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Psique: Buscar coerência nas atitudes é uma forma de facilitar a vida

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No último sábado, na Bienal do Livro de Brasília, passei umas duas horas numa fila, para assistir uma palestra do historiador Leandro Karnal. Como é sabido pela maioria, um dos temas preferidos dele é a ética. Do lugar onde estava, a fila era grande para frente e imensa para trás – e o espaço para a apresentação era limitado a pouco menos de 500 lugares.

Uma hora antes do início, a organização passou distribuindo senhas. Do nada, uma nuvem de gente veio lá de trás, com as senhas nas mãos, correndo, para tentar entrar antes daqueles que aguardavam na fila. Talvez realmente fosse mais pertinente deixa-los entrar. Afinal, lá dentro o assunto seria a ética. E era isso que eles precisavam aprender.

Dias antes, uma amiga me procura para “desabafar”. Traz consigo um dilema: conheceu um rapaz interessante, que se mostra também interessado, mas não sabe exatamente se deve engatar o relacionamento. Por que? “Talvez não seja a hora”, “não gosto da forma como ele se veste”, “não sei se a gente combina” – uma série de argumentos vagos, imprecisos, e bem diferentes das queixas anteriores, quando ela se dizia disponível para o amor.

Em comum, essas histórias trazem consigo a incoerência – uma velha conhecida, cada vez mais íntima na medida em que avanço no meu ofício como analista. As pessoas querem, mas não querem. Creem, mas duvidam. Pregam uma coisa, fazem outra. Desdenham e se ressentem quando perdem.

Tudo pra mim
Duvidar não é o problema nessa questão. Na verdade, é um ótimo indicador de saúde psíquica: mostra que a alma encontra brechas na visão unilateral da neurose, minimizando-a. A vida cheia de certezas é mais limitada e, consequentemente, mais propensa a adoecer.
A incoerência aparece quando os atos e escolhas são dissonantes àquilo que defendemos ser ou querer. Pode ser uma consequência de um olhar torpe, equivocado, sobre a própria realidade. Alguém impulsivo, por exemplo, tem mais chances de ser incoerente, se comparado com quem é ponderado.
Há também quem aja dessa forma por ganância. De longe, esse ser parece um grande devorador: alguém ávido para deter e engolir todas as possibilidades, muito angustiado com a possibilidade de perder algo. Acaba sendo o mais nocivo, por atingir o outro diretamente.

Esse comportamento visa compensar algum déficit inconsciente. O mais óbvio é a sombra da incapacidade. As fantasias podem inclinar o indivíduo a querer abraçar todas as chances possíveis, uma vez que não saberá novamente quando estará novamente diante delas. No entanto, não se dá conta de possíveis incompatibilidades que tais oportunidades trazem entre si, ou os choques que promovem com as escolhas prévias.

O resultado: agendas lotadas de compromissos sem sentido, relações igualmente vazias, uma angústia crescente gerada pela insaciedade.

Do que precisamos
A incoerência dá muito mais trabalho, é um desperdício de energia e também uma porta para desentendimentos. Despertará no outro o descrédito, e isso afastará oportunidades do sujeito incoerente – que também poderá ser interpretado como imaturo, oportunista, volúvel. Veja bem, o prejuízo é grande.

A fórmula da coerência parece ser afinar desejo, razão e emoção às circunstâncias. A avaliação criteriosa desses fatores, conciliados ao contexto no qual estamos inseridos, é o que permite ter referenciais mais lúcidos para nossas escolhas.

Acrescente na receita a imprevisibilidade e a paciência para aguardar o momento certo. Descarte as respostas prontas, o medo e a ansiedade. Duvidar é sempre um bom caminho. Como resultado, teremos não só uma vida mais coerente e dotada de propósitos, mas também alguém que se conhece mais, com mais aptidão a viver e contribuir com o mundo.

Psique: Uma triste notícia: somos todos carentes, em maior ou menor grau

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A expressão “vale enquanto serve” impõe uma lei de descarte nas relações humanas. É o que se chama de objetificação do outro – visa retirar dele as características de sujeito (peculiaridades, vontades, emoções, questionamentos etc.) em nome de interesses particulares.

A escravidão é o exemplo extremado desse processo. Nela, o indivíduo tem subtraída a sua humanidade. Sobre ele se impõe uma nova realidade, apontada como certa. É alguém que determina quem ele poderá ser, o que deverá fazer, no que poderá acreditar.

Foi o que vimos com os africanos escravizados que para cá foram trazidos. E que, até hoje, veem seus descendentes sofrendo restrições e imposições decorrentes desse estigma. O principal deles é a negação, o não-reconhecimento da covardia e da crueldade que envolveram esse processo. Nem dos danos que ainda repercutem, em decorrência disso, na população preta.

Essa é uma característica recorrente entre os ‘objetificam’ o outro: tentar impor sobre suas vítimas uma espécie de responsabilidade pelo dano sofrido. ‘Não deveria estar ali naquele momento’, ‘você devia ter sido mais sagaz’, ‘você deve ter feito por merecer’.
Falas atrozes como essas têm uma função primordial nessa dinâmica: retroalimentar a autodepreciação daquele que serve aos interesses originais. Aos poucos, ele acreditará que é um bom negócio estar ao lado de quem usurpa suas potências, pois, somente ali, ele é valorado e reconhecido. O manipulador eficiente saberá encontrar os pontos de maior vulnerabilidade para que essa verdade prevaleça.

Antes mal acompanhado…
A carência é a porta para essa armadilha. Uma triste notícia: somos todos carentes, em maior ou menor grau. Nossa insuficiência faz com que busquemos um ideal de completude (sem sucesso, convém ressaltar). Nunca estamos satisfeitos, e quase sempre não nos conformamos com isso.

Cada um encontrará seus vetores de compensação a tais faltas. Não é por acaso que gostamos tanto de médicos, gurus, prostitutas e advogados – em comum, personagens que nos denotam uma importância, e que, nem sempre, somos capazes de reconhecermos sozinhos.

Felizes dos que recorrem aos profissionais, porque a grande maioria busca fazer essa compensação com pares. E transformam em pares quem lhes der algum aceno positivo. E entregam muito em nome da manutenção dessas relações. São assombrados pela fantasia do desamparo: de não terem em quem encontrar apoio para suportar as dificuldades da vida.

O termo “desvalido” é preciso para descrever esse estado, pois fala daquilo que é desprotegido, mas também daquilo que não tem valor. O carente, um “sujeito objetificável” em potencial, é uma pessoa que não consegue reconhecer os valores que carrega em si. Por isso precisa tanto daquilo que o outro tem a oferecer. E não percebem o preço salgado que cobram para manterem essa relação.

O que chama-se de autoestima nada mais é que o reconhecimento e promoção desses valores e recursos internos. É a antítese da carência – não porque o ser que tem uma boa autoestima não sofre com as faltas, mas sim porque ele consegue enxergar-se para além delas.

Ajuda mútua
Não falo aqui apenas das relações extremas, patológicas. Mas também das imposições dissimuladas, das relações utilitárias do dia a dia – da que nós mesmos, ditas pessoas de bem, praticamos de forma corriqueira, e amenizamos em nossos discursos.

Sem uma ética vigilante, tendemos a usurpar do outro aquilo que tem a oferecer. Somos aproveitadores, pois gostamos do que é bom, farto e fácil. Da mesma forma, também oferecemos aos demais aquilo que nos sobra, quando nos é conveniente. Usamos uns os outros o tempo inteiro, e isso não é problema. É uma fantasia utópica a ideia de independência.

O que aqui chamo de ética é um olhar atento pode ser traduzido como uma medida justa às nossas necessidades. Elas, de fato, são poucas e fazem com que esse “uso cruzado” se configure como uma ajuda mútua – o combinado não sai caro. O bem servir, ou servir para o bem, é capaz de profundas e positivas transformações entre os agentes participantes.

Psique: Está em curso um processo de “esquisitização” das coisas normais

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Tem horas em que acho que o problema está comigo. O mundo parece que está espantado, em sobressalto, diante de coisas que sempre estiveram ali. Fome, desigualdade, hipocrisia. Crueldade, indiferença, falsidade. Ignorância, preconceito, dor. Oportunismo, injustiça, corrupção. E, diante destas e outras incontáveis tríades, olhares atônitos – como que surpreendidos com algo inédito.

De fato, o que me espanta profundamente é quando o que é natural se eleva a um status extraordinário. Quando os olhos esbugalhados se voltam para uma mãe que amamenta em público. Ou para a mulher que decide não ter filhos. Ou para alguém que sofre a perda de um ente querido. Ou, simplesmente, quando alguém não se queixa dos próprios problemas e se preocupa mais em viver, do que demonstrar a própria vida. Isso sim é escandaloso.

Ainda não consegui entender o que origina esse tipo de comportamento. É uma espécie de “esquisitização” de coisas normais. Isso é bem mais bizarro que a maioria das bizarrices apontadas. É como se as pessoas, sei lá, estivessem desaprendendo a ser humanos.
No fundo, deve ser isso. Uma espécie de desconexão com a realidade, uma falha na escuta daquilo que brota do íntimo. E, se levarmos isso em consideração, todos aqueles desconfortos que citei no início do texto são bem mais naturais e pertinentes à humanidade. Afinal, não são meros produtos culturais – e sim valores arquetípicos (arcaicos e típicos) que se repetem desde que o mundo é mundo.

Isso que estou chamando de esquisitização fala de uma interpretação do mundo. Um tanto equivocada, uma vez que está pautada em hábitos bastante recentes, e, como tais, não vividos até a última instância.

A cultura do “remedinho” para abafar qualquer dor, por exemplo, ainda não demonstrou claramente quais os efeitos que trará em longo prazo no psiquismo do ser humano. Da mesma forma, ainda não há conclusão sobre a repercussão da vida vivida por avatares, da exposição nas redes sociais, do descarte nas relações etc.. Não saberemos quem serão nossos bisnetos, em consequência de tudo isso.

Não falo isso por nostalgia, nem por achar que nossos bisnetos não saberão se adequar a essa nova realidade. Essa é, justamente, a grande bênção da psique: por ter um funcionamento compensatório, ela saberá encontrar a saída – retirando dos excessos para cobrir as faltas, e vice-versa. A questão está em, nós, que cá estamos, encontrarmos uma forma honrosa de convivermos, apesar das demandas que surgem.

Parece que é aí que mora a dificuldade para a maioria: antes mesmo que o novo se instale, já querem pertencer a ele. Pensar, funcionar, desejar, responder, sentir o novo paradigma que ainda nem é verdade. E nisso embrutecem o que há de mais delicado. Ou criam uma estima descomunal àquilo que, no fundo, nada muda.

É difícil ser gente quando não sabemos o que é ser gente. E principalmente quando buscamos referência em quem também não tem o que ensinar. Nessas horas, a salvação vem dos clássicos. Daqueles que, por um mistério ainda indecifrável, conseguiram sorver das emoções a sua essência. Até mesmo as mais controversas, desconfortáveis, vis. E traduziram-na por palavras, imagens, enredos, sons. Esses nunca deixarão de ser professores na arte de viver.

Psique: Ser consciente não é só entender o problema, é buscar solucioná-lo

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Entendo o meu ofício como o de um parteiro. Tal qual, não faço o filho, não vou cuidar dele depois que nascer. Não posso ser responsável por algo que vai além das minhas atribuições. Só que, em vez de bebês, acompanho o nascimento da consciência. Frágil, desdentada, careca. Mas com garra para sobreviver.

Profissionalmente, sou escritor e analista. Esses dois personagens emprestam mutuamente conteúdo um ao outro. Seguro na mão de ambos nessa travessia – e muitas vezes, confesso, sou carregado por eles, com o corpo em suspenso, para que meus pés não se machuquem em terrenos espinhosos.

A essência do meu trabalho é dolorida. É no íntimo de cada ser que se encontram as feridas provocadas pelas realidades mais duras. Muitas como as que pude conhecer, mesmo que superficialmente, de uma semana para cá.

Ampliar a consciência
Quarta passada, publiquei aqui na coluna um texto sobre a inveja que pais sentem dos filhos. Desde então, tenho recebido uma série de relatos de quem se identifica com minhas palavras. Uns o fizeram publicamente, para quem quiser ler, e despertaram a solidariedade de semelhantes. Alguns preferiram a intimidade das mensagens privadas. Muitos, aliviados, falam de superação. Outros tantos, ressentidos, despejam mágoas como num pedido de ajuda.

Esse movimento, registrado em tais depoimentos, apontou para uma necessidade de todos nós: a de identificarmos e nomearmos aquilo que nos causa mal estar. Para que? Para dar-lhe uma borda, um limite. Para que isso não fique maior que nossos recursos, maior que nós mesmos. Para que reconheçamos os gatilhos que deflagram nosso sofrimento.

Mas, principalmente, para que possamos ir além do nosso desconforto. Para que, dele, encontremos possibilidades de fazer recursos – seja a ampliação da visão, a compreensão da limitação, a resiliência, a atenção às novas possibilidades, entre outros. É o que chamo, aqui, de parir consciência.

Cuidados neonatais
Nossa atenção está, muitas vezes, em evitar que se instale uma espécie de “depressão pós-parto” psíquico. Ou seja, de não fazer com que o sujeito rejeite o que conseguiu diferenciar de si. Afinal, a dor do parto é grande e pode evocar tal reação. As memórias do ato da concepção também precisam ser cuidadas, não retroalimentem sentimentos doentios.

Se assim fosse, a consciência adquirida faria piorar em vez de melhorar. Nem sempre esse recém-nascido é bem vindo. Mesmo assim, ele precisa de dedicação para viver bem. Até porque, quando falamos desse despertar da consciência, não conseguimos “desver” o que foi visto, nem “desconhecer” o que já foi conhecido.

Ampliar a consciência não é só entender causas e razões. Se assim fosse, processos complexos se resolveriam de forma simples – como a partir da leitura de um texto, por exemplo. Isso pode ser um bom ponto de partida, é verdade. Mas pode ser insuficiente para que percorramos a complexidade daquilo que somos. E para que, dessa percepção ampliada, possamos interpretar nossa realidade de uma forma que vá além das respostas automáticas.

Tomar consciência de algo é justamente afastar essa automação das nossas atitudes, pensamentos, crenças, emoções. É saber contextualizar nossas memórias, tudo aquilo que nos atravessa no momento presente e as projeções que faço para o futuro. Uma tarefa sem fim, que só se encerra na morte.
Enquanto ela não chega, buscamos companheiros para trilhar nosso caminho, de mãos dadas. Ora eles aparecem como agentes externos. Ora são personagens que encontramos dentro da alma. Nos momentos de aflição, eles também nos suspender pelos braços, para defender dos espinhos. Ou então para que, sem tocar no chão, enxerguemo-nos capazes de voar.
nivas gallo