Self

Babel: Quando amar é demais

Concedi uma entrevista sobre o amor compulsivo ou patológico à Revista Babel, da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Eis o texto.  

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Duas mulheres falam sobre sua dependência em relacionamentos destrutivos

Por Beatriz Amendola

“Eu atravessava a cidade para encontrá-lo. A gente transava no carro, para logo depois ele me largar em alguma estação do metrô e ir embora. Eu ia embora chorando todas as vezes, querendo que ele conversasse comigo. Ficava no carro enrolando, esperando que ele me quisesse por mais tempo. E ele continuava me dizendo que tinha que ir, que eu devia ir. Isso me destruía completamente. Não me sentia nada além de um corpo”. O relato pode parecer inspirado em um romance da ficção, mas o faz-de-conta não é tão inventado assim quando se trata de relacionamentos amorosos que trilharam um caminho bem diferente do tão desejado “felizes para sempre“ e passaram a se sustentar na dependência emocional.

Luciana*, a protagonista do relato acima, é uma entre tantas pessoas no mundo que viram seus namoros e casamentos – aparentemente perfeitos – entrarem numa espiral permeada por insatisfação, indiferença e até humilhação, mas que não desistiram por se verem demasiadamente ligadas ao parceiro. São histórias que contradizem ao máximo o famoso verso de Camões, que chegou a dizer que o amor “é ferida que dói e não se sente“. O amor dói sim – mas quando ele vira um inferno essa dor  passível de ser ignorada.

Desiludida após um relacionamento fracassado, Luciana não resistiu ao charme do colega de trabalho comprometido com outra mulher. “Pela primeira vez, decidi que ficaria com alguém que namorava, sem sequer me importar com sentimentos alheios. Afinal parecia que ninguém se importava com os meus. Então, fiquei com o João*, mesmo ele namorando“. Mas sua intenção de apenas aproveitar o momento foi além disso – e ela caiu nos encantos do rapaz infiel que lhe dispensava o afeto e carinho pelos quais ela tanto esperava.

“Nunca na minha vida tive aquela atenção, sequer dos meus pais… e estava lá alguém que parecia me dar tudo que nunca tive… como deixar aquilo? Parecia tão injusto comigo. Quantas mulheres não se envolviam com homens casados e tinham relações de anos? Era o que eu pensava naquela época. Mas Deus foi injusto comigo, me fazendo ficar com alguém que meu deu tudo e que eu teria que abandonar. E não, eu não abandonaria a ‘melhor coisa que me aconteceu’. Eu estava completamente iludida”, disse Luciana.

A ilusão pelo “bom-moço“, essa figura tão mística que está presente na cabeça das mulheres desde cedo, não fez dela sua única vítima. Apaixonada por um amigo de seus primos, Maria* viu nele o homem de seus sonhos. “Aparentemente parecia perfeito: bonito, inteligente, carismático, dentista com consultório próprio, solteiro”. O namoro veio rápido, um mês depois.

Os problemas, porém, começaram a aparecer quando ele passou a alimentar sua insegurança com comparações entre ela e sua ex-namorada e isso a levou a adotar atitudes apenas para a satisfação dele. “Ele dizia que ela era incrível na cama, tinha experiências bissexuais… isso já despertou uma insegurança enorme em mim e comecei a me sujeitar a várias práticas sexuais para agradá-lo, como sexo anal frequente e até asfixia”, conta.

O parceiro ainda passou a mostrar uma faceta que se revelou dominadora e agressiva, o que forçou Maria a entrar em um ciclo de tensão constante: “Ele tinha acessos de fúria e eu não podia discordar dele em nada, ficava oprimida. Qualquer besteira era motivo para ele gritar comigo, dizer que queria terminar, que não gostava de mulher enchendo o saco e que tinha uma monte de outras mulheres atrás dele. Bem cruel, eu diria. De um estado amoroso se transformava num monstro agressivo. Nessas situações eu me humilhava, pedia desculpas, chorava muito e depois ele sempre se arrependia, pedia desculpas. Era emocionalmente muito desgastante”.

Marcados por agressividade, descaso e indiferença, os relacionamentos das duas mulheres se encaixam na categoria de relacionamentos destrutivos, que possuem um conceito mais amplo do que a violência física a qual costumam ser associados frequentemente. Além dos possíveis danos físicos, esse tipo de envolvimento pode causar prejuízos morais e psíquicos que variam de pessoa para pessoa, uma vez que a dor e a humilhação são sentimentos extremamente subjetivos. “Uma palavra, ou até mesmo uma negligência, pode levar a um comprometimento semelhante a uma agressão física, a depender da fragilidade de quem a recebe”, explica o psicoterapeuta e analista João Rafael Torres

No caso de Maria e Luciana, as relações, que duraram mais de um ano,  deixaram marcas profundas na vida e na alma de cada uma. Tomada pela insegurança e pelo medo, Maria parou de comer. Perdeu quase dez quilos. Obcecada e com depressão, começou a tomar tranquilizantes e, pelas faltas frequentes no trabalho, acabou demitida. Reuniu forças e pediu um tempo para o namorado. Pouco depois, entretanto, os dois combinaram de passar um ano novo juntos. E ele desmarcou de última hora. “Surtei“, diz ela, que reagiu se entregando ao vício em álcool e drogas nos meses seguintes.

Luciana soube do término do relacionamento pela namorada de João* – com quem, aquela altura, ele havia tido um filho e exibia felicidade nas redes sociais. A “oficial“ lhe enviou um email, onde contava que sabia do caso e colocava um ponto final na história. Do amante, porém, não ouviu uma palavra sobre isso, ainda que ele ligasse para conversar periodicamente. Mesmo sem se encontrar com ele, Luciana esperou dois anos que ele largasse a família para viver com ela – o que nunca aconteceu.

As consequências nefastas para a segurança e a própria imagem, ainda nos estágios iniciais dos relacionamentos, não foi suficiente para afastar Luciana e Maria dos – ao menos no sentido mais literal da palavra – companheiros. O misto de insegurança e traumas passados tornou o processo de desvinculação mais complicado do que poderia ser. Iludida pela ideia de ter encontrado “o homem de sua vida“, Maria ainda foi afligida pela ideia de não conseguir um casamento depois.  “Estava realmente apaixonada e achava que ele era o meu príncipe encantado. Como eu já estava com mais de 30 anos , na minha cabeça achei que fosse minha última chance de casar, pois já sofria muita pressão social por parte de amigos e família.”

Já Luciana encontrou em João o reflexo da própria história de sua família. “[Ele era] o homem inacessível, como meu pai. Sempre tendo mais de uma mulher. E hoje, percebo que, se ele abandonasse a família, seria a prova maior de amor. Meu pai fez isso, abandonou a família dele pra ficar com minha mãe. Eu ficava porque era tão bom ter atenção… e era algo que sempre lutei muito pra ter na minha família, e estava alguém lá, carente como eu, que no começo supria isso, e cada vez que eu ia embora, ele vinha e me dava toda aquela atenção, todo aquele carinho que eu não tive”.

Vindos do presente ou do passado mais distante, os medos e inseguranças exacerbados contribuem para que a situação, mesmo que infeliz e com possíveis violências psicológicas, se cristalize, de acordo com a psicanalista Belinda Mandelbaum, coordenadora do Laboratório de Estudos da Família, Relações de Gênero e Sexualidade do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Para ela, a manutenção desse quadro está associada a padrões que vêm desde a infância e se repetem continuamente.

João Rafael Torres corrobora essa análise, afirmando que o histórico familiar, particularmente, é imprescindível para construir a baixa autoestima que levará uma pessoa a se atrelar a um relacionamento destrutivo. “É nas relações parentais que aprendemos o “modelo” de relação a seguir. Por exemplo: a filha de uma mulher que tenha se submetido ao masculino tenderá a buscar homens que repitam o mesmo padrão de comportamento; ou poderão caminhar ao outro extremo, assumindo o papel da “mulher forte”, que se impõe sobre o masculino – ou seja, buscará homens vulneráveis, e a dinâmica abusiva será mantida“.

A autoestima, essa percepção que cada um tem de suas características e de seus valores, é um conceito chave para se compreender a dependência em relacionamentos ruins. Com uma dificuldade em reconhecer suas próprias virtudes, a pessoa passa a buscá-las no parceiro, o que fará com que a relação seja supervalorizada. Soma-se a isso o fato de a insistência do companheiro ser vista por ela como um sinal de valorização, a grande realização de quem sofre com problemas de autoestima. “Obviamente, é uma gratificação torpe, pois acrescenta poucos valores a cada um dos envolvidos“, completa João Rafael.

Um namoro ou casamento de caráter destrutivo pode fazer  muito para agravar o quadro, pois deixa a pessoa ainda mais vulnerável a suas inseguranças, de acordo com Belinda. “Há relatos de pessoas que sofrem essa violência sistemática e acabam incorporando o discurso e se sentindo sem valor. O companheiro pode fazer muito no sentido de melhorar a auto estima ou prejudicar”.

O adicional da violência, porém, não é um fator que só aparece em casos particulares. Belinda explica que ela é um componente que está nos fundos de qualquer relacionamento, uma vez que o amor e a atração também convivem com sentimentos de raiva, ódio e frustração. “A diferença de como a situação se desenvolve vai depender da dinâmica do casal. Tudo depende de como o casal lida com esses sentimentos. Se eles conversam, se há uma expectativa de que eles devam sempre concordar em tudo, se um precisa culpabilizar o outro”, explica.

A relação de Luciana com  João acabou tomando esse rumo quando as brigas se tornaram frequentes e ele parou de atender suas ligações para evitar discussões. Com a pouca conversa e os contatos esparsos, ela confessou que sua autoestima foi abaixo: “eu ficava louca e ligava, ligava, ligava… umas 30 vezes. Me sentia impotente e não podia ligar pra casa dele, pois sabia que com isso ele me abandonaria de vez. Então chorava e, após um tempo, entrei em depressão. Me sentia humilhada, um corpo, um símbolo sexual, uma vagabunda, uma destruidora de lares, uma mulher sem moral. Era uma briga constante comigo, me senti mais baixa do que nunca”.

O relacionamento atribulado com o ex egocêntrico – que chegou a decidir o futuro do namoro em um jogo de paciência – também detonou o bem estar de Maria consigo mesma. “Estava surtada, com as ideias embaralhadas, com um desespero profundo. Achei que fosse morrer de tanta dor, não via luz no fim do túnel  Era como se ele fosse o último homem na face da terra e eu fosse ficar sozinha, me sentindo um lixo, para sempre”.

Após as experiências, tanto ela quanto Luciana ainda se consideram em recuperação, ainda que haja uma diferença de seis anos entre o fim de seus namoros. Ambas encontraram conforto nas reuniões do grupo Mulheres Que Amam Demais Anônimas (MADA), onde as mulheres que já passaram por situações de relacionamento destrutivo se ajudam compartilhando suas histórias. “Tenho tido grandes progressos em relação às minhas atitudes perante os relacionamentos e tenho certeza que jamais me sujeitarei a uma situação emocional  como essa novamente. No início, é difícil modificar os padrões de pensamentos e atitudes, mas depois de um tempo mudamos realmente”, conta Maria, que já frequenta o grupo há sete anos.

Não há uma fórmula única para se recuperar das marcas deixadas por relacionamentos destrutivos. Segundo João Rafael, porém, o autoconhecimento e o fortalecimento dos próprios valores é uma das chaves para evitar a mesma armadilha no futuro. “Potenciais abusadores estarão sempre disponíveis para encontrar novas vítimas. Mas só será vulnerável a essa investida quem não exerce o respeito por si mesmo”.


*Os nomes foram trocados para preservar a identidade das entrevistadas

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Artigo: A anorexia e seu demoníaco maternal

O artigo científico abaixo foi produzido em parceria com a psicóloga Maria da Guia Ramos, como atividade integrante à especialização em Psicossomática, pelo Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, em 0utubro de 2013. 

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A ANOREXIA E SEU DEMONÍACO MATERNAL

 

João Rafael Torres

Maria da Guia Ramos

O conceito de beleza se encontra intimamente ligado ao conceito de perfeição. E os limites estéticos estabelecidos pela sociedade contemporânea têm se apresentado cada vez mais rígidos, privilegiando um padrão de aceitação constituído por mulheres magras e atléticas e homens fortes e corpulentos. Sob essa óptica, o indivíduo perde a referência de valores próprios e sofre com a debilidade de uma identidade, tornando-se altamente vulnerável ao meio. No culto ao corpo, a relação com a alimentação é revalorada: transcende a função de nutrição e promoção de saúde, passando a ser objeto de excessiva preocupação, controle, recompensa, traição etc.. Ocupa, assim, com mais vigor um signo de tradução psíquica, especialmente das problemáticas existentes no campo do psiquismo.

Em O ego e o id, Freud lembra que os investimentos libidinais no próprio corpo são a base do narcisismo, um dos temas centrais que norteiam nossa sociedade e valores culturais atuais. Como fator constituinte da personalidade, a maneira pela qual cada indivíduo vive o narcisismo será determinante para a estruturação egoica e para a formação de sintomas corpóreos (REGO, M.G.S., in BUSSE, 2004, p. 121).

Alheio à própria existência, o indivíduo passa a viver em busca da perfeição, sem perceber que caminha na contramão da realidade humana, negando sua condição de potencialidades e limitações. Nesse campo, a supervalorização das imagens e impressões superficiais, residentes apenas na dimensão e nos valores do corpo, torna-se fonte de um exibicionismo exacerbado, perdido, coletivo, que gera frustrações e produz sérios desconfortos emocionais. E, ao perceber que a imagem buscada não é encontrada, ou não sacia o esvaziamento interior que o coloca em crise, surge o inconformismo com a realidade da imperfeição humana. E daí decorrem os quadros neuróticos, como os distúrbios de autoimagem – a porta para os transtornos alimentares, um mal epidêmico no mundo contemporâneo. Destacam-se, entre eles, a obesidade, a bulimia nervosa, a vigorexia e a anorexia nervosa, objeto deste estudo.

A anorexia nervosa é um transtorno alimentar, cujo quadro psicopatológico consiste na representação alterada da forma corporal, associada a uma preocupação excessiva com o peso e o medo patológico de engordar. Em geral, suas primeiras manifestações se apresentam na fase transitória entre infância e adolescência, fase do desenvolvimento da personalidade onde se percebe a necessidade de negação dos vínculos parentais de infância, para uma autoafirmação como indivíduo independente da família de origem. Sem um lastro egóico bem constituído, o adolescente busca referências em padrões ditados por modismos, distante de referenciais de razoabilidade. Enxerga os próprios valores com lentes míopes e, sem ter estrutura para uma diferenciação entre o simbólico e o concreto, acaba por transpor tal distorção para a imagem que vê refletida no espelho.

O transtorno anoréxico consiste em restrição dietética progressiva e eliminação de alimentos da dieta, atingindo o limite extremo na recusa em alimentar-se. Pode estar associado ou não a outros comportamentos para a manutenção do peso, como o uso de métodos de expurgo (laxantes ou induções ao vômito) e a prática excessiva de exercícios físicos, com a finalidade de eliminar as calorias ingeridas nas refeições.

Diversas escolas de estudo da psique humana, entre elas a Psicologia Analítica, apontam para um aspecto importante do papel materno: a relação estabelecida entre mãe e filho, nos primeiros anos de vida, determinará a forma como este perceberá a si próprio e o mundo que o cerca. Num primeiro momento do desenvolvimento da personalidade, a mãe atuará como veículo para promover o Self infantil, uma vez que o bebê não dispõe de recursos internos suficientes para atender suas necessidades básicas.

O estudo das relações objetais, responsável por disseminar essa concepção, também aponta que a falha básica, reside na relação íntima pais-filhos, na qual foi dada pouca atenção às necessidades e desejos da criança, podendo gerar, no menor, diversos transtornos perceptivos e conceituais. A falha em tal mecanismo também definirá a capacidade de resiliência do novo indivíduo: a capacidade de se frustrar e tolerar a frustração, o enfrentamento às adversidades apresentadas pelo mundo, o grau de confiança em si e nos demais etc. Desse contexto, surge uma criança insegura, vulnerável, que se vê diante da necessidade de acionar precocemente o instinto de autopreservação e desenvolver mecanismos de defesa, que substitua a segurança da mãe.

O indivíduo que não experimentou o amor como fluido fundamental tenderá a assumir uma tônica afetiva conduzida pelo medo e pela necessidade ilusória do controle. Essas são temáticas essenciais nos mecanismos compulsivos, assumidos sob a forma de quadros neuróticos ou psicóticos. “A criança à qual não se permite viver os seus próprios ritmos espontâneos desenvolve um ritmo petrificador do poder dos seus próprios instintos, visto estar apartada do seu próprio Ser interior, e, portanto, distante da realidade da vida” (WOODMAN, 1991, p. 110). Esses são indivíduos que, em geral, se tornam despreparados para lidar adequadamente com novas experiências e expectativas e que, diante de tais desafios, expressam suas necessidades inconscientes a partir de ricas sintomatologias.

Entendido como um movimento neurótico, o transtorno alimentar assume características psicossomáticas, ou seja, uma tradução dos conflitos psíquicos que não ganharam elaboração e ressignificação a partir da linguagem dos sintomas corporais. Jung defendeu esse aspecto psicóide do sintoma, ao perceber que “os mais assustadores e compulsivos sintomas psíquicos contêm, frequentemente, objetivos e propósitos específicos” (MINDELL, 1989, p. 16), na medida em que “matéria e psique parecem estar em constante união nos fenômenos do corpo onírico, e aparecem separadas apenas quando consideramos conscientemente sonhos, sintomas ou sincronicidades surpreendentes” (ibid., p. 156).

Woodman (1991) acredita que “a vida não vivida dos pais pode se manifestar na filha mediante algum tipo de distúrbio de alimentação” (p. 130). A anorexia pode ser interpretada, desta forma, como uma expressão de um dano psíquico familiar, uma vez que percebe-se nitidamente, a partir da experiência clínica, que a patologia deriva de um caráter simbiótico e destrutivo na relação mãe-filha, assim como assinala Spgnesi (1992): “a mãe da anoréxica é dominadora, exigente, frustrada e ambiciosa” (p. 44). Alheias às questões da própria feminilidade, e francamente associadas aos valores do masculino, muitas vezes tais mães alimentam as filhas com uma espécie de “nutrição imprópria”, orientada pelas “necessidades, desejos e ambições não realizadas” (ibid., p.45).

Quando convertida em anorexia, a inadequação de maternagem é geralmente provocada pela insuficiência. “Inconscientemente, a criança foi rejeitada pela mãe; portanto, ela não é uma pessoa, mas uma coisa” (WOODMAN, 2002, p. 94). Essa desumanização se reflete na dificuldade de reconhecer a própria identidade e opinião, revertida numa espécie de dependência da afirmação e aprovação do outro. Possivelmente, derive daí o quesito de transtorno de autoimagem que acomete as vítimas do transtorno alimentar. A menina torna-se um objeto psiquicamente indefeso e manipulável: busca ser a “boa filha” da “mãe perfeita”, a quem precisa prontamente agradar, atendendo-lhe as expectativas imaginadas. “É como se o corpo não fizesse parte do self das anoréxicas, mas pertencesse a seus pais, não havendo individualidade própria para essas meninas”, (BUSSE, 2004, p. 53). Mas, para cumprir tal compromisso, o faz de uma forma excessivamente rigorosa e controladora: compulsivamente, tenta se impor sobre as circunstâncias vitais, a começar pela alimentação, e colateralmente, as relações interpessoais. Aos poucos, bane o prazer, em nome do poder que, ilusoriamente, esse controle oferece.

Woodman defende que uma mãe que nega a sua essência feminina, vinda do corpo, não terá condições plenas para transmitir à filha “o sentido de harmonia com o Self e com o universo, que é fundamental para o sentido ulterior de totalidade” (1991, p. 109, grifo da autora). Sem essa referência de conforto e acolhida à própria natureza, a criança dificilmente conseguirá reconhecer em si a valia, impedindo assim o alicerçar seguro da estrutura egoica. E “sobre tão frágil alicerce será construída uma sobre-estrutura rígida, baseada em valores coletivos: disciplina, eficiência, dever. A energia que quer fluir no criar, no viver, no brincar, é forçada a encontrar saída em compulsões cegas” (2002, p. 118).

Associando a si própria como um fracasso da mãe, e com baixa capacidade para simbolizar os aspectos da existência, a criança poderá viver uma busca por uma perfeição que compense sua frustração. Assim, o desencadear da anorexia nervosa registra a negação do corpo (o eu), negligenciado desde os primeiros momentos de vida, através da imagem internalizada da figura materna, facetando o feminino não reconhecido nela e por ela. Nesse sentido, a recusa da anoréxica em relação à comida ultrapassa o âmbito da alimentação, significando uma tentativa de sublimar o corpo e suas exigências. A patologia assume assim uma espécie de missão espiritual de limpeza, muitas vezes associado ao asco e pavor desenvolvidos em torno da comida, da gordura, da proximidade e do contato com o outro.

Manifestado principalmente nos primeiros anos da adolescente, o transtorno alimentar impede também a realização da sexualidade latente – interpretada como uma ameaça biopsíquica, na medida em que pode separa-la do papel de filha. Busse (2004, cf. p. 54) ressalta que o emagrecimento intenso da anoréxica a destitui das formas arredondadas que marcam o corpo feminino, objetivando uma assexuação que as cristaliza na fase infantil. Mesmo naquelas que desenvolvem a anorexia nervosa após a fase adulta, a falta de nutrientes e perda de peso ocasionam um prejuízo no ciclo menstrual, impedindo a concepção e a gestação. O autor associa o medo de que o alimento provoque o aumento da barriga a uma possível dificuldade de assumir o papel de mãe. “Os conflitos existentes entre mãe e filha mobilizam a anoréxica a não introjetar a figura feminina adulta (mãe), vista como negativa, e o desejo de não copia-la.” (ibid.)

Nos estágios mais avançados de inanição da anoréxica, a presença da autonomia e ausência de ansiedade se deve ao vínculo simbiótico que ela estabelece com a mãe. “Vivem como se estivessem ainda inconscientemente unidas a uma mãe nutridora mantendo uma insistência ilusória que são suas próprias provedoras e, por isso, não dependem de suprimentos de alimento real” (SPGNESI, 1992, p. 45). Nesse estágio, ignoram a possibilidade da morte, já que o fantasma que as perturbam é a própria incapacidade de lidar com a vida.

A psicossomática preconiza que o sintoma físico é uma representação simbólica de um conflito que não ganhou uma significação elaborada na psique. É um símbolo, que evoca a fusão entre o eu e o inconsciente, entre o ego e a sombra, na polarização de opostos etc.. Inclusive, a supressão dos sintomas físicos, sem uma devida compreensão do conteúdo que ele representa, pode ser inútil ou até mesmo nociva, vista a função compensatória desempenhada pelos mesmos.  Mindlell (1989) explica que “os sintomas aparecem como doenças apenas para a consciência”, enquanto o inconsciente os vê como “parte natural do processo onírico” (p. 168).

Existem casos nos quais o corpo até acusa a consciência de “causar” a doença, por manter atitudes de cura racionais desvinculadas que isolam o corpo do resto da personalidade. A “cura” pode ser uma atitude potencialmente destrutiva, por não escutar os distúrbios ou considera-los como sinais patológicos, pode força-los a se amplificarem a fim de serem levados em conta (ibid.).

 É o caso de Alice (nome fictício). Aos 27 anos, ela submeteu-se à cirurgia bariátrica, como estratégia para combater uma obesidade mórbida. Imatura e ansiosa, demonstrava reservas sobre a intimidade, com dificuldade de vinculação e enfrentamento. Após o procedimento, desenvolveu um quadro de preocupação excessiva com a perda do peso e manutenção do mesmo. Três anos após a cirurgia, ela retorna ao atendimento clínico com quadro de anorexia nervosa: além de uma grande dificuldade para ingerir alimentos, mantinha-se angustiada quando comia. Sentia-se “envenenada” e provocava vômitos. O quadro desenvolveu nela um misto de apatia, diante dos afazeres, e agressividade, para com os familiares que tentavam força-la a comer.

Durante o processo de análise, Alice revelou uma relação extremamente conflituosa com a mãe. Esta era vítima de esclerose múltipla, deflagrada aos 2 anos da filha, e sempre manteve um comportamento agressivo. Dedicada e dependente em excesso ao marido, de quem era extremamente ciumenta, assumia muitas vezes um comportamento vitimizado para sensibiliza-lo. Usava os filhos nesse jogo, criando intrigas entre pai e filhos, para que ele os punisse com surras e castigos. Aos 10 anos, Alice teve meningite. A mãe convenceu o pai que era fingimento e a garota só teve assistência médica quando socorrida por uma tia, após o agravamento dos sintomas. Na adolescência, ouviu um diálogo dos pais, no qual a mãe manifestava o desejo de mandá-la a um internato, para sanar a profunda irritação que Alice a provocava. Era nítida a relação de possessividade da mãe em relação ao pai, e, obviamente, o ciúme da mínima atenção que ele destinara aos filhos. Nessa época, Alice passou a se isolar e desenvolveu compulsão alimentar. “Sinto que vivi em total desproteção, ainda me vejo sem voz. Até hoje não consigo falar para me defender”, reflete a paciente. Mesmo depois do casamento, Alice mantém uma obediência doentia em relação aos pais, pelo temor de represálias. E tem associado a isso uma espécie de responsabilidade sobre o bem-estar, especialmente da mãe. Busse (2004) associa a anorexia nervosa a fatores de depressão, presentes nos pacientes do transtorno, mas também em seus familiares (cf. p. 47).

A relação entre a mãe e o pai de Alice nos impele a pensar numa dinâmica distorcida, onde o masculino recebia um valor exacerbado. Woodman ensina que isso pode derivar da relação conflituosa que a mãe estabelecera com o próprio corpo, em virtude do quadro de esclerose múltipla.

A mulher que não se encontrou em seu próprio corpo depende de um homem que a ajude a nascer nesta terra, inclinando-se, por conseguinte, a projetar o seu Self no homem que ama.  Eis que a sexualidade se torna demasiado carregada de conotações espirituais. Quando fé e amor são sinônimos, a mulher projeta Deus no seu homem, apenas para ser testemunha do colapso dessa ponte que não foi construída para suportar esse peso (1991, p. 115).

Histórias como as de Alice sinalizam como a doença une mãe e filha num propósito comum: convergir à atenção dos demais para problemáticas psíquicas estruturais, com as quais não conseguem lidar. A anoréxica muitas vezes busca repetir um desejo secreto da mãe, de ansiar pela simpatia e cuidado dos demais – coisa que conseguem, torpemente, pela doença. Quem se recusa a comer adquire poder sobre os demais, que têm a rotina comprometida pela preocupação com a manutenção da saúde da paciente. As mães podem assumir, assim, um papel complementar ao transtorno: vinculam-se à doença tanto quanto a filha, mas no papel de cuidadora. Podem buscar, dessa forma, uma espécie de reparação das negligências que entendem ter vivido na própria história, enquanto filhas. Nesse aspecto, se enredam num conflito significativo, resultante da sintomatologia, pautada na relação de amor e ódio indiferenciados. Para a filha, o alimento se transforma em um tirano, que a impele a compartilhar do reino da mãe (cf. SPGNESI, 1992, p. 44).

 Woodman (cf. 2002, p. 58) defende que a estrutura ritualística da alimentação, geralmente associada ao quadro da anorexia, tem fortes relações com o quadro ambivalente traçado na relação mãe-filha. Ao fragmentar o alimento em pequenas porções, a anoréxica reascende a temática arquetípica do esquartejamento da mãe. O desmembramento aponta para um processo da mãe negativa em positiva, pela separação. Ao eleger um único pedaço, ou uma pequena porção deles, para se alimentar, a anoréxica promove uma espécie de comunhão com a temática materna. Supostamente, uma tentativa de integração psíquica, sinalizada pelo Self, para que possa estabelecer uma ressignificação na relação com a comida, além de estabelecer um contato real com seu corpo e de elaborar uma autoimagem positiva. Essa mudança é entendida pela autora como a transformação arquetípica da bruxa devoradora, em Sofia – a sabedoria. É quando o ser adquire novamente a significação humana esquecida por ocasião da dissociação com o princípio feminino.

Assim, entende-se que o processo de cura exige que o indivíduo trabalhe criativamente o corpo rejeitado, reconhecendo-se que é vítima de um distúrbio de autoimagem provocado por uma fantasia fundamental: a busca compulsiva pela perfeição. Ao se dar conta da inviabilidade de recuperação do paraíso perdido (a saber, a relação simbiótica e harmônica entre mãe e filha, muitas vezes somente idealizada e não vivenciada), a anoréxica poderá perceber que só ela poderá suprir a sensação de bem estar e completude, abandonando a busca pela perfeição. No caminho pelo resgate, será necessário enfrentar a desordem inicial, e celebrar com ela esse retorno, a fim de reformular a percepção do Si-mesmo e do mundo que a cerca. “Somente ao desenvolver o ego e ao aprender a dar valor ao seu próprio sentimento, será ela capaz de construir um núcleo forte o bastante para suportar o conflito entre opostos e para levar o sofrimento ao ponto de ruptura” (WOODMAN, 1991, p. 112).

Além disso, todos os fatores familiares correlacionados à anorexia nervosa levam a crer que o tratamento não deve ser focado exclusivamente na paciente anoréxica, mas deve se estender aos entes mais próximos – tendo em vista que, apesar de apresentar os sintomas em um dos membros, a doença representa uma disfunção complexa da psique familiar, como ressalta Lupo.  “Quando ignoramos o sistema familiar, corremos o risco de o (a) paciente melhorar e isso ameaçar os familiares. Os pais têm de se sentir seguros com o tratamento e o terapeuta deve evitar que eles ‘sabotem’ o tratamento” (in BUSSE, 2004, p. 282).

Gabbard sintetiza a psicodinâmica da anorexia nervosa em seis itens, a saber:

1) Tentativa desesperada da anoréxica de ser única e especial; 2) ataque ao falso sentido do self incentivado pelas expectativas dos pais; 3) afirmação de um self verdadeiro nascente; 4) ataque ao introjeto maternal hostil, visto como equivalente ao corpo; 5) defesa contra a voracidade e o desejo; e 6) esforço para fazer os outros se sentirem ávidos e desamparados no lugar da paciente (ibid., 2004, p. 54).

O caos aparente, sinalizado pela exuberância dos sintomas, nada mais é que o instrumento usado pelo Self para estabelecer um novo ordenamento numa estrutura psíquica adoecida. Em última instância, o que se busca é a integração de conteúdos sombrios na consciência. 

O espírito mercurial do corpo provoca pânico na consciência, ameaçando o fim do mundo em seu aparente esforço para promover uma mudança instantânea. (…) O corpo onírico precisa falar em termos absolutos, para conseguir até as menores mudanças diante da natureza insensível da consciência (MINDELL, 1989, p. 178).

Desta forma, poderá compreender a necessidade de se enxergar como um indivíduo uno e indivisível. “Individuação significa que os olhos, a cor da pele, os lábios, os movimentos da mão, a postura corporal, o tom da voz, as palavras e as fantasias manifestarão todas uma e a mesma informação: a personalidade real, o mito vivente.” (Ibid.)

REFERÊNCIAS

– BUSSE, Salvador de Roses (Org.). Anorexia, bulimia e obesidade. Barueri: Manole, 2004.

– MINDELL, Arnold. O corpo onírico: o papel do corpo no revelar do si-mesmo. Trad.: Maria Sílvia Mourão Netto. São Paulo: Summus, 1989 (Novas buscas em psicoterapia, v. 39).

 – SPGNESI, Angelyn. Mulheres famintas: uma psicologia da anorexia nervosa.

– WOODMAN, Marion. A coruja era filha do padeiro: obesidade, anorexia nervosa e o feminino reprimido. 10ª ed. Trad.: Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Cultrix, 1991 (Coleção de Estudos de Psicologia Junguiana por Analistas Junguianos).

– WOODMAN, Marion. O vício da perfeição: compreendendo a relação entre distúrbios alimentares e desenvolvimento psíquico. Trad.: Maria Sílvia Mourão Netto. São Paulo: Summus, 2002.

 

 

Meia Um: A casa vermelha

 

Dentro de nós existe uma rua. Nela, nada lembra conjuntos habitacionais, planos urbanísticos ou qualquer coisa que os valha. Cada casa é de um jeito, moldada a partir das necessidades e condições de cada morador. Tem casa de fachada monumental, ostensiva. Tem taperinha, onde vive a espontaneidade. O sobrado alto é usado como torre de controle. Na casa grande, as portas estão sempre abertas para acolher os amigos. A rua é grande, sinuosa, tão populosa quanto é a nossa alma. Logo na entrada, temos uma casa vermelha. Resplandece, como os ipês no auge da seca. Essa é a casa do desejo.

Lá dentro, tudo parece imprescindível. Há sempre uma parede lisa, pedindo um quadro; um cômodo vazio, que exige mobília. A demanda é a lei nesse lar. Nem tudo que se deseja é necessário, é verdade. Mas a falta consome, mobiliza, inquieta. Até quando tudo parece preenchido, vem um estranho desejo de desejar. Quanto mais observamos a casa vermelha, mais ela cresce. Invade, empurra as demais, tomando-lhes o lugar para existir.

A sensação de falta é condição natural ao homem. Marcamos nossa progressão a partir daquilo que adquirimos, do que conseguimos suprir – seja na dimensão material, psíquica, social ou espiritual. O contentamento, entretanto, não chega. O desejo está associado a nossa capacidade de reflexão sobre a própria vida. Estabelecemos, com ele, parâmetros de uma suposta felicidade, que virá a partir de diversos fatores. Queremos ser bem-sucedidos, ou seja, atestar que conseguimos suprir faltas: relacionamentos, estabilidade profissional, conta bancária, saúde, autoimagem… uma lista composta por um sem-número de fatores.

A base de diversas filosofias orientais é uma máxima: a insaciedade é a porta para que adentremos o sofrimento. Uma vez dentro da casa vermelha, o exercício de percorrêla se transforma num martírio. Surge sempre um novo aspecto a ser explorado. Ela é sedutora demais para ser abandonada. O mundo nos diz que é nela que reside a felicidade. Demoramos, inclusive, a perceber o dano que ela nos gera, até que nos decidamos por abandoná-la. Mas, mesmo de fora, ela permanece convidativa, provocante. Impossível encará-la sem que afetos sejam mobilizados.

A falta de algo, ou a incapacidade circunstancial para adquiri-lo, desperta em nós um sentimento distorcido de impotência. Mas, afinal, a impotência é o antônimo de potência ou de prepotência? Seríamos mesmo capazes de conquistar tudo que está na casa dos desejos? Um dos desafios da existência é aprender a distinguir a necessidade da vontade e do desejo. Ou seja, separar aquilo que é verdadeiramente imprescindível para que prossigamos. E elencar as motivações que nos fazem buscar isto ou aquilo. Em geral, a aura de realização que cremos encontrar naquilo que buscamos não se encerra em si: queremos um bom emprego para suplementar um déficit relacional, cremos que um bom casamento repararia as feridas da família de origem, um corpo atraente para disfarçar a baixa autoestima… Ou seja, o desejo deturpa as necessidades reais – age nocivamente, como paliativos que levam a crer que a doença foi curada.

Em suma, verdadeiramente necessitamos de muito pouco para viver – isto é, quando comparado com tudo aquilo que supomos ser primordial, mas que, após cinco minutos de observação mais apurada, percebemos que pode esperar. Sim, na maioria das vezes, adiamos os desejos, como quem não quer ficar órfão deles. Tolice. Desejos são tão profusos como a nossa vontade de sobreviver.

A depressão, apontada como doença do século, pode ser classificada como uma patologia do desejo: da ausência dele, para ser mais preciso. Parece incongruente num primeiro olhar. A questão é que a ausência de desejo não é sinônimo de saciedade. A depressão vem como um vazio, uma dissociação do sentido existencial. Nesse quadro, o desejo se faz necessário como instrumento de cura. Mas não os desejos vazios, que nada traduziam da alma – afinal, é geralmente isso que desperta a doença.

A “boa falta” é aquela que nos leva a compreender que lidamos com um cronômetro em contagem regressiva, escondido na casa escura da incerteza – nunca sabemos quanto tempo nos resta, mas não conseguimos ignorar que ele continua gotejando a vida que se esvai. Para alguns, tal imagem nutre apenas uma angústia. Em outros, propicia o resultado: querem buscar um legado, uma afirmação do que foram enquanto indivíduos, únicos, exclusivos. Geralmente, esses últimos têm como resultado a dita felicidade. Não aquela lida nos parâmetros estatísticos, e sim a que se mede a partir da realização pessoal. Esse é o desejo bem-vindo, que gera bons frutos.

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Jornal Santuário: Você tem fome de que?

O Jornal Santuário de Aparecida me convidou para elaborar um artigo sobre compulsões alimentares. Está publicado na edição deste mês.

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Você tem fome de que?

Todo sintoma que se manifesta no corpo simboliza algo que a alma reclama. Ou seja, não há mal físico que não tenha sido originado na  psique. Quando se observa algum distúrbio alimentar, essa relação fica ainda mais evidente: a silhueta se transforma para apontar algo que está em desacordo.

Na compulsão alimentar, costuma-se fazer associações simbólicas com o “apetite” desmedido que ali se apresenta. Os versos dos Titãs podem nos ajudar nessa hora. Você tem sede de quê? Você tem fome de quê? Quais são as carências que esse corpo manifesta? Ou seria uma busca por sabores que gratifiquem a vida? A gente não quer só comer, a gente quer prazer pra aliviar a dor.  Qual vazio está sendo compensado durante o comer? De qual problema se quer escapar? A gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte.

Em geral, comedores compulsivos preferem alimentos de baixo valor nutricional, ricos em sabor, calorias e gorduras. Substâncias essas que deleitam o paladar e desencadeiam uma sensação de entorpecimento, mas que, como consequência, atraem para si o sobrepeso. O acúmulo de gordura, escudo natural contra as adversidades em eras primitivas, ganha na contemporaneidade uma nova configuração: é causa de menosprezo e rechaço. “Quem se ama não faz isso consigo mesmo”, diz o julgamento de muitos, impiedoso e indiferenciado.

Já vi pessoas que comiam compulsivamente pela falta ou excesso de vaidade; para se sentir forte ou na fantasia de se fortalecer contra um problema que acusa sua impotência. Em todos, percebi um traço comum: a dificuldade de enfrentar adversidades. O grande desafio no tratamento é o de ir além da patologia. Como ensina Jung, temos de enxergar o doente que está por trás da doença: um ser único, individualizado, com uma história que desembocou naquele momento, em que ele admite o problema e decide buscar ajuda.

 

Jornal Santuário: Vigorexia afeta saúde e é vilã nas academias

Fui convidado pelo Jornal Santuário, de São Paulo, para colaborar com uma reportagem sobre vigorexia – a prática compulsiva de exercícios físicos em nome de um corpo musculoso. O papo rendeu e eles publicaram uma parte da entrevista que concedi.

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Vigorexia afeta saúde e é vilã nas academias

Leonardo Meira

Levantar cargas pesadas, passar horas a fio na academia e olhar-se no espelho a toda a hora não é garantia de bem-estar físico e mental. Na verdade, esse quadro pode indicar uma situação exatamente oposta, especialmente entre os homens. Quando o tempo dedicado à musculação passa da conta, é bom abrir o olho: é possível que a pessoa esteja acometida por um transtorno conhecido como vigorexia.

Em resumo, é quando a pessoa, por mais massa muscular e força que possua, sempre pensa que continua magra e fraca. “Além disso, faz exercícios exageradamente, muito além do volume e intensidade ideais, procura usar suplementos sem orientação e recorre até a anabolizantes para atingir o resultado esperado, que nunca vem segundo a sua expectativa”, indica o especialista em Treinamento de Força e Musculação, Carlos Henrique Fernandes dos Santos Júnior.

Aí entra também a questão do culto ao corpo e dos padrões estéticos tidos como “ideais”. “A busca pelo ‘corpo sarado’ ganha destaque, levando os jovens à busca incessante por esse padrão de beleza. Mas nem sempre o ‘corpo escultural’ é sinônimo de corpo saudável”, adverte o mestre em Promoção de Saúde e pesquisador na área de Fisiologia do Exercício, Daniel dos Santos.

Já a doutora em psicologia clínica Dirce de Sá Freire é enfática: “Nossa cultura lipofóbica tem muita dificuldade de conviver com as diferentes formas de se estar no mundo. A tendência é que todos queiram ser iguais em tudo, sobretudo na força e na beleza que se acredita estar presente nos músculos. Como sempre, o problema reside no excesso”.

A receita é simples: querer ficar mais forte e bonito não faz mal, mas pode se tornar um problema quando a preocupação com a saúde fica em segundo plano. O corpo com mais músculos e menos gordura é o que a sociedade atual considera “bonito” e “ideal”. Aí não é difícil entender o porquê de os jovens, que vivem imersos em expectativas de aceitação, não queiram ficar para trás de seus pares. “Isso gera uma busca pela mesma aceitação, independentemente de comprometerem a sua saúde, seguindo uma alimentação e rotina de exercícios físicos excessivas, sem orientação e acompanhamento profissional”, alerta o professor Carlos Fernandes.

A literatura científica sugere que a prática de exercícios seja em torno de 30 a 60 minutos diários. Na academia, o instrutor/professor deve sempre orientar em relação ao treino, principalmente quando perceber que o aluno está fazendo exercícios extras, ficando mais tempo do que o orientado e tendo um crescimento muscular muito rápido em um curto período de tempo. “Nesses casos, se a orientação não adiantar, um acompanhamento psicológico será fundamental para reverter o processo”, esclarece Carlos.

Perfeccionismo e apoio

Sempre que a meta é a perfeição em alguma área, é preciso atenção. De acordo com o psicanalista junguiano e especialista em Dependências, Abusos e Compulsões, João Rafael Torres, a sociedade contemporânea está bem focada na busca pela saúde perfeita, e isso pode ser a “desculpa ideal” para confundir a obsessão com a dedicação pertinente ao bem-estar.

“A estética tem forte apelo numa sociedade pobre em valores humanitários. Isso está aliado a um imediatismo que pode levar jovens a uma suplementação que propicie um resultado mais rápido. O corpo é instrumento de expressão simbólica; assim, os jovens podem querer aparentar uma ideia de força, maturidade e beleza. Compensam assim a insegurança que habita o interior: a massa muscular dura e forte compensa e dissimula a instabilidade, fraquezas, inconsistência diante da busca por um sentido maior à existência”, avalia.

Nesse contexto, a família, os amigos e outros círculos sociais próximos têm papel crucial em auxiliar no diagnóstico e tratamento. “Todos esses agentes devem ter atenção plena ao perceber que a preocupação com o corpo tomou proporções excessivas. Como medir? Basta analisar o quanto esse assunto domina o discurso, quantas outras atividades foram comprometidas pela dedicação aos exercícios. O mesmo vale para a alimentação”, sublinha João Rafael.

Como as cobranças sociais costumam estar na origem desses transtornos é muito importante que os pais acompanhem os filhos para poderem avaliar a qualidade e a quantidade de exercícios que eles fazem. Também é fundamental encaminhar a pessoa para um bom psicólogo que possa ajudá-lo a rever as questões relativas a uma eventual distorção da imagem corporal.

Entrevista

O psicanalista junguiano e especialista em Dependências, Abusos e Compulsões (DACs), João Rafael Torres, concede entrevista exclusiva ao Jornal Santuário de Aparecida. Ele fala sobre a problemática da vigorexia.

Jornal Santuário – Quais são os principais sintomas que permitem diferenciar a vigorexia de uma busca sadia pelo bem-estar?

João Rafael Torres – O comprometimento gerado pela prática dos exercícios físicos ou pela busca de uma forma perfeita. A vigorexia engloba-se na classe dos transtornos obsessivo-compulsivos e, a meu ver, fala não só da busca pela força física, mas principalmente por um corpo que ostente esse atributo. Ou seja, por uma perfeição, e sempre que a meta é a perfeição em alguma área, devemos ficar atentos.

No entanto, a sociedade contemporânea está bem focada na busca pela saúde (perfeita, talvez) e isso pode ser a “desculpa ideal” para confundir uma busca obsessiva com uma dedicação pertinente ao bem-estar. Outro transtorno ainda pouco comentado também se faz presente nesse pensamento: a ortorexia, a busca pelo “comer bem”, que restringe altamente a vida de algumas pessoas. Podem, inclusive, surgir como neuroses complementares.

JS – Especialmente entre os jovens, quais costumam ser as principais pressões que desembocam em transtornos como esses

João Rafael – Mais uma vez, falamos em perfeição. A estética tem forte apelo numa sociedade pobre em valores humanitários. Isso está aliado a um imediatismo que pode levar os jovens a uma suplementação (anabolizantes, alimentação performática, etc.) que propicie um resultado mais rápido. E aí reside o grande risco: além do comprometimento psíquico, que já é danoso por si, a saúde do corpo também é afetada.

O corpo é um instrumento de expressão simbólica. Assim, os jovens podem querer aparentar uma ideia de força, maturidade (crianças e adolescentes não têm músculos definidos) e beleza. Compensam, assim, a insegurança que lhes habita o interior: ao adquirir uma massa muscular dura e forte, compenso e dissimulo a minha instabilidade, minhas fraquezas, minha inconsistência diante da busca por um sentido maior à existência.

JS – Com relação ao diagnóstico e tratamento, de que forma a família, amigos e outros círculos sociais podem auxiliar no processo de reconhecimento do problema e busca de solução?

João Rafael – Todos esses agentes devem ter uma atenção plena ao perceber que a preocupação com o corpo tomou proporções excessivas na vida de um indivíduo. Como medir? Basta analisar o quanto esse assunto domina o discurso, quantas outras atividades e dinâmicas sociais foram comprometidas pela dedicação aos exercícios. O mesmo vale para a alimentação: dietas excessivamente rigorosas, que não permitem “folgas” ou que, quando burladas, geram uma culpa severa, são indicadores de um comprometimento patológico.

Quando falamos em processos de Dependência, Abuso e Compulsão (DAC) pensamos que, na maioria das vezes, o problema é retroalimentado e/ou compartilhado por quem cerca o indivíduo que apresenta a patologia. Muitas dessas relações são inconscientes, mas altamente comprometedoras. Por esse motivo, se achar necessário, uma recomendação é que os demais envolvidos (que se sintam afetados pelo problema) também busquem ajuda especializada. Caso contrário, a dedicação do agente ativo da patologia pode ser boicotada ou afrouxada pelos demais – dificultando a recuperação. Infelizmente, a intervenção sobre os processos neuróticos ou psicopatológicos só se dá quando o comprometimento gerado por eles excede a fantasia inicial de controle. Ou, pior, quando o corpo é penalizado com sintomas físicos mais severos.

JS – De que forma os padrões de beleza ditados pela sociedade refletem em alguém que tem predisposição a desenvolver posturas vigoréxicas?

João Rafael – Podemos pensar na vigorexia como uma patologia sociocultural, visto que a medida do corpo perfeito muda de acordo com os contextos históricos, de civilização, etc. Ou seja, a perfeição desejada é copiada a partir de parâmetros que são apontados como modelos. Moda dos seios grandes, coxas e glúteos hipertrofiados. Moda dos homens depilados com peitoral e musculatura abdominal definidos. A mídia, nesse aspecto, é massacrante.

A televisão e as revistas valorizam ao extremo os corpos sarados, e isso acaba sendo o referencial do que é o belo e o certo – sendo que, à exceção dos atletas, ninguém consegue um corpo escultural a partir das atividades corriqueiras. No entanto, todos creem ter o potencial para adquirir esse corpo, custe o que custar. É importante perceber que o corpo dissolve qualquer tipo de critério socioeconômico. Assim, a suburbana sarada pode equiparar-se (ou até mesmo ultrapassar) a bem-nascida da zona sul. O jovem da periferia pode ganhar notoriedade ao mostrar uma barriga trincada e bíceps desenhados. E como muitas celebridades ascendem a esse posto somente por atender a esses critérios, todos (da classe A a E) veem na estética corporal a chance de notoriedade, de aceitação e promoção. Perdem, no entanto, a oportunidade de nutrir outros valores, que farão falta com o passar dos anos, quando o corpo não responder à altura a tais expectativas.

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