integrada pelo eu consciente ou sofrer uma reparação dentro dos próprios sonhos”, afirma Victor.

No consultório do terapeuta Gisnaldo Amorim, quem não sonha não precisa nem entrar. Ali, nada é escolhido por acaso. Nem as janelas cobertas de tinta vermelha, com desenhos que sugerem uma casa, tampouco as mandalas coloridas espalhadas pelo corredor, que liga a sala de espera à sala de atendimento. Para o psicanalista, todas as imagens e cores inspiram os sonhos, assim como ajudam a interpretá-los. Para ajudar os pacientes, não abre mão de conhecer os elementos que invadem a mente deles durante o sono. Ele garante que, mais que do que se prender a conceitos estereotipados para compreender os símbolos oníricos, é preciso ter criatividade para ler a mensagem que o sonho quer mandar. Nesse caminho, é preciso atentar-se a todos os detalhes que aparecem na fantasia: as pessoas, os tons das roupas que elas usam, os objetos de cena, o local. Tudo pode dar um sinal do seu eu mais profundo e desconhecido.

“A primeira proposta ao tentar entender os sonhos é conhecer a si mesmo. O entendimento de nós mesmos permite transformar energias, inclusive quadros de doenças graves”, explica o profissional. “O segundo objetivo é melhorar nossas funções psicológicas, entre as quais se incluem pensamentos, sentimentos, intuições e sensações do corpo”, acrescenta Gisnaldo, que há quatro anos ministra o curso Alquimia dos sonhos, cuja proposta é ensinar os sonhadores a desvendarem o simbolismo dos comunicados oníricos.

Qualidade do sono, aliás, é um dos sinais que a terapeuta Wânia Alvarenga avalia para curar o corpo e a mente dos pacientes. No que considera o sono ideal — revigorante para os órgãos e para o equilíbrio das emoções —, o conteúdo dos sonhos é um quesito bem importante. Para deixar o sono mais saudável, Wânia diz que tudo pode interferir, a começar pelo colchão e pelo travesseiro que a pessoa escolhe, até mesmo os sonhos que ela terá. “Sustento que nós sonhamos para liberar as emoções. Quando o cérebro dorme, ele faz uma reparação física, além de liberar o estresse diário e as emoções”, define.

A terapeuta compartilha a crença de que os sonhos podem ser indícios de problemas físicos, uma forma de, sabiamente, o corpo encontrar caminhos para a autocura. Para exemplificar, Wânia cita o exemplo de uma criança que foi levada ao consultório dela pelos pais. O pequeno fazia xixi na cama enquanto dormia e a tentativa dos adultos era entender o porquê. A razão aparecia na forma de assustadores lobos. Explica-se: é que, muitas noites, o menino sonhava com os ferozes animais e de tanto medo não controlava a bexiga. A criança foi tratada pela sonhoterapia, técnica de melhorar o sono, para liberar a memória da emoção do pânico noturno. Se o menino não temesse mais os lobos quando eles aparecessem no sonho, não acordaria mais molhado. E deu certo. Wânia garante que provavelmente o menino não será mais atormentado pelas feras enquanto dorme.

“Sonho é uma fonte de compreensão de traumas. Também sugere distúrbios do sono e distúrbios emocionais. Uma pessoa que tem insônia, por exemplo, apresenta o sono leve e pode ter sonhos de ansiedade, de preocupação com o dia seguinte, de medo. Já os pesadelos podem ter a ver com síndrome do pânico, por exemplo”, explica a especialista. Por essa lógica, pessoas com problemas respiratórios não raro sonhariam com cenas dentro da água ou situações em que se sentiriam sufocadas.

Para tentar harmonizar as emoções e o corpo, Wânia usa um conjunto de técnicas, entre elas o teste muscular, em que a terapeuta estabelece conexão com o self do paciente por meio de respostas apresentadas pela tensão muscular do braço dele. A descrição parece complicada para o leigo, mas seria algo como se o corpo literalmente falasse, com movimentos leves do braço, e esclarecesse o que anda em desarmonia a ponto de provocar noites de sono ruins e sonhos piores ainda. “O corpo tem a sabedoria inata da autocura e algumas técnicas permitem reparar aspectos que estão em disfunção”, explica a psicóloga. “No início, a gente tratava a simbologia dos sonhos como clichê. Hoje, minha visão é mais holística. Você deixa que a inteligência da pessoa faça referência aos conflitos dela usando os símbolos. O cérebro sonha aquilo que o coração sente”, acrescenta.

 

Fique atento

– Faça um sonhário, um registro diário dos sonhos, que, por si só, já é um exercício terapêutico. Só de anotar as imagens, as ações, as sensações e as emoções experimentadas no mundo onírico, começamos a organizar os movimentos psíquicos.
– Compre um caderno exclusivo para essa finalidade e anote palavras chaves, sensações, desfechos dos quais se lembra. 
– Todos os elementos presentes num sonho (dos personagens aos objetos) não devem ter interpretação literal. Tudo faz parte de si e fala de você.
– Ao terminar o relato, tente fazer um exercício livre de associações entre aquilo que viu e as relações que se estabelecem com a sua vida.
– Não tente encerrar o conteúdo de um sonho atribuindo um significado único. Quanto mais múltiplo for o sentido, mais valia terá. Se achar interessante, escreva o resultado da amplificação abaixo do sonho.
– Em geral, todos os sonhos da mesma noite seguem uma temática comum e, depois de serem analisados individualmente, deverão ser observados como um conjunto conciso.
– Se não lembrar do que sonhou, não se aflija. Quanto mais você se esforçar, mais fácil vai ficar recordar dos sonhos com o tempo.

Fonte: Informações do site www.selfterapias.com.br

 

Autoconhecimento e premonição

Do que considera seu primeiro sonho premonitório ela se lembra bem. Tinha 17 anos, quando se viu, em seus pensamentos oníricos, carregando uma criança nos braços, enquanto tentava caminhar por um lamaçal. Ao fim do trajeto, deparava-se com uma água límpida. Era o final feliz de um percurso aparentemente difícil. Intrigada com o sonho, meses depois descobriu quem era aquele menino e que árduo trajeto seria aquele. Ana Lúcia estava grávida. Para ela, o sinal que recebeu enquanto dormia era anúncio da inesperada maternidade.”Sou neta de índio e de cigano.” Assim se apresenta Ana Lúcia Fernandes, 44 anos. A referência familiar é para dizer que ela traz na alma algo de místico, de vidente. De sonhadora também. Desde a adolescência, a funcionária pública recebe recados, sabe-se se lá de quem, enquanto dorme. Sonhar para ela virou uma via de comunicação com o futuro e com o próprio inconsciente.

Aos 19 anos, ela também sonhou que encontraria seu marido. O amor da vida logo apareceu. Três anos atrás, quando decidiu estudar para passar em concurso da Câmara, surgiu um anjo enquanto dormia, que logo profetizou: “A espera acabou”. Dias depois, saiu o resultado de sua aprovação na prova.

E assim ela segue sonhando. Quando Ana Lúcia fala dos sonhos, empolga-se. Gosta de contá-los para amigos, conhecidos e terapeutas. Descreve detalhes. Histórias longas, com começo, meio e fim. “São verdadeiras epopeias”, brinca. Tão rico o material onírico, que virou livro. A amiga Márcia Sabino se inspirou em um dos sonhos de Ana para escrever Audaces Fortuna Juvate — a sorte protege os audazes.

Mas ela própria tem seu livro de sonhos. Um sonhário, como chama. Anota todas as lembranças da noite ali. E interpreta a própria história. Sozinha ou com ajuda do psicanalista. Em uma dessas interpretações das mensagens simbólicas que recebe de si mesma, descobriu que precisava levar a vida com mais suavidade e feminilidade. “Eu sempre sonhava com uma cangaceira, que me dizia para ser muito forte”, conta. “Venho de uma família de três homens, trabalhava com gestão financeira, em um meio muito masculino. Descobri, por meio desse sonho, que me obrigava a ser dura, forte, como a cangaceira dizia.”

Feita essa análise, resolveu aliviar a dureza do braço com que conduzia a vida. Até o cabelo, antes curtinho, mais masculino, deixou crescer. O simbolismo do sonho manifestou-se igualmente de forma simbólica, em uma mudança na própria imagem de Ana Lúcia. “O sonho é uma conversa com você mesma”, diz ela, que aprendeu há tempos a se ouvir durante a noite.

 

E quem vai compreende-los?

Seja qual for a linha de tratametno que usa o material onírico como pista para se chegar a respostas por mais saúde física e equilíbrio mental, fato é que a psicanálise, desde o século passado, validou a tese de que os sonhos realmente são conteúdos pessoais e intransferíveis. Sendo tão autoral, só mesmo o responsável pelo enredo teria condições de traduzi-lo. nessa tentativa, o terapeuta assume o papel de facilitador e de investigador. é ele quem estimula a consciência do paciente a compreender os pensamentos enquanto se dorme.

A psicanalista junguiana Rosângela Macedo, analista clínica do Espaço Quíron, usa um cenário para tentar exemplificar o que acontece quando alguém sonha. Ela compara o psiquismo a um iceberg. A parte visível, que desponta do mar, seria aquilo do qual se tem consciência. Mas dentro da água há mais um pedaço enorme de gelo que não se pode ver a olho nu. Assim seria o inconsciente. Ele está lá, registra tudo o que vemos e sentimos, ainda que não se tenha noção de quanto material é guardado nessa verdadeira caixa-preta.

O sonho seria como um mergulho nessas águas, e uma porção do que estava escondido é visualizado de forma simbólica. Revestir traumas e situações em formas incompreensíveis a um primeiro olhar nada mais é que uma tentativa de esse subconsciente trazer à tona materiais excluídos pela consciência. E, para que não seja rejeitado mais uma vez, o jeito é exibi-lo aos pucos, com uma certa dose de fantasia e um tanto de alegoria.

“O sonho é um regulador psíquico que tem sempre uma funcionalidade (por que) e uma causalidade (para que), avisa Rosângela. “Cada sonho é um mito pessoal, uma nistória, uma lenda, um conto e traz um drama psíquico. Quando você os traduz, você gera autoconhecimento, um ego mais seguro. Aquilo que estava sombrio e escuro ganha luz e faz menos pressão”, explica.

Uma das formas de se chegar a alguma conclusão é o terapeuta questionar o significado pessoal e quais as experiências e os sentimentos que o paciente têm em relação aos elementos e às pessoas que aparecem nos sonhos. Figuras que te trazem sentimentos negativos e vivências assustadoras que reaparecem durante o sono podem ser sinal de que na vida real você esteja se sentindo da mesma maneira. “O sonho só tem valor para quem sonha. É um olhar de dentro para fora”, esclarece o psicoterapeuta e analista junguiano João Rafael Torres.

Por isso, ele sugere, antes de mais nada, que a pessoa que queira fazer uso dessa ferramenta de diagnóstico do inconsciente anote os sonhos em um caderno. Isso deve ser um exercício diário. Nem sempre a pessoa vai se lembrar dos sonhos, mas vale anotar os resquícios de imagens e de sensações que vieram à tona. Nesse ponto, é importante lembrar que tudo que está no sonho se relaciona exclusivamente ao sonhador. Assim, sonhar com outra pessoa não quer dizer que você precisa dar um recado a ela, mas precisa entender o que as características dela, do comportamento e do papel que ela exerce, ou exerceu na sua vida, significam para você.

Depois, é hora de, com a ajuda do terapeuta, especialmente no início, associar aqueles elementos com a vida real e tentar entender a função daquele filme produzido na psique. O analista explica que os sonhos têm várias funções: compensatória, para o ego resolver o que não consegue resolver na vida real; elucidatória, para esclarecer o que está acontecendo na dinâmica psíquica. Além disso, o sonho tem uma função educativa e poderia ser visto como um canal de educação do que deve ser feito ou não.

Com esse material literalmente nas mãos, é hora de começar a desvendar os mistérios da própria alma. No meio do caminho, o sonhador vai enxergar falhas, enfrentar medos e reconstruir conceitos. “Todos os dias, tiramos uma foto de como está nossa dinâmica psíquica, mas quem vai definir se vamos ou não abrir o álbum é o ego, o eu”, resume João Rafael.

 

Entrevista: Sidarta Ribeiro

Como as pesquisas em ratos podem desvendar a função dos sonhos?

As pesquisas com ratos servem para estudar os mecanismos eletrofisiológicos e moleculares responsáveis pelo papel benéfico do sono no aprendizado. Para estudar sonhos humanos, fazemos registros eletroencefalográficos de pessoas expostas a estímulos (imagens, videogames) e, depois, imagens durante o sono. buscamos encontrar relações quantitativas entre o conteúdo dos sonhos e os padrões de ativação cerebral durante fases específicas do sono.

Com que propósitos vocês se dedicam a pesquisas com essa temática?

Estamos interessados na análise matemática de relatos verbais dos sonhos de pacientes psiquiátricos ou neurológicos para realizar diagnósticos diferenciais. Também perseguimos uma linha de pesquisa aplicada sobre o impacto do sono pós-aula no aprendizado escolar. Temos ainda uma linha de pesquisa estritamente comportamental sobre comunicação vocal, para explorar os limites da simbolização em primatas não humanos.

O que acontece no cérebro quando sonhamos?

Diversas regiões corticais e subcorticais são bombardeadas por neurônios localizados em regiões mais profundas do cérebro, causando uma reverberação vívida de memórias previamente adquiridas. O envolvimento da área tegmentar ventral, que libera dopamina em circuitos relacionados com a busca de recompensas e a evitação de punição, faz do sonho mais do que uma simples reverberação de fragmentos recombinados de memórias: os sonhos são movidos por nossos desejos, como postulou Freud, representando simulações de comportamentos adaptativos (a se copiar na vida real) ou de comportamentos não adaptativos (a se evitar na vida real).

Será possível um dia compreender pela ciência o conteúdo dos sonhos ou será sempre um papel da psicanálise?

Embora já seja possível decodificar sonhos usando ressonância magnética funcional, isto é feito com precisão muito baixa. Provavelmente, a técnica vai evoluir muito no futuro próximo, mas não acredito que ela se livrará da subjetividade inerente à interpretação dos sonhos. O conteúdo dos sonhos só faz sentido para o sonhador e seus eventuais interlocutores íntimos, como, por exemplo, a figura do psicanalista. Não acredito que a compreensão do sonho ou qualquer outro aspecto da consciência humana pode se valer de um atalho biológico que exclua a subjetivação psicológica.

Por que alguns se lembram mais dos sonhos que outros?

Todas as pessoas sadias sem lesões cerebrais sonham, mas poucas se lembram disso. As pessoas que relatam não ter sonhos, quando investigadas num laboratório de sono e despertadas durante uma fase específica do sono em que ocorrem movimentos oculares rápidos, normalmente relatam sonhos. Com os sonhos, existe uma grande queda na liberação do neurotransmissor noradrenalina, que está envolvido no processo atencional e na formação de memórias duradouras. Quando despertamos, o nível de noradrenalina sobe rapidamente, mas se a pessoa não mentaliza o conteúdo do sonho e rapidamente se engaja em outras atividades, o conteúdo do sonho se perde.

Os sonhos são importantes para o aprendizado?

Existem evidências abundantes do papel do sono na consolidação do aprendizado, embora identificado há mais de 100 por psicólogos como Carl Jung, só teve a primeira evidência experimental em 2011, com a publicação de um estudo do grupo da Robert Stickgold, da Universidade de Harvard. Ele mostrou que o aprendizado da navegação de um labirinto virtual foi muito maior em pessoas que sonharam do que em pessoas que não sonharam. Ainda há muito a descobrir no que diz respeito ao papel dos sonhos para a cognição.

Como vocês conseguem confirmar diagnósticos de bipolaridade e esquizofrenia por meio de sonhos?

Em colaboração com o professor Mauro Copelli, da UFPE, demonstramos que relatos de sonhos de pacientes psicóticos permitem diferenciar pacientes esquizofrênicos, bipolares e indivíduos sadios. Isso é possível porque existem diferenças estruturais grandes entre os relatos verbais desses grupos. Em colaboração com o professor Leandro Malloy-Diniz, da UFMG, usamos técnica semelhante para diferenciar pacientes com Alzheimer de pacientes com transtorno cognitivo leve.

 

Aprendizado constante

No começo, a estudante Cibele Pereira, 25 anos, temia os próprios sonhos. Achava que, se ousasse interpretá-los, eles teriam o atrevimento de se tornarem realidade. Quando um conhecido aparecia nos pensamentos noturnos, ela logo achava que tinha alguma mensagem a dar ou a receber daquela pessoa. Aos poucos, porém, descobriu que as figuras do sonho, fossem protagonistas ou figurantes, sempre querem dizer algo de si próprios. “Vejo o sonho como um autoconhecimento, o que vou sonhar são coisas só minhas. Sou eu falando comigo mesma. A gente tenta dar ouvido para si mesma, como se fôssemos duas pessoas”, explica. Agora, quando sonha com alguém, o exercício é avaliar o que aquela pessoa significou em sua vida. É um bom começo para decifrar por que um personagem específico apareceu nos sonhos dela.

Nesse papo tão particular, Cibele deixou a superstição de lado e passou a procurar indícios de sua própria personalidade em conteúdos tão impalpáveis. Na terapia, entendeu que aqueles sonhos insistentes, em que sempre aparecia discutindo com uma pessoa mais velha, dizia muito sobre seu comportamento na rotina desperta. Cibele tinha problemas com autoridade. Considerava que os de mais idade são figuras inquestionáveis e, portanto, alguém cujas opiniões e posicionamentos não se poderiam contrariar.

Pelos sonhos, entendeu que podia se posicionar, ainda que o interlocutor tivesse mais idade. “Isso fez melhorar muito meu relacionamento com minha mãe, por exemplo”, considera. Pela mesma via, compreendeu que precisava expor seus sentimentos com mais naturalidade. Quem reforçou esse comportamento que as amigas próximas já percebiam foi o inconsciente. Nos sonhos, Cibele, muitas vezes, aparecia segurando o choro. Igualzinho como faz com suas emoções.

“Por isso, procuro anotar os sonhos e depois os analiso. Eles fazem com que eu pense sobre certos assuntos e tiro uma conclusão aqui, outra ali. Alguns sonhos hoje apresentam temas com menos força, o que significa que já superei algumas questões”, comenta. “Mas também não fico paranoica de que todo sonho diz alguma coisa”, pondera a moça.

 

 

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A reportagem também está disponível no site da Revista.


Correio Braziliense: A casa e a alma

O Correio Braziliense publicou hoje uma homenagem que fiz a dona Canô. Uma crônica sobre o nosso encontro, realizado três anos atrás.

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A casa e alma

Visitar alguém centenário exige reverência. E foi revestido com esse sentimento que, numa manhã do caloroso verão baiano, desembarquei na rodoviária municipal de Santo Amaro da Purificação, três anos atrás. Fui em busca de Dona Canô, para o primeiro encontro pessoalmente, depois de três entrevistas realizadas por telefone – ainda nos idos de jornalismo no Correio. A casa branca, com detalhes azul-marinho, reproduzia as mesmas cores do colar de pequenas contas que se encontrava no pescoço da doce senhora. Adorno consagrado ao orixá Nanã, a grande protetora da matriarca da família Telles Velloso.

No candomblé, Nanã é a senhora dos primórdios, dona das águas paradas, escuras e profundas. Divindade da lama, que molda o corpo do homem para dar-lhe a vida, e que também o recebe, depois da morte. Outros orixás também se faziam presentes, a partir dos diversos colares litúrgicos pendurados na cabeceira da cama. Dividiam espaço com terços e rosários — assim como no pescoço de Dona Canô, que abrigava uma medalhinha da Nossa Senhora dos brancos, ao lado do símbolo da Grande Mãe dos Pretos. A miscigenação é fruto do respeito, da concisão e da serenidade desta senhora. Acolhedora, recebeu a mim em seu próprio quarto, como se eu fosse da família.

Tendo a religiosidade como grande marca, resolvi agradá-la com um presentinho. Com sorriso, recebeu a imagem de São Francisco, ajoelhado, entalhada em madeira. Mas a risada foi mais alta quando ouviu que o pretexto da minha viagem tinha descido pelo ralo. Tinha eu esquecido o envelope com as reportagens, com as quais ela tinha colaborado. “Meu filho… e depois dizem que sou eu que estou assim, assim…”, disse, rindo, apontando para a cabeça branca. Entendi ali que podia ser reverente, mas sem ser protocolar. Algo de intimidade já se estabelecera entre mim e Dona Canô.

De certo, a lucidez era sua grande marca. Lucidez para falar da primeira casa, onde viveu logo após se casar com Zeca — o grande amor de sua vida. E para, em segundos, avaliar politicamente o governo de Lula (de quem era admiradora declarada) e para prospectar sobre a chegada da primeira mulher ao Planalto. Engajadíssima e cidadã, trazia no discurso nuances de ecologia e sustentabilidade. Tudo com serenidade, na medida exata que só encontra quem bem a vida conhece.

Fomos interrompidos por Rodrigo, filho e guardião. Trazia notícias do telefone. Mabel, uma das filhas, ligara para dizer que discutira com a irmã Clara Maria os cuidados alimentares de Canô. “Agora, veja isso, meu filho. Eu, com mais de cem anos, e ainda tenho de lidar com duas meninas que, mesmo de longe, querem decidir o que eu como”, retrucou. As “meninas” já passavam dos 60 anos, vale ressaltar. Por vontade, ela mesma comandaria as panelas. Mas o médico tinha proibido.

Dona Canô era uma velhinha de corpo miúdo, cuja idade deixou ainda mais frágil. Mas a alma era negra, de seios fartos e braços firmes, para acolher generosamente e defender os seus dos males do mundo. Seu maior orgulho, francamente declarado, foi de ter sido uma mãe honrosa. A admiração dos seus e pelos seus reinava naquela casa, naquelas paredes. O quarto, a sala ampla… Tudo era adornado com um bocado de bibelôs, santos, porta-retratos e pôsteres emoldurados da filha famosa. Entre ela e Bethânia, um processo mútuo de devoção. Mas, na verdade, o que mais adornava a casa de Canô era o amor. A casa e a alma.

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Para encerrar o ciclo de homenagens, a canção oportuna. “Amor, festa e devoção. Ensinamentos dela para o bem-viver”, nas palavras da filha Bethânia.

Correio Braziliense: Comida boa cheira longe

Nos tempos de jornalismo, entrevistei Dona Canô 3 vezes. Numa delas, nossa conversa foi transformada num depoimento cheio de poesia, publicado no dia em que ela completou 100 anos. Era uma série sobre o sentido por trás dos cinco sentidos e ela falou sobre o cheiro do almoço em família. 

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Almoço de família – Comida boa cheira longe

“Numa família grande, manter a boa educação é um desafio para os pais. Graças a Deus, consegui isso. Tive oito filhos, mas ensinei que na mesa não se pode ser muito exigente. Sempre comemos comidas decentes e, sempre que dava, satisfazia um ou outro gosto deles. Fosse qualquer dia, as panelas não iam para a mesa se um dos filhos não tivesse chegado. Exigência de Zequinha, que Deus já levou. Durante a semana, revezava entre carne de boi, mariscos, galinha e peixe. Toda sexta e toda quarta tinha peixe, frito ou moqueca. Domingo, era feijoada.

Uma feijoada bem feita se sente o cheiro longe! Uma boa carne de sertão, com osso para dar o gosto, costela, pé de porco, chouriço feito em casa. Um aroma forte que vinha do armazém e que começava a perfumar a cozinha na noite do sábado, quando tudo ia para uma grande panela para perder o sal. Quando ligava o fogo, aquele cheiro ia tomando a casa, passava do portão. Bethânia sempre elogiava, dizia que não sabia se o melhor era o cheiro ou o gosto.

Quem chegava adivinhava de fora o que ia para a mesa. Uma boa moqueca, como a de tainha, com feijão de leite, prato que Caetano tanto adora, também não se esconde de ninguém. O aroma do pimentão, leite de coco e do bom dendê formam um perfume adocicado, que abre o apetite. Os temperos, o segredo do aroma de qualquer prato, vinham primeiro do canteiro do quintal e depois do mercadinho popular, na esquina de casa.

O calor das tardes atiçava ainda mais o nariz com o cheiro que vinha do tacho de doces,. Nunca fui muito de açúcar, mas todos os filhos gostavam muito de uma sobremesa. Compota de araçá, doce de leite, de goiaba, cortada em cumbucas. O de laranja da terra soltava mais gosto do que cheiro. Usava cravos como truque para aromatizar. Já o de abacaxi tinha um perfume delicioso, mas que sempre achei enjoativo demais até mesmo para provar. Na mesa, o prato principal, a sobremesa e um bom suco de cajá ou graviola. Ao redor, todos banhados e conversadores. Tudo junto dava um cheiro de alegria.

Agora, nessa tarde, me batem na porta umas baianas muito bem vestidas com roupas alvas e engomadas, e com tabuleiros de pipoca na cabeça. Pagam promessas para a festa de São Roque e trazem novamente para minha casa um cheiro que marcou os lanches da tarde de muitos domingos. Hoje, fica mais difícil sentir todos esses aromas. Os médicos me afastaram do fogão, sei que não tenho mais saúde para enfrentar as panelas. Os meninos também me fazem falta. Cada um com seus trabalhos, cada um com suas responsabilidades… Agora, para ter todos juntos só mesmo no meu aniversário e no São João. É assim mesmo. O tempo corrói pedras brutas, muda nossa história. Mas não tira o sabor da memória.”

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Depoimento exclusivo, integrante da reportagem Depois daquele cheiro, da série Os sentidos da Vida. Publicada na Revista do Correio, em 16 de setembro de 2007. Clique aqui para ler o conteúdo no site da Revista.

Correio Braziliense – Revista: O legado de Jung

Para celebrar os 50 anos de morte de C. G. Jung, a Revista do Correio resolveu publicar uma reportagem especial sobre a contribuição da Psicologia Analítica para a sociedade. Recebi o gratificante convite de ser o responsável pelo material e aceitei o desafio. O resultado foi gratificante: tivemos uma boa repercussão do público e da comunidade junguiana.


Reproduzo, abaixo, o conteúdo na íntegra.

Cinquenta anos depois da morte do psiquiatra suíço, a psicologia analítica se desenvolve no Brasil e ganha novos adeptos. Sonhos, pinturas e muito estudo promovem o autoconhecimento e a cura para os mistérios da alma

O LEGADO DE JUNG

João Rafael Torres // Especial para o Correio

“Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou.” Com essas palavras, usadas para iniciar a sua autobiografia, o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung tenta sintetizar a experiência de 85 anos e 10 meses de vida a serviço da compreensão da mente humana. Você pode nunca ter ouvido falar dele, mas certamente já ouviu os termos “complexo”, “sincronicidade” e “inconsciente coletivo”. Se os tem incorporados em seu léxico, você compartilha ideias junguianas mesmo sem se dar conta disso.

Jung foi contemporâneo de Freud e chegou a trocar com ele uma série de experiências e conceitos sobre o inconsciente. Conta-se que o primeiro encontro entre eles durou mais de 13 horas ininterruptas de conversa. As divergências teóricas fizeram com que rompessem a parceria: Jung não concordava com a redução dos males psíquicos à sexualidade, feita pelo colega; Freud acreditava que o interesse do suíço pelas religiões e temas místicos era um devaneio inútil, que nada podia contribuir para a psicologia.

Filho de um pastor luterano e primo de uma médium, Jung percebeu uma enorme influência da fé sobre a psique — seja de uma forma saudável ou doentia. Isso o despertou a estudar a filosofia oriental, oráculos, mitologias e a alquimia. Some a esse conhecimento os grandes clássicos da literatura internacional, biologia, física quântica… O resultado de tanta erudição foi a Psicologia Analítica, que o sagrou como o segundo nome mais citado no mundo quando o assunto é o entendimento do que se passa com a mente humana. Amanhã, o mundo celebra o cinquentenário da morte do autor. E, para homenageá-lo, a Revista apresenta uma reportagem especial sobre o misterioso e encantador universo do inconsciente, pela óptica junguiana.

Esqueça o porquê. Pergunte-se para quê?

Enquanto muitas abordagens psicoterápicas se focam no “por que” (as razões dos conflitos) ou no “como” (estratégias comportamentais), a análise junguiana objetiva o “para que”. Ou seja, a função final, o sentido intrínseco de cada experiência. Dessa forma, o futuro não se configura como o resultado de circunstâncias, e sim no fruto de escolhas responsáveis. Além disso, a compreensão sobre o inconsciente leva a um entendimento e integração dos conteúdos desejáveis e indesejáveis, do masculino e do feminino, e da interação do indivíduo com o mundo e do mundo com o indivíduo.

A relação entre cliente e analista também se diferencia de outras abordagens. O atendimento geralmente é feito face a face, e as sessões são mais dialogadas — não há o distanciamento e o excesso de formalidade que muitas vezes marca a psicanálise freudiana. Sonhos, fantasias, produções artísticas, eventos sincronísticos e sintomas são integrantes no processo analítico: eles oferecem mensagens vindas do inconsciente. “Mas convém lembrar que o sucesso de qualquer terapia se dá a partir da empatia que surge entre cliente e terapeuta. Isso terá variações até mesmo entre analistas junguianos”, ressalta Tito Cavalcanti, da SBPA.

Depois de passar por outras duas abordagens psicoterápicas, a administradora Flávia Lopes, 38, encontrou na Psicologia Analítica a sua escolha para o autoconhecimento. A escolha não foi deliberada. “Conheci a terapia junguiana por acaso, num momento marcante de perdas. Hoje posso dizer que sou seguidora convicta”, brinca. O diferencial que a despertou a atenção foi o olhar global sobre o homem: as necessidades do corpo, da mente e da alma recebem a mesma atenção dentro do consultório. “Isso dá uma noção mais viva das próprias emoções, ensina a aproveitar o melhor momento em cada situação, leva a entender sobre meu ritmo e o ritmo do mundo”, sintetiza.

O encontro com o inconsciente, a partir da análise dos sonhos, aprofundou o encontro consigo mesma. “Percebi, em primeiro lugar, que os sonhos não nos deixam mentir. Eles denunciam nossa verdadeira essência diante dos conflitos, mesmo quando queremos ignorá-la”, explica. A familiaridade com a linguagem simbólica promoveu em Flávia uma maior integração com os valores do masculino e do feminino. “Aprendi inclusive a dar expressão ao meu lado ‘mulherzinha’, sem perder a determinação e a força para vencer os desafios da vida”, avalia.

Decifrando o enigma

A reedição da obra junguiana no Brasil é apontada como a mais importante das ações de homenagem aos cinquentenário da morte do psiquiatra. Pela primeira vez, os livros são traduzidos diretamente do alemão para o português em um trabalho de anos. O grande desafio está no alto nível de erudição de Jung: enquanto a leitura de Freud é de compreensão simples e direta, os escritos do suíço são rebuscados e não lineares. Um grande desafio para quem se propõe a estudá-lo. No entanto, o interesse pela obra se mostra crescente: seja pela procura de cursos de formação ou de literatura especializada.

O administrador Cleudir Santos, 51, sempre teve um interesse aguçado pelas questões religiosas, especialmente pelo catolicismo. Tanto que decidiu fazer uma formação paralela em teologia, onde teve os primeiros contatos com os conceitos de Psicologia Analítica. Na teoria, encontrou respostas para validar a própria fé. “Jung foi um grande teólogo, na medida em que estudou a fundo as ações da fé sobre a vida das pessoas a partir de diferentes religiões”, considera. A curiosidade e a identificação que sentiu o levaram a uma especialização na área.

Para Cleudir, Jung conseguiu sintetizar e explicar as experiências dos grandes místicos e santos a partir dos movimentos psíquicos. “Ele entendeu que todos eles (os místicos) viveram experiências intensas, que apontam para a presença de Deus dentro de nós, e não num mundo exterior”, entende. Essa consciência, ainda criticada por muitas instituições religiosas, aponta principalmente para a ligação individual que se estabelece entre o homem e a espiritualidade. “Descobrimos que o autoconhecimento é a função maior para o encontro com a divindade. Isso é capaz de nos libertar, mas também nos confere mais responsabilidade sobre o próprio caminho.”

O interesse de pessoas como Cleudir tem impulsionado o estudo da obra junguiana no país. No Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (IJEP), por exemplo, a cada semestre, cerca de 30 brasilienses ingressam no curso de especialização em Psicologia Analítica. Desse total, 40% não têm formação em psicologia, nem demonstram interesse em se tornarem analistas. Waldemar Magaldi Filho, fundador do IJEP, atribui essa procura à temática abordada por Jung, que se mantém atual. “Ele foi visionário, ao entender o homem e o planeta em um contexto maior e mais complexo, defendendo uma visão mais integral e autossustentável”, explica.

Para começar
Jung – O mapa da Alma, de Murray Stein (Ed. Cultrix): apresenta os conceitos junguianos de forma concisa e clara, essencial para quem quer se familiarizar com a teoria.

O homem e seus símbolos, de C.G. Jung (org.) (Ed. Nova Fronteira): um compilado de textos do suíço e seus principais colaboradores, com linguagem acessível.

Guia para a Obra Completa de C.G. Jung, de Robert H. Hopcke (Ed. Vozes): apresenta um resumo conceitual, com referências diretas para os textos originais.

O livro dos mistérios

A maior preciosidade da teoria junguiana só veio a público há três anos, com a publicação de O Livro Vermelho – Liber Novus: um compêndio de ilustrações e textos elaborados em manuscrito caligráfico, no estilo dos pergaminhos medievais. O livro foi escrito entre 1914 e 1930, e retrata fortes experiências psíquicas vividas por Jung durante três anos: sonhos, visões e premonições, que o incomodaram tanto a ponto de decidir suspender as conferências e compromissos médicos. O primeiro, que motivou o registro, é excessivamente perturbador: em 1913, ele viu toda a Europa coberta por sangue e cadáveres.

“Jung julgou estar psiquicamente perturbado. Quando, no ano seguinte, estourou a primeira grande guerra, com seu incontável número de mortos e sofrimento para milhões, percebeu o caráter antecipatório de sua visão”, explica Walter Boechat, revisor da tradução do livro para o português, membro-fundador e ex-presidente da Associação Junguiana Brasileira (AJB). O psiquiatra encontrou no relato minucioso e nas pinturas a melhor forma de amenizar tais imagens, além de atribuir-lhes um sentido.

O conteúdo controverso o levou a decidir por uma publicação póstuma do livro — desejo que foi mantido pela família até o ano de 2000. Em sua autobiografia, ele aponta o Livro Vermelho como o cerne para toda a Psicologia Analítica. No Brasil, o livro foi publicado pela Editora Vozes, seguindo as mesmas dimensões e a qualidade de impressão anglo-americana.

De polêmica e controvérsia

Curiosidade, coragem e humildade. Tais atributos são primordiais para definir a postura de Jung diante de temas polêmicos, até então não contemplados pela academia. Entre eles, a necessidade de nutrir valores espirituais para a realização do indivíduo — talvez o maior ponto de divergência entre ele e Freud, o grande motivo do rompimento entre eles. Jung defendia que a espécie do homem contemporâneo pode ser definida como Homo religiosus — traz a necessidade da crença em um princípio unificador e totalizante, como um traço genético da fé. A maior prova disso seria a manifestação religiosa como um bem inerente a todas as culturas, independentemente do local ou do tempo. Esse conceito o levou a ser interpretado erroneamente como um místico.

Joyce Werres, diretora de ensino do Instituto Junguiano do Rio Grande do Sul (IJRS), avalia que um dos grandes méritos do psiquiatra foi buscar informações em fontes não óbvias na época. Entre elas, as filosofias orientais, mitologias, religiões e a alquimia medieval. Estudou a fundo oráculos como o I Ching, o tarô e a astrologia. Era amigo de físicos como Albert Einstein e com eles percebeu uma grande similaridade entre as leis físicas e o dinamismo psíquico. “Jung explorou todos os caminhos capazes de atribuir sentido ao homem, pois esse é o diferencial de sua psicologia. Com sua grande erudição, agregou informações importantes para explicar o funcionamento da psique, sem os reducionismos que dominavam a ciência da época”, explica.

Esse aspecto faz com que a conceituação dos principais termos junguianos seja tão complicada. O próprio Jung dizia que muitos de seus conceitos não estavam concluídos. É o caso da sincronicidade: ele só se decidiu a publicar suas ideias aos 75 anos, quase 30 anos depois de usar o termo pela primeira vez em um discurso. Tais controvérsias são o tema do congresso “O lado mal dito de Jung”, a ser realizado em setembro pelo IJRS. Os avanços científicos também ofereceram uma compreensão maior de teorias estruturadas naquela época, e contestadas pela academia ortodoxa. Hoje, a sincronicidade é apontada como uma possibilidade plausível graças aos avanços na física quântica, que comprovam a relatividade do tempo.

No entanto, os junguianos estão atentos ao mau uso das terminologias criadas pelo psiquiatra suíço. Principalmente para evitar que a teoria se transforme em alguma espécie de dogma. “Ler sobre astrologia, I Ching e alquimia na obra de Jung pode levar à falsa crença de que ele defendia o misticismo, e não a psicologia. Esse é um erro de quem olha a produção com superficialidade”, defende Tito Cavalcanti, membro-analista e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica.

O que ele quis dizer

Sincronicidade: O termo foi criado por Jung para definir as ditas coincidências significativas: eventos que aparentemente não correlacionados pelas leis de causa-efeito, mas que, ao se realizarem, denunciam uma intensa ligação entre si. Oferecem um novo sentido a pelo menos um dos envolvidos. Os eventos sincronísticos são interpretados por Jung como uma manifestação direta da sabedoria inata do inconsciente.

Arquétipos: São ideias conceituais ou padrões de percepção e compreensão psíquica de determinado tema, formados pelo resultado de toda a experiência humana sobre aquele mesmo tema. Por exemplo: o arquétipo da mãe contém todos os atributos comuns à maternidade (o cuidado, a mama, a proteção etc. — traços semelhantes em todas as mães, independentemente da cultura ou do período histórico em que estejam inseridas). Os arquétipos são herdados por todos os humanos. Não tem forma e só pode ser percebido a partir das imagens arquetípicas, que se formam a partir das experiências vividas por cada indivíduo. Não são negativos ou positivos. Dão origem às mitologias.

Inconsciente coletivo: É o nível mais profundo do inconsciente formado pelos arquétipos e pelos instintos, é o resultado de toda a experiência humana, compartilhado por todos que pertencem à raça humana. O acesso ao seu conteúdo, no entanto, é mais limitado: geralmente é percebido nas cisões psicóticas, em experiências de êxtase, oráculos e em alguns sonhos.

Complexos: É formado por uma ideia arquetípica, em torno da qual se concentram imagens resultantes de experiências ligadas a este tema. Essas imagens são amalgamadas por afetos, as emoções ativadas. Cresce como uma bola de neve. Na medida em que se desenvolve, o complexo ganha força e autonomia, interferindo diretamente na consciência.

Self ou Si-mesmo: É o princípio unificador, regulador e organizador, e, ao mesmo tempo, a representação da psique. É a sabedoria inata, a expressão da individualidade. Jung o chamou de “o deus em nós”. O Self não é Deus em si (um conceito religioso), e sim a imagem divina que carregamos e moldamos durante o nosso desenvolvimento. É o que nos norteia para o caminho de realização de nossa existência — a chamada individuação.

Da loucura à arteterapia

A ideia parece inconcebível: um paciente psicótico em surto, completamente alheio da realidade e do autocontrole, toma nas mãos tinta e pincéis e, com eles, produz imagens de grande força e expressividade. Verdadeiras obras de arte. Na medida em que avança com o trabalho, o comportamento se apazigua e surge a possibilidade de uma reinserção social nos parâmetros ditos normais. Essa história foi vivida por centenas de pacientes do Hospital Psiquiátrico D. Pedro II, do Rio de Janeiro. Tudo por iniciativa da médica alagoana Nise da Silveira, a grande responsável pela inserção da psicologia junguiana no Brasil e também por impulsionar a reforma manicomial no país.

Nise sempre foi vista como uma pessoa revolucionária — não é à toa que ficou dois anos presa no período da ditadura militar. Essa experiência foi decisiva para que ela desenvolvesse um novo olhar sobre a loucura: negava-se à aplicação de eletrochoques ou a reclusão individual dos doentes, por exemplo. Em substituição, oferecia-lhes instrumentos para que pudessem expressar a criatividade. “Ela via que a expressão artística despotencializava as emoções que tanto aflingiam os doentes. Eles conseguiam dar forma e cores ao que sentiam”, explica Gladys Schincariol, que foi estagiária de Nise em 1974 e hoje é a atual coordenadora do Museu de Imagens do Inconsciente. O acervo, que passa de 350 mil obras, é formado pela produção dos pacientes.

A amizade de Nise e Jung se iniciou em 1954, quando ela soube do interesse do suíço pela simbologia das mandalas. Escreveu ao colega, dizendo que vários de seus pacientes produziam, espontaneamente, imagens circulares como os desenhos orientais estudados por ele. Jung a chamou a expor os estudos que desenvolvia no Segundo Congresso Internacional de Psiquiatria e, desde então, ficaram amigos e parceiros de trabalho.

Nas diretrizes da Psicologia Analítica, o inconsciente registra todas as impressões que tem do mundo a partir de imagens. Até mesmo quem nunca enxergou carrega em si a capacidade de abstração imagética. Parte desse conteúdo nos é revelado diariamente, a partir dos sonhos. Juntos, Nise e Jung perceberam que a expressão artística espontânea favorece a organização dos elementos psíquicos, promovendo a cura — bases para a arteterapia. “O alívio não surge somente nos psicóticos, mas também naqueles indivíduos que têm dificuldades para enfrentar seus dramas e conflitos pessoais”, completa Gladys.

Corpo e mente: separados, mas juntos
A visão integral de Jung para o homem correlaciona diretamente a psique e o corpo, e não como entes separados que coexistem. Ele entendeu os distúrbios físicos e psíquicos como formas de expressão de uma dinâmica distorcida da psique. Percebeu também um intenso paralelo entre esses dinamismos e as grandes questões da alma humana, manifestas nas diferentes mitologias. Contestou assim a ideia de Nietsche: os deuses não estão mortos, eles se transformaram em sintomas. Essa é a base da psicossomática, que investiga a íntima relação entre mente e corpo.

Sonhos, fonte de sabedoria

Jung acreditava que os sonhos funcionavam como fotografias do dinamismo psíquico. As imagens neles contidas teriam uma função não só compensatória, como acreditava Freud, mas também serviriam para educar, orientar e até mesmo revelar lampejos de futuro — os ditos sonhos premonitórios, capazes de romper as fronteiras do tempo e do espaço. O olhar sobre o sonho, ensina, nunca deve ser restritivo: não cabe uma interpretação direta, como as sugeridas nos “dicionários dos sonhos”. O conteúdo deve ser sempre contextualizado a partir das referências pessoais do indivíduo que sonha. Abaixo, algumas dicas para que você tire proveito dos recados que o inconsciente oferece a cada noite.

— Construa um “sonhário”: Jung dizia que o simples registro diário dos sonhos já constitui um exercício terapêutico. Na medida em que anotamos as imagens, peripécias, sensações e emoções experimentadas no mundo onírico, conseguimos “organizar” os movimentos psíquicos. Compre um caderno que deverá ser dedicado exclusivamente aos sonhos e transforme o registro dos mesmos em um hábito diário.

– Descreva sempre um sonho no momento presente, como quem relata algo real. Comece pelos lugares, seguindo pelo contexto e pelo papel que você assume. Em seguida, relate as emoções vivenciadas, a evolução da cena e o desfecho. A preguiça deve ficar de lado: anote todos os detalhes que lembrar.

— A linguagem do inconsciente é sempre alegórica, simbólica. Assim sendo, todos os elementos presentes num sonho (dos personagens aos objetos) não devem ter interpretação literal — tudo faz parte de você e fala de você.

— Ao terminar o relato, tente fazer um exercício livre de associações entre aquilo que vê e as relações que se estabelecem com a vida. Jung chamou esse exercício de amplificação. Por exemplo: ao sonhar com uma colega de trabalho com quem não se tem muito contato, observe quais as principais características que ela transmite. O mesmo vale para os objetos: resgate a história relacionada a eles. Amplificar é buscar sentido diante das imagens que aparecem.

— Não tente encerrar o conteúdo de um sonho, atribuindo um significado único. Quanto mais múltiplo for o sentido, mais valia terá. Se achar interessante, escreva o resultado da amplificação abaixo do sonho.

— Em geral, todos os sonhos da mesma noite têm uma temática comum e, depois de serem analisados individualmente, deverão ser observados como um conjunto conciso. O mesmo vale para aqueles tidos durante um período específico da vida (durante uma viagem, ao fim de uma relação etc.). Dessa forma, o sentido que eles oferecem torna-se mais claro.

— Você quer começar, mas simplesmente não consegue lembrar do que sonhou? Não se aflija. Encare como um exercício. Na medida em que começamos a dedicar tempo para os sonhos, eles tendem a ficar mais limpos, vívidos e vivos na memória.

— A observação continuada dos sonhos, acompanhada por um psicoterapeuta ou analista, é um poderoso instrumento de cura e de desenvolvimento pessoal. O processo promove o autoconhecimento a partir dos elementos vindos do inconsciente.

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