Self

Psique: Sem autoconhecimento, corremos o risco de casarmos com nossos pais

crédito: Metrópoles/iStock

“Você está agindo igualzinho à sua mãe!” “Não espere que eu faça como seu pai!” Atire a primeira pedra quem nunca disse, ou ouviu, comentário semelhante numa discussão com o ser amado.

Em diversos momentos, as relações conjugais replicam ou repercutem os modelos relacionais experimentados na família de origem com os pais. Evidenciam, igualmente, os conflitos que os atravessavam. Os enfrentados e, em especial, os que por eles foram postergados.

Nossos pais (ou quem assumiu a função parental na nossa infância) servirão como nossa primeira referência quando o assunto é a relação com o outro. Mesmo sem ter consciência disso, eles nos ensinam formas de estruturarmos nossos vínculos. Até que nos surjam novas referências, esta predominará no nosso contato com o outro.

O problema é que buscar novas referências nos exige muito. A começar, uma desconstrução e nova assimilação das imagens de pai e mãe que carregamos internamente. Seja porque é difícil admitir que nossos heróis eram falhos, seja por não querermos sair da voz de condenação da educação que recebemos.

Quanto mais inconscientes estivermos do nosso processo de desenvolvimento pessoal, do autoconhecimento, maior a chance de casarmos com nossos pais. Buscaremos, nas relações que empreendermos, preencher cada silêncio, cada interrogação, cada negativa.

Podemos nos identificar com um deles e reproduzimos seu comportamento fielmente – buscando parcerias complementares, que atendam perfeitamente o script que herdamos. E copiamos tão bem o modelo apreendido que repetimos as mesmas frases, as mesmas reações, os mesmos medos, as mesmas doenças…

Podemos ainda buscar alguém que complemente a nossa infância. Um pai ou mãe complementar, que reproduza o comportamento daqueles que tivemos ou que os repare. Ou seja, procuramos os pais que não tivemos, que possam “acabar o serviço” que ficou para trás. Missão impossível.

A ampliação da consciência nos dá uma espécie de emancipação psíquica. Não é “matar os pais” internamente, e sim aprender a aceitá-los como são e diferenciar-se deles psiquicamente. Sem essa diferenciação, viveremos os conteúdos do inconsciente familiar como destino, como ensina Jung.

Apesar de difícil, esse processo é gratificante. Especialmente por ser capaz de interromper verdadeiras maldições familiares, transmitidas geração após geração. Ao tomarmos certa distância, conseguimos compreender que certas sinas só se cumprem porque ninguém teve a audácia de questioná-las.

Psique: A maldição familiar dos pais que invejam os filhos

Crédito: Metrópoles/iStock

familia-inveja

Desde que Darwin defendeu a teoria da evolução das espécies, sabemos que os filhos tendem a ser melhores que seus pais. É instintivo, vai além de um simples desejo. No fundo, todo pai e toda mãe minimamente amorosos anseiam por esse mesmo ideal. Querem que seus descendentes cheguem aonde não conseguiram chegar, conquistem o que não conseguiram alcançar.

Mas, ao olharmos de perto, muitas vezes nos deparamos com histórias que contradizem esse argumento. As distorções são das mais variadas. Casos de pais que não aceitam filhos que vão além daquilo que são. Ou de filhos que se constrangem e boicotam chances de desenvolvimento. Enredos distorcidos, mas não incomuns.

Na verdade, são exemplos mais corriqueiros do que podemos imaginar. A família de origem é uma das instâncias mais importantes na constituição de um indivíduo. É ela que nos apresenta ao mundo e oferece as primeiras referências de quem somos. Ensinam sobre direitos, deveres, merecimento, responsabilidade, gratificação  e outro sem-números de lições que moldam a forma de como nos enxergamos e nos portamos no mundo.

Quanto mais distanciados estivermos da nossa natureza mais profunda, mais determinante será essa influência familiar: viveremos quase que para cumprir um script familiar preconcebido, que nem sempre (ou quase nunca) corresponde aos anseios da nossa alma.

Pais invejosos

Costuma ser na adolescência que o jovem ser começa a desconstruir os mitos familiares. Percebe que pode ser diferente e, muitas vezes, impõe-se para sê-lo. Faz despontar talentos, possibilidades até então não concebidas dentro de casa. Encontra-se num mundo maior, bem maior, do que aquele que lhe foi pintado.

É claro que isso pode incomodar os demais. Especialmente aqueles que se sentem frustrados, os que não se viram capazes de lutar por aquilo que gostariam de ser, que não escolheram bandeiras para levantar. Esses responderão com o limite autoritário, restritivo ao novo. Famílias são instituições assimétricas, e nesse caso os mais novos, que mais dependem, levam desvantagem.

O nome disso é inveja: se não pude ou não posso ter, você também não terá. Quase sempre, o corte não é feito de forma explícita. Adota-se a covardia da dissimulação, da manipulação emocional, da chantagem. E, pior ainda: da aniquilação da autonomia. Coloca-se o filho num lugar do incapaz, em vez de encorajá-lo aos desafios que a vida propõe.

Não é só mesquinho, é desumano. Anos depois, esses mesmo filhos serão adultos despreparados para viver, que sucumbem nos tropeços em vez de aprender com eles. Ou que lutam destemidos somente para provar a esses pais que são dignos de valor, de serem amados. É triste, limitante. Se existem maldições familiares, essa é uma das mais terríveis.

Filhos insatisfeitos

Sofrer esse tipo de desautorização para viver deixa marcas difíceis de serem reparadas. Além dessa busca massacrante pela perfeição, na tentativa de serem aceitos, os filhos podem se perceber eternamente insatisfeitos. Afinal, a ferida que tentam reparar não será sanada por cargos, salários, diplomas, aparências. Falta de amor e atenção só se cura com amor e atenção.

Talvez por isso, sintam uma enorme dificuldade de reconhecerem as próprias conquistas. Não se sentem adequados nas novas roupas: soam destoantes demais quando comparadas com as que foram vestidos pelos pais. O bom passa a se tornar duvidoso, supérfluo, embaraçoso.

No fundo, temem abandonar e serem abandonados, na medida em que deixam para trás as velhas expectativas parentais. Sentem-se culpados, pois queriam que todos pudessem evoluir juntos – mas nem sempre se perguntam se os demais querem e estão dispostos a crescer.

Nesse dilema, retirar-se e recolher os próprios talentos soa muito injusto. Até porque não será isso que sanará o olhar ressentido de quem não se realizou. Manter esse mecanismo de não sermos quem somos não afasta de nenhuma família essa maldição, e sim a perpetua. Às vezes, é o exemplo da nossa realização que alavanca e incentiva o crescimento do outro.

Psique: Somente uma reforma nos valores é capaz de fazer um mundo melhor

Crédito: Metrópoles/iStock

Top view of white paper chain family on red shape heart. Family in love. Family care and unity concept.

Nós, analistas, somos acusados de inquisidores da família. Talvez porque, vez por outra, soltemos o jargão: “não está na hora de matar o pai, matar a mãe?” Força do hábito, às vezes um hábito perigoso. Esse é um texto de retratação, ou quase.

Afinal, é na nossa família de origem que alcançamos os nossos primeiros tesouros. Os afetos, as crenças, os valores: a herança que ficará conosco – até que, de posse de algo melhor e autoral, eu possa abdicar dela. Mas não há de se descartar tudo, definitivamente.

É no seio familiar que acessamos nossos primeiros provérbios, os primeiros ditados. Lá temos o primeiro contato com a sabedoria popular. Ela nos ensina, a partir de metáforas de fácil compreensão, as prerrogativas que conduzirão nossas escolhas. A partir delas, compreendemos acontecidos, moldamos relações, tomamos decisões.

Experiências repetidas
Um valor se origina, basicamente, da experiência. Ou seja, da associação de um atributo a algo vivenciado. Nossa família nos transmite valores mesmo que não o faça de forma consciente. Os mais firmes vêm a partir do que testemunhamos. Com eles, aprendo a ser um ser humano digno, respeitoso, ético. “Quem sabe provérbios não pode ser de todo mal”, como dito em “O fabuloso destino de Amélie Poulain”.

O exemplo vale mais que palavras, certamente. Mas é a partir delas que eu conjugo o fato, elaboro uma sentença a partir dele. Isso me ajudará a balizar a vida, torná-la menos problemática. Os dizeres populares nasceram com essa função: aprender estratégias com nossos antepassados para evitar erros, sofrimento e dor.

É claro que há provérbios contraditórios entre si. E que a escolha por um, ou por outro, será definida por uma série de fatores psíquicos, das crenças que envolvem os indivíduos que os repetem. O valor é subjetivo, contempla a partir do contexto e da necessidade de cada um. O que falamos aponta para aquilo que nos é importante.

Para um mundo melhor
Nossos valores são sementes para a nossa ética. Ela vai além do moralismo, das regras às quais estamos submetidos por mera convenção social. Brota de dentro, será constituída a partir da conciliação daquilo que acreditamos, com nosso temperamento e nosso caráter. É a soma do crer, sentir e agir, determinará a forma como me situo no mundo. Aquilo que valoro é a amálgama que unifica esses fatores e determina quem eu sou diante do outro.

Por esse motivo, a edificação dos valores de um ser humano é algo tão importante, e tão sensível no mundo contemporâneo. Se vivemos num mundo cheio de equívocos sociais, com baixa capacidade de empatia, inversamente proporcional à intolerância, e isso é fruto da debilidade de valores.

A formação de um cidadão ético vai além de dinheiro e oportunidades – ela carece de bons exemplos, boas frases, de reverência aos que o antecederam. Faltam provérbios, sobram acusações. Falta visão do coletivo, transborda o egoísmo – comportamentos típicos de valores falhos.

Para quem se preocupa com a ética, a revisão dos valores é um exercício de praxe. Busco me manter na linha. Mas, se eu exagerar, lembrem-me que tenho limites. Se eu negligenciar, lembrem-me que tenho compromissos. Se me distanciar dos sentimentos, lembrem-me que é com eles que me nutro. Lembrem-me quem sou. E se eu insistir em negar meus valores, estarão todos autorizados a esquecerem-se de mim.

Psique: A culpa é da mãe e do pai. Mas a responsabilidade de viver bem é sua

Crédito: Metrópoles/iStock

Funny family feet under the blanket

Já tive clientes que desistiram do processo da análise quando começaram a questionar figuras, até então, maravilhosas. Não queriam apagar a imagem heroica, cuidadosamente lapidada, que atribuíam aos pais. Sentiam-se culpados, pecadores. Também atendi pessoas que estavam no extremo oposto: lastimaram, por anos a fio, a família à qual pertencem. Atribuíam todo o insucesso que viviam àquilo que receberam em casa.

Com ambos os casos, agi como advogado do diabo. Ou seja, como analista, tomo partido de quem é acusado. E assim ajudei a destronar mães e pais perfeitos – e mostrar o quão são humanamente falhos, e, até mesmo, fieis contribuintes para as queixas dos meus clientes.

Em outros casos, pude mostrar como as queixas depositadas sobre pais soavam como uma autoindulgência rasteira, uma forma de transferir responsabilidades como estratégia infantil de evitar o compromisso com a vida.

O meu lugar em casa
De fato, as relações parentais têm grande influência na definição daquilo que somos. Aos que não nutrem a reflexão, será determinante: tenderemos a agir em correspondência direta aos scripts ditados pela família. A vida será apenas uma tentativa de atender os papeis e expectativas que nos são projetados, ou então de fugir dessas atribuições.

A companhia dos pais não cessará nem mesmo após a morte dos mesmos. O olhar repressor, a queixa manipuladora, as medidas de boas maneiras, o adjetivo incapacitante… Quem está sob esse enfado nunca está só: é como se, a cada passo, estivesse em constante avaliação dessas imagens parentais. Dita quem devemos ser, o caráter que devemos assumir, quais frustrações devemos reparar. É uma verdadeira maldição.

É libertador entender que nem toda herança que nos é oferecida precisa ser validada. Os pais tendem a transferir aos filhos aquilo que gostariam de ter vivido, mas não puderam. É uma pena, mas não somos os responsáveis pelas escolhas que fizeram, nem pelas circunstâncias que tiveram de enfrentar. A eles, uma constatação: a vida é limitada – e essa lei estava escrita antes mesmo do nascimento dos nossos ancestrais mais remotos. Conformemo-nos com isso.

Desenvolva-se
Cada ser humano tem pleno direito à individualidade. Isso significa que a ele é conferida a chance de desfrutar daquilo que é em sua essência. Seja isso semelhante ou contraditório ao que foi esperado pelos seus pais. Nem sempre isso é possível, justamente porque nenhum escravo é capaz de servir a dois senhores. Nesse caso, privilegie a alma – a sua, não a deles.

Desenvolver a consciência tem como pressuposto aprender a diferenciar-se do meio no qual está inserido. Em geral, a família é o ponto de partida. Não para transformar esse exercício em um muro das lamentações – acho improdutivo e enfadonho. Mas para que possamos perceber que a influência que nos foi transferida deverá ser encarada como uma referência. E que posso angariar outras referências ao longo da vida. Muitas vezes, até bem mais saudáveis que as originais.

Assim sendo, não precisamos encontrar justificativas e culpados para nossas angústias e limitações. Nossos pais são, e foram, somente aquilo que conseguiram ser.Assim como nós, diante da vida e dos nossos filhos. Amadurecer depende de uma postura reverente à nossa origem, mas assumida com desprendimento. Se permanecermos ancorados ali, jamais conseguiremos seguir em frente, traçar nosso próprio caminho.

nivas gallo