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Psique: A insegurança é um trampolim para a ruína

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Lutar com o que tenho, lidar com o que não tenho. Essa é a equação simples da segurança, da forma como conseguimos nos situar diante das atribulações e da disposição que temos para os enfrentamentos necessários. Na prática, algo bem mais complexo. E, muitas vezes, a insegurança prevalece.

A começar, desconhecemos muito a nossa natureza mais profunda. Apegamo-nos a conceitos rasos sobre nós, muitas vezes para reafirmar êxitos do passado ou para mantermo-nos distantes dos embates.

Essa é uma das principais manifestações da insegurança: a dificuldade para compreender um novo ponto de vista, de estar diante do desconhecido, sem nele se dissolver. O sujeito inseguro é aquele que vê na própria insuficiência o trampolim para a ruína.

Segurança é edificação. Não se constrói da noite para o dia, e depende de diversos fatores. Muitos deles derivam das interpretações que conseguimos fazer sobre a nossa realidade, e também das referências que herdamos do mundo.

A óptica familiar, como nossos primeiros moldes de autoimagem, tem influência decisiva. Há uma espécie de autorização tácita para o desenvolvimento da segurança.

Há pais que estimulam em seus filhos a autonomia, a naturalidade no olhar sobre as coisas, a confiança para lidar com o inédito. Dão conforto para que definam ideias e se projetem diante do novo. Estimulam na criança a confiança em si, as convicções.

Não quero, com isso, demonizar as relações familiares no sucesso dos indivíduos. Afinal, ganhamos inúmeras outras oportunidades na vida para fazer florescer habilidades e potências que não nos foram concedidas por herança.

Mas é fato que indivíduos que não foram (ou não se sentiram) autorizados pelos pais relatam uma grande dificuldade para encontrar um lugar a ocupar no mundo, ou para defender aquilo que são para os demais. Terão de ir além, encontrar novos parâmetros para superar os anteriores.

Por vezes, essa insegurança se manifestará por uma vulnerabilidade descabida diante do inesperado. Noutras, o sujeito se transforma num trator: tem de demonstrar uma suposta força e atropela qualquer outra forma que não seja a que defende. Duas faces da mesma moeda.

A insegurança atravessa todos, a depender da situação em que estamos, e isso não é um problema. Muitas vezes, é a partir dela que aprendemos o que é a prudência, a previdência. Tais fatores também são imprescindíveis para que alcancemos a realização da vida.

Ser seguro não é exatamente ser prepotente, como já falei por aqui tempos atrás. Às vezes, ganhamos bases mais sólidas para viver ao avaliarmos nossas reais competências diante das dificuldades. Conscientes disso, teremos embates muito mais pertinentes às nossas reais necessidades.

Apesar de desconfortável, é pela insegurança que compreendemos as nossas inconsistências. Não ganhamos quando o nosso argumento é o mais aceito, ou quando atuamos com facilidade, e, sim, quando percebemos o quanto ainda nos falta para sermos aquilo que almejamos.

Psique: É preciso ser grato pelo amor e pelo desamor. Tudo nos transforma

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Devo muito ao mundo por ser quem sou. Mas a ele, enquanto imagem do todo. Podia, então, dizer também que devo tudo isso a Deus. Ele também personifica o todo. Essa é a dívida que reconheço.

Sou filho de uma família de classe média, que pode me proporcionar o estudo em instituições particulares. Também nunca me faltou para a assistência básica: alimentação, saúde, segurança, diversão. Sou um privilegiado. E sou grato a meus pais por isso.

Grato, apenas. Pois sei que não foi o que tive que me fez ser o homem que sou. Foi uma colaboração importantíssima, ainda o é. Mas não me sinto um devedor. Nem deles, nem de ninguém. Também não aceito cobranças.

Minha forja foram quem consegui ser, os lugares que minha vista alcançou e as minhas decisões. Algumas, precipitadas e imprecisas, geraram tortuosidades daquilo que sou. Outras, moldaram duro o que carece de firmeza. E temperaram, deram maleabilidade para que eu pudesse me encaixar nos espaços que a vida oferece.

Sou grato a cada amigo, a cada amor, a cada professor. Mas também a cada praga rogada, a cada dúvida sobre meu caráter, a cada resposta que me foi negada. Tudo isso me revelou para mim. Fez com que eu precisasse remexer fundo, em busca de um potencial esquecido, de uma chave enferrujada.

O termo “gratidão” está super em alta, apesar de muitas vezes ser administrado de uma forma imprecisa, outras vezes jocosa. Substitui o “muito obrigado”, num reconhecimento muito honroso a quem ameniza nosso caminho, ao nos prestar algum favor ou gentileza. Acho adequado.

Afinal, estar “obrigado” é condicionar-se a uma recíproca à altura, quando nem sempre temos a oferecer – ou queremos fazê-lo. A verdadeira gratidão se distingue da dinâmica de devedor x credor. Compreender essa semântica, e internaliza-la, pode ser um exercício de libertação.

Muitas vezes, cremos que, para sermos gratos, precisamos estar sempre disponíveis ao outro. É como se tivéssemos sido aprisionados em troca do bem que nos foi favorecido. Sendo assim, somente trocamos de problemas.

Da mesma forma, quando estamos do outro lado do balcão, sentimo-nos autorizados a emitir promissórias sempre que fazemos algo por alguém. Mesmo que elas nunca venham a ser enviadas, ficarão guardadas, exalando uma substância densa, altamente tóxica: o rancor.

Crer numa dívida eterna pela participação do outro em nossa história (ou vice-versa) fundamenta um vínculo pretensioso, criado a partir de exigências. É um entrave imbecil ao desenvolvimento.

Participamos mutuamente uns na vida dos outros. De forma mais ou menos cordial, mais ou menos útil. Não há, entretanto, resultados que dependam mais de alguém que de mim mesmo: até mesmo para sermos ajudados, devemos antes nos autorizarmos a tal.

Quem se vangloria de ter auxiliado alguém não o fez por entrega ou grandeza de alma. É justo o contrário: “emprestou” uma força ao reconhecer um valor naquele que é ajudado, na expectativa de poder gozar no futuro de algum benefício. Nem que seja o status de bondoso, solícito, nobre.

O bem se faz em silêncio, de cabeça baixa. A gratidão, idem. Ambos fazem mais sentido a quem os pratica, e não a quem assiste.

Psique: O oposto à guerra não é exatamente a paz, e, sim, a conciliação

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A guerra é um valor humano. Inevitável, apesar de indesejável. Ela se manifesta quando se percebe a ameaça de ordem preestabelecida por algum fator invasor. Fazem-se guerras por tudo que é tido como valoroso: um território, uma relação, um ideal, um posto. Resume-se assim na necessidade de manutenção ou ampliação do poder.

A maior arma de qualquer combate é a carga afetiva que ela é capaz de mobilizar. O envolvimento nem sempre é com a causa, e, sim, com quem impunha a bandeira. Confiança e cumplicidade podem valer mais do que certas armas. Há muita dor envolvida, muito risco. Se a causa não for cativante, não valerá a pena a batalha.

Nas mitologias, as guerras são personificadas por deuses viris, obstinados. Ares, Marte e Ogum, como exemplos, representam o mesmo arquétipo. Trazem consigo o poder da conquista e da inovação, o caráter impulsivo e indomável.

Mas são teimosos, precipitados, desmedidos, inconsequentes. Têm dificuldade de compreender diferenças. Pecam pelo excesso de confiança. A assertividade se transforma em intransigência. Como qualquer grande confronto, são capazes de promover o sofrimento coletivo em nome de um ideal.

Jung alertava para os momentos mais belicosos. Segundo ele, a nossa consciência se rebaixa e a energia da destruição pode tomar proporções impensadas. Todo nosso potencial bestial encontra liberdade quando estamos diante de um inimigo. Especialmente se tivermos companheiros ao lado. A coletividade nos afasta do discernimento.

E aí vem a injustiça da guerra. Todas as atrocidades, a punição de inocentes. O espírito da guerra foi cegado pela ira. E assim agirá além da medida certa das coisas. Não poupará nem o bem mais sublime: a vida.

Na antiguidade, guerrear era visto como uma arte. Seu desfecho, um espetáculo. Ainda o é, apesar de fazermos de uma forma mais velada. Ficamos gratos com os semelhantes vitoriosos, satisfeitos com a derrota do opositor. Ele representa o exorcismo de conteúdos sombrios, renegados em nós.

O oposto complementar à guerra não é exatamente a paz, e, sim, a conciliação. Nela, não assumimos o caráter exclusivo às diferenças. Buscamos compreendê-las, mesmo aquelas com as quais não nos identificamos.

A tensão que paira sobre o mundo afetará uma série de pessoas, gerando danos irreparáveis para todos os envolvidos. Aos demais, em vez de uma atitude distanciada, cabe uma reflexão: compreender como cultuamos, em nossos altares particulares, a discórdia, a intolerância e a competição.

Nossos gestos não têm o potencial de destruição em massa das ogivas nucleares. Mas são capazes de minar, em nosso semelhante, a capacidade de ele ser o que simplesmente é.

Psique: Paramos de escutar nossos sentimentos para dar ouvidos ao dos outros

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Uma hora, a cobrança chega. Já ouvi isso em diversos contextos. E também já repeti essa frase para algumas pessoas, em situações bem especiais. Quando escutei, ou quando escutaram, o rosto revelou uma mistura incômoda: descontentamento com constrangimento, uma revolta abafada.

É como se descobríssemos, num determinado momento, que não somos tão donos da nossa própria história, como imaginávamos. É justamente o contrário: a história nos tem como instrumento, ela precisa de nós para poder se realizar.

Não falo aqui das sinas tristes às quais nos sentimos atados. Faço referência aos talentos que aguardaram em latência, mas pedem para ser desenvolvidos. Dos compromissos que temos com nosso mundo, aquilo que somente a nós compete – ou que, ao menos, parecemos ser as pessoas mais indicadas a assumi-los.

Grande parte das queixas humanas deriva da falta de uma missão, de algo que confira um significado genuíno à existência. Na psicologia junguiana, entendemos que esta é a grande meta do ser humano: realizar-se como indivíduo, encontrar na própria essência aquilo que lhe confere o cerne, o motivo de estar aqui.

Para os antigos, isso era bem mais fácil. Não só por serem mais resignados aos desígnios que lhes eram impostos, ou por mera conveniência. O que os fazia encontrar logo cedo este sentido existencial era a convicção, a crença, a confiança.

A verdade era mais clara e acessível, e ela bastava por si. Não duvidávamos tanto daquilo que sentíamos, ou do que nos era transmitido pelos mais velhos. Não pensávamos que isso seria uma atitude ingênua, não nos preocupávamos tanto em estarmos sendo enganados.

E, assim, estávamos protegidos do pior que nos habita: a insegurança. Tínhamos a medida certa do medo, e sabíamos reverenciá-los em sua importância. Sabíamos esperar o momento certo das coisas, sem a sensação de tempo perdido. Acreditávamos na confluência dos fatores, numa regência maior capaz de arranjar o improvável.

Substituímos tudo isso pela vontade de controle e determinação, tornando-nos deuses de nós mesmos. As perguntas, no entanto, não cessaram. Só que nossos ouvidos ficaram moucos para as respostas da alma.

Quando a vida se recusa a participar desse jogo, ficamos perplexos. Chega a cobrança para que nos encarreguemos da nossa missão, tal qual ela é, e isso soa incompreensível. No íntimo, sabemos de toda a pertinência do chamado – só não queremos acreditar.

Relutamos, ingenuamente, contra o nosso melhor. E fazemos isso em nome de ideais alheios, que não nos falam ao coração, mas que insistimos em interpretar como sucesso.

Não há missão simples demais, assim como não podemos nos julgar incapazes de realizar nosso caminho. Esconder-se nesses argumentos prorroga as sensações de insatisfação e inadequação.

Entregar-se com coragem àquilo que a vida nos convida a ocupar é uma estratégia de conciliação com a realidade. Sermos quem poderemos ser, explorarmos nossas potências de forma respeitosa e colaborativa.

Compreendemos, assim, a dinâmica da engrenagem. Podemos atuar positivamente para fazer fluir, e não para embargar. O mundo precisa de nós, exatamente como somos e com aquilo que temos a oferecer. Descomplicar, como sempre, é a melhor saída.

Psique: Amar não deveria ser um problema. Mas esse afeto é tão complexo…

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Esta é a centésima edição de Psique. E, para comemorar, resolvi falar de amor. Dele derivam os grandes dilemas humanos e também partem as grandes soluções — aquilo capaz de transformar nossa realidade.

Amar não deveria ser um problema, mas esse é um afeto tão complexo, e tão subjetivo, que acabamos por confundi-lo com diversas outras coisas. E dessa confusão derivam os grandes sofrimentos humanos. Lido com eles diariamente em meu consultório.

Pessoas confundem amor com possessividade. Com a anulação em nome do outro. Com a indisposição para enfrentar uma nova realidade. Com o comodismo. Com a necessidade de reviver as marcas do passado. Com o medo de magoar. Entre outros incontáveis equívocos.

Tudo isso ocorre porque nem sempre conhecemos de fato o amor. Somente imaginamos, tomando por base a referência de sua antítese: o desamor. Chamamos de amor o contrário daquilo que queremos evitar: o abandono, a incompreensão, a insegurança, a incompletude.

Fazemos isso sem compreender que, de fato, tudo que tememos já está em nós, faz parte da nossa condição humana.

Tudo isso é atenuado de alguma forma, interpretamos como uma atitude amorosa. Nem sempre é. São incontáveis as razões que levam duas ou mais pessoas a se aproximarem. Vão da confluência de propósitos aos interesses mais escusos.

O amor real se define pelo compromisso desinteressado e generoso, o que é profundo e difícil de ser exercido. Nas palavras de Jung:

“O amor custa caro e nunca deveríamos tentar torná-lo barato. Nossas más qualidades, nosso egoísmo, nossa covardia, nossa esperteza mundana, nossa ambição, tudo isso quer persuadir-nos a não levar a sério o amor. Mas o amor só nos recompensará se o levarmos a sério”.

Quem consegue chegar a esse lugar, mesmo que por um instante e uma vez na vida, saberá diferenciar com mais tranquilidade a natureza das relações. Saberá que algo pode valer a pena, mas não necessariamente terá de chamar de amor. Ganha-se a lealdade consigo mesmo.

 

Da mesma forma, aprende-se que amor é para sempre. Ele se transforma, converte-se numa outra qualidade de amor – mas nunca deixará de sê-lo como é. Quando é verdadeiro, o amor é gregário, e não competitivo; é compreensivo, e não inseguro.

Amar é uma forma de contemplarmos o que há de mais profundo em nossa alma. Coisas que vão além das heranças familiares, ou daquilo que o mundo julga como importante. Quando amamos, acessamos o sagrado em nós.

Por esse motivo, envolvemos os seres que amamos com tanta importância. A eles, buscamos oferecer o melhor lugar para que se sentem. Acolhemos da melhor forma, para que ali permaneçam. Sabemos que, por meio deles, podemos experimentar, mesmo que por instantes, a impressão de sermos inteiros.

nivas gallo