Self

Psique: Religiosos e céticos concordam: Deus escreve certo por linhas tortas

Crédito: Metrópoles/iStock

Walking direction on asphalt.

Deus escreve certo por linhas tortas. Somos chamados a acreditar nisso, seja por crença religiosa ou como metáfora: como forma de percebermos que nossa vontade pode apontar para equívocos, mas que a vida está atenta e disponível para corrigir as rotas antes que um mal maior aconteça.

É o que chamamos de livramento: o escape diante da nossa cegueira, o anteparo invisível que nos guarda na beira do abismo, a blindagem contra aquilo e aqueles que podem nos tanger dos propósitos de nossa alma.

Deveríamos agradecer devotamente quando isso ocorre, mas nem sempre é o que acontece. Quase sempre, queixamo-nos pelos planos que falharam, pelos contatos não efetivados. Achamos que o mundo está sendo cruel com o nosso desejo.

Essa reclamação parte do ego – uma espécie de gerente prepotente que se acha o dono da loja. Quando as coisas não saem como ele gostaria, faz birra como uma criança mimada: vitimiza-se, insiste no erro, ignora os sinais. E sofre pela própria ignorância.

Daí passa o tempo, senhor de tudo, e a vida mostra que aquela frustração foi um ponto de partida. Percebemo-nos pequenos e conduzidos por uma força maior para algo muito mais pertinente.

Muitos, ao viver isso, refazem os laços com o sagrado. Em suma, isso se dá quando percebemos um sentido maior para existência, quando nos vemos pertencentes e integrantes num sistema bem mais complexo que esse das eleições egoicas.

Por isso, o livramento não é para todos. O mundo nos pede autoria, liderança e controle, valores com os quais o ego tem plena identificação. Não existe assistência se não há espaço para a submissão (estar sob uma missão, mesclar-se a um propósito maior).

Quem, então, nos livraria dos males, se nossa arrogância nos leva a crer que seremos “vencedores” se lidarmos com tudo sozinhos? Ainda assim, sentimo-nos injustiçados quando a falha não sai de nosso caminho.
Feliz daquele que reconhece, em situações graves e nas trombadas corriqueiras, a proteção. Esses não são melhores nem piores, mas estarão mais acalentados fortalecidos diante das adversidades. E, dessa conexão com a alma, encontrarão mais significados para a existência.

Psique: Amigo de verdade suporta sua felicidade, seja ela qual for

Crédito: Metrópoles/iStock

iStock

Tendemos a querer adaptar o outro àquilo que somos. Não necessariamente por querer-lhes o bem, mas para que a nossa vida fique mais fácil. A felicidade é um conceito subjetivo. Cada um concebe as próprias imagens de paraíso. Impor as nossas aos demais é um erro.

Fazemos escolhas que podem representar motivo de preocupação, ou desgosto, para quem nos ama. Principalmente por forçarem a assumir uma nova perspectiva. Isso incomoda porque, numa dessas, poderá despontar a percepção de estarem equivocados. E isso é frustrante.

Daí vem sempre aquele argumento da defesa, do prevenir o outro dos males que pode atrair para si. Falamos isso como se o erro não fosse edificante. Ou como se tivéssemos uma visão privilegiada da realidade, capaz de antever fracassos. E nós, também não fracassamos?

Suportar a felicidade do outro, seja ela qual for, é o sinal da verdadeira amizade, a prova do amor fraterno. Com quem se relaciona, o que consome, o que decide fazer, qual a hora certa de entrar ou sair de uma situação? Tudo isso é de responsabilidade de cada um. Cada escolha, boa ou ruim, só compete a quem poderá sustenta-la.

Vender ao outro as nossas verdades é uma atitude tirana. Basta inverter os papeis nesse balcão: como você reage quando a paixão chega (por algo ou por alguém), e vem aquele amigo aconselhar sobre os riscos desse empreendimento? Isso é suficiente para deter o sentimento?

Por mais que algo seja notoriamente negativo, tal situação foi a forma encontrada pelo outro para algum aprendizado. Não é que devemos ser negligentes: advertir é o papel de quem gosta e cuida. Mas é imprescindível que saibamos que é do outro a escolha – e que nossa visão está sempre contaminada por nossos preconceitos. A verdade tem muitas faces.

O bem estar do outro pode nos elevar, servir de estímulo para que busquemos melhorar a vida. Mas também realça o que há de errado conosco, nossas faltas ou excessos. Daí brotam emoções incomodativas, como a inveja e a competitividade. E, como reação, buscamos formas de desqualificar a felicidade alheia – um mecanismo muito comum. Somos terríveis.

Por isso, entenda o verdadeiro amigo como quem que divide o ombro para chorar, mas também sorri ao ver seu sorriso. E que se alegra com suas conquistas, até quando a própria vida não foi capaz de satisfazer-lhe os desejos. Esses merecem respeito e consideração, por saberem que amar é respeitar o outro como ele é.

Psique: Ser ignorante é o caminho mais rápido. Refletir exige tempo

Crédito: Metrópoles/iStock

ignorancia

O que trouxe você até aqui? Quanto tempo você tem para mim? Quanto me suporta ouvir falar, qual o tamanho da sua disposição para chegar ao fim desse texto? Qual a sua disposição para investir tempo naquilo que lhe interessa? O que, de fato, interessa a você?

Poderiam ser perguntas retóricas, mas não são. Conciliar tempo e interesse é um desafio nesse mundo de uma enxurrada de informações inúteis, e cada vez mais breves, que nos dão a falsa impressão de que sabemos de tudo.

No fundo, estamos sendo treinados a assimilar frases soltas a imagens fortes. É certo de que a linguagem visual sempre foi a mais eficaz para gerar impressões. Mas nem sempre são suficientes para desenvolver um raciocínio mais elaborado.

É um método que parece perigoso. Afinal, é das sobras de palavras (uma mera “perda de tempo”) que surgem as grandes reflexões da humanidade. Ulisses, Zaratustra, Dante e outras personagens precisaram de centenas de páginas para reformar o olhar do mundo sobre si mesmo.

E quem tem tempo para centenas de páginas? Elas competem com centenas de inutilidades pontuais. Estas ocupam pouco espaço, mas nos enganam: guardamos o que não serve, com a ideia de que um dia pode ser útil. Aprisionam-nos, assim, no lado raso da vida.

Tudo isso faz parte de um novo paradigma, que não pode ser negado ou evitado, mas não foi assimilado da melhor maneira. Buscamos comer e exercitar o corpo para sermos saudáveis, visando longevidade. Para que, se desconhecemos o que é viver bem?

Relações sempre foram a atividade-fim do ser humano. Elas nos dão elementos para que saibamos, minimamente, quem somos. Observar como reagimos às coisas se chama reflexão – aquilo que nos diferencia dos outros animais. Economizar palavras reforça nossa ignorância.

Num discurso monossilábico, como o que a nova realidade propõe, o mecanismo relação-reflexão se compromete – regrediremos aos grunidos e dedos em riste dos nossos ancestrais mais distantes?  Ou encontraremos no percurso uma solução que preserve o desenvolvimento da consciência?

Ou a vida não teria mais tempo para ser profunda?

Psique: A indiferença é a mais cruel das condenações

Crédito: Metrópoles/iStock


indiferenca

Dois risquinhos azuis, que ocupam uma meia dúzia de pixels na tela do WhatsApp, são capazes de destroçar alguém frágil. Olhares que não se cruzam no elevador da repartição, e a sensação incômoda da invisibilidade que sucede o ocorrido. Alguém segura a porta para que o vizinho avance e é como se ela se mantivesse aberta por algum dispositivo artificial. E, por um instante, uma pergunta vem à cabeça de quem vivencia tais situações: será que ainda existo?

Se num primeiro momento soa esdrúxula, a questão ganha muita pertinência quando pensamos um pouco sobre ela. Parece cena de filme de gente que já morreu e ainda não sabe. Ou seja, que não pode mais ser percebido, considerado, valorado, qualificado.

Na indiferença, não é somente “matar” o outro na relação, o que asseguraria ao “morto” quem foi, a história que viveu. É a destituição dele do direito pleno de existir – seja como alguém adorável ou detestável. É incorpora-lo na massa estéril de mundo, excluí-lo do rol da humanidade. A mais terrível e cruel das formas de tratamento.

Anular o futuro
É claro que, quantitativamente, somos muito mais ignorados do que percebidos na trajetória da vida. Não somos tão magnéticos assim. Também não se trata de acreditar que conseguiremos tratar todos com paridade, destinando-lhes o carinho, o apreço e a atenção devidos. A ração para alimentar ilusões românticas está cada vez mais cara.

A indiferença à qual me refiro é aquela realizada, deliberada, que contém um grau de perversão em seu núcleo. Escolher ignorar o outro é anular suas potências e, assim, retirar-lhe qualquer possibilidade de futuro – seja ela qual for.

A neurociência atestou a gravidade desse comportamento. Bebês tratados com indiferença terão prejuízos no desenvolvimento, se comparados a crianças acompanhadas por cuidadores que as olham nos olhos. O dano é tão profundo que chega a alterar estruturas cerebrais referentes ao desenvolvimento intelectual e à capacidade de assimilar emoções.

Em adultos, o que vemos são fendas profundas na capacidade de autopercepção e também da qualificação dos recursos internos que dispomos para lidar com a vida. Quem é tratado com indiferença tem uma baixa crença na capacidade de vencer obstáculos e de estabelecer relações saudáveis. Como reação, podem se tornar subservientes, violentos ou perseguir uma falsa autossuficiência – comportamentos que podem ser a chave de inúmeros quadros patológicos.

Silêncio matador
Temos uma dificuldade de lidar com o silêncio. Calar-se diante do outro é perturbador por natureza. Nunca nos acostumamos com esse vazio entre os corpos, que rapidamente será preenchido com sussurros, falas e gritos vindos das nossas vozes interiores.

No ambiente virtual, feito de corpos afetivamente precários, a indiferença se torna um gesto corriqueiro, legitimado e instrumentalizado pelos próprios meios. Excluir, deletar, banir, bloquear são simples botões. O que provocam, não. Matamos pessoas quando as condenamos à inacessibilidade. Muitas vezes, por vingancinhas bobas.

E, enquanto nos distanciamos das possibilidades de interação, também nos colocamos no isolamento. Distanciamo-nos do mundo plural e divergente, quando nos permitimos à partilha somente com aqueles que julgamos importantes – quem faz eco para nossas vaidades, realça nossa identidade ou oferece referências do que validamos como sucesso.

Quando o silêncio vem dessa morte metafórica da indiferença, a angústia é avassaladora. Não se encontram motivos, nem se sabe de fato se a morte já se consolidou. É a imagem da porta entreaberta: não sabemos o que poderá sair dali, quando isso ocorrerá e quais consequências terão.

Os mais nobres valores da dignidade não são experimentados quando somos bem tratados, mas quando sabemos reconhecer um semelhante no outro, apesar dos contrastes que apresenta diante daquilo que somos. Diferenciar-lhe e reconhece-lo é trazer, para si, a grandeza de ser humano.

nivas gallo