Self

Psique: Às vezes é necessário dar um tempo das coisas. Experimentei isso agora

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traveler woman just arrived to destination with her suitcase

Às vezes é necessário dar um tempo das coisas. Experimentei isso agora, depois de passar 20 dias de férias, isolado de tudo. Um tempo do celular, das conversas vãs, dos estímulos vazios do mundo. Um tempo do que e de quem amamos. E também das chateações cotidianas.

Nesse período, pude reciclar o significado do silêncio – logo eu, sempre tão inundado por palavras, faladas e escritas. Percebi que as coisas mais bonitas, o que verdadeiramente vale a pena, resguarda-se no que não pode ser dito. Somos pobres em expressão, por isso queremos tanto falar.

Dar um tempo das atitudes também foi muito simbólico. Entender o ritmo das coisas, o quanto estamos despreparados para agir naturalmente. Trocamos o relógio da vida pelos critérios sociais. Origem, essência, interior: significados que o mundo trata de embaralhar sob o argumento do progresso.

Ir dormir quando o corpo pede. Ouvi-lo também para saber a hora de despertar. Entender que não fazer nada não é perda de tempo. Concentrar-se nas atividades disponíveis, por mais banais que possam parecer ser. Estar presente, aqui e agora.

Fazer do que parece simplório um ato grandioso. Alimentar-se com reverência ao que come, a quem prepara o alimento. Aceitar o que está no prato. Descobrir novos sabores, desacostumar-se de outros. Encontrar o gosto da água, o valor do sal.

Pensar menos. Esquecer-se de pensar, de avaliar, de interpretar. Difícil pra caramba, especialmente para quem vive disso, como eu. No começo, sentimos um estranhamento, como se todo o intelecto cultivado fosse se esvair. Depois, torcemos para que o excesso escoe.
E, quando tudo parece calar dentro de si, o olhar se transforma. Deixa de buscar respostas em tudo que vê e simplesmente entende que as coisas são o que são – e que esse é o correto. Perdemos o impulso besta de achar que devemos transformar o outro no que idealizamos. Rimos, até, das nossas idealizações.
Não precisei ir ao Nepal, ou fazer caminhadas intermináveis seguindo gurus, para viver tudo isso. No fundo, esse foi o grande ganho: perceber que essa conquista não passa de um estado de espírito, independente das circunstâncias.

Não voltei iluminado, não me considero uma pessoa melhor ou superior. Minha experiência serve somente a mim – e nunca isso fez tanto sentido. Mas parece que estou mais conciliado com o tempo das coisas – mais distante do passado, menos ansioso pelo futuro. Ao menos por enquanto.

Psique: Tudo que não encontramos na família projetamos na figura de Deus

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deus totalidade

Na semana passada, fiz um paralelo sobre as dinâmicas psíquicas e a imagem de Deus desenvolvida pela humanidade ao longo da história. No entanto, ficou de fora a questão funcional da divindade. Afinal, o que esperamos de Deus? E o que podemos esperar?

Ninguém teve os pais que desejou. Eles sempre poderiam ser mais alguma coisa, menos outra coisa. Da mesma forma, as circunstâncias de nossa vida também nos geram uma série de queixas. Assim como as relações que estabelecemos com o mundo.

Tudo isso é resultado da nossa natureza inconstante. Até quando alcançamos nossos desejos, a satisfação do ego se manifesta de forma fugaz, extingue-se em segundos. Logo, ele estará novamente à espera de algo melhor, idealizando felicidades.

Para isso, a imagem que projetamos de Deus se transforma num agente muito útil. Tanto para justificar nossos insucessos, como para que nos mantivemos num papel passivo diante de nosso desconforto. Queremos a salvação divina, sermos filhos prediletos a quem estão reservadas as melhores dádivas.

Assumimos, diante dessa imagem de totalidade, uma postura mesquinha, de eterna barganha ou lamentação. Isso quando não nos iramos pela injustiça com a qual a divindade nos trata – como se pudéssemos subestimar o arquétipo da inteligência e sabedoria. Somos crianças bobas.

E, assim como criamos deuses para atender esse propósito, também criamos e empoderamos seus opositores: personagens malignos, do insucesso e da destruição, que muitas vezes validam nossa própria maledicência. Transferimos a eles, deuses e demônios, o arbítrio de quem fomos, somos e seremos. Bem conveniente.

Cada vez que assim fazemos, perdemos a mais rica função da imagem divina: a da complementaridade. Tudo aquilo que não encontramos nos papeis e personagens que cruzaram nossa vida podem ser projetados, positivamente, na figura de Deus.
Ela pode ocupar o lugar da boa mãe, que cuida, acalenta e nutre. Também pode ser o bom pai, que limita, orienta e incentiva. Pode ser o juiz que defende e restitui aquilo que nos foi tomado, e até castiga quando nosso erro precisa ter fim. O médico que repara nossas feridas, do corpo e da alma. O filho que nos ensina a cuidar.

No Deus também cabe a segurança quando nos sentimos vulneráveis, desamparados, à mercê. A esperança para a oportunidade que não recebemos. A providência diante das nossas necessidades. A resignação para o que não conseguimos solucionar. A alegria que sustenta na adversidade.

Nesse somatório, Deus ocupa uma função curativa indispensável ao desenvolvimento psíquico. Não é à toa que a imagem divina transcende o tempo e o espaço, manifestando-se na humanidade desde os primórdios, sem ser superado. É a origem da ética, que norteia o bem viver e a boa relação com o outro.

Deus é o recurso natural que o homem encontrou para sanar nosso mal-estar existencial: a insuficiência humana, a consciência de sermos incompletos, falhos e limitados. Ele cumpre tal tarefa desde quando o criamos – ou o percebemos.

Psique: Deus participa efetiva e intimamente da vida psíquica da sociedade

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Open Bible on a wood table with light coming from above. ( church concept ).

Um dia desses, fui questionado por um leitor sobre citações sobre Deus que faço em meus textos. Alegaram que isso poderia diminuir a credibilidade dos escritos. Como se Deus não participasse efetiva e intimamente da vida psíquica.

Jung foi um profundo conhecedor das religiões, ocidentais e orientais, por compreender que nelas está a espinha dorsal das culturas e civilizações. Ao observá-las, percebeu um fator comum: a representação de um ser que centraliza e unifica todos os acontecimentos.

Da mesma forma, percebeu que existe um princípio de autorregulação da psique, que tende à unidade, à compensação e à harmonia – veja a semelhança: atributos semelhantes aos da divindade.

Jung chamou esse princípio de Self – ao mesmo tempo, o centro e a totalidade psíquica. É ele quem guarda o sentido maior da existência de cada ser e busca estratégias para realiza-lo.

Assim, é como se em cada um de nós habitasse um deus – ou uma centelha divina, como defendem praticamente todas as religiões. Ele vai para além das determinações do ego. Ou seja, daquilo que conseguimos perceber, identificar, nomear e interpretar nos nossos processos internos ou externos.

Assim como ocorre nos mitos divinos, essa relação entre ego e Self acaba sendo sempre conturbada. Nem sempre o eu é capaz de compreender e submeter-se àquilo que a psique pede. Teimamos e, assim como um deus que não é cultuado, o Self se impõe. Ele tem um propósito para a existência e não medirá esforços para alcançá-lo.

Sintomas, boicotes e perdas – coisas que frustram muito a eterna expectativa de sucesso do ego – aparecem como estratégias psíquicas para a realização desse propósito maior. São correções de curso, para conter a prepotência e tirania egoica. Quando investigamos, percebemos que eles nunca estão descontextualizados, desprovidos de um significado maior.

O Self não age de forma impiedosa. É justamente o contrário: assim como as punições divinas, também se dão por misericórdia – para que o ego do sujeito possa compreender as próprias limitações e estar disponível a algo maior. E, assim, transcenda à vaidade e revele um legado, a contribuição que cada um de nós tem com o mundo.
Da mesma forma, a consonância entre ego e Self pode se revelar da forma mais benevolente e aprazível. Alertas contra ciladas, acesso a conteúdos profundos e pacificadores, atração de pessoas e oportunidades que facilitam nossa vida. A vida flui. Em troca, o Self pede aquilo que qualquer deus exige de seus fieis: fidelidade e a reverência do pequeno diante do imenso.

É isso que Jung atesta na abertura de sua autobiografia, quando diz “minha vida é a história de um inconsciente que se realizou”. Foi também no fim da vida que, quando questionado se acreditava em Deus, ele respondeu “eu não preciso acreditar, eu sei.” Jung não foi quem gostaria, ele foi quem deveria ser. E esse é o nosso desafio a cada dia.

Psique: Suas verdades servem apenas a você. E por enquanto

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Various human emotions and mood. Abstract image with a wooden puppet

Cada ser humano dotado de consciência tem um repertório de verdades. Uns, se contentam com aquelas mais limitadas e restritivas. Outros, mais abertos a novas perspectivas (felizes desses, e de quem com eles convive). Só não conseguimos viver sem ter no que acreditar.

O mundo é um caos: um bombardeio de ideias, imagens, acontecimentos e emoções. No meio dessa história, um negócio chamado consciência: a percepção do que acontece em si e no seu entorno. É o nosso barco, aquilo que nos transmite uma certa segurança para que não fiquemos à deriva em meio a este oceano turbulento.

Sendo essas águas quase sempre muito agitadas, buscamos locais nos quais podemos ancorar nosso barquinho. As verdades servem para isso: elas nos dão a impressão de segurança diante dessa imensidão incontrolável. São ilusões necessárias, que buscamos simplesmente para não naufragar na imensidão.

A cartilha que nos define a realidade começa a ser escrita antes mesmo de nosso nascimento: ao descobrir a concepção, uma série de conceitos começa a orbitar em torno do ser que desponta. Desejado ou um susto, primeiro ou caçula, menino ou menina, gestação tranquila ou repouso. Tudo isso gera suposições sobre nosso futuro, e sobre o que acreditaremos.

Obviamente, e graças a Deus, a alma tem a chance de manifestar-se além dessas expectativas projetadas. Aos poucos, despontam nossos talentos, temperamento. Abrimo-nos a outras influências, criamos outras referências…

E, aos poucos, rasuramos algumas dessas verdades para substitui-las por outras, mais pertinentes ou oportunas. Ou seja, a eficácia de nossas crenças é transitória. Serve enquanto nos oferece o esteio, a segurança. Verdades vencidas viram conflitos.
Deveríamos substituir nossas crenças sempre que perdem função. Mas não é tão simples. Mantemos com elas uma estranha fidelidade. Uns garantem que por gratidão. Do que percebo, muito mais pelo medo do desconhecido.

Afinal, enquanto navegamos entre um porto e outro, estamos suscetíveis às intempéries do mar das coisas do mundo. Monstros marinhos podem emergir e testar nossa capacidade de enfrentá-los. Podemos ser tomados pela incerteza de quem somos, do sentido das coisas.

Esse pesadelo terrível faz com que muitos se apeguem às velhas pedras do cais, sem ver que já estão desgastadas pelo uso. Não percebem também que a incoerência enferrujou as correntes que usam para se fixarem.

Desacreditar é um exercício de crescimento. Por melhor que seja, a segurança de uma verdade restringe as demais possibilidades. Basta lembrar que os grandes tesouros não repousam nas margens, e sim no profundo das águas.

Psique: Se nos afetamos pela história do outro, essa história é mais nossa que dele

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Hands were a collaboration concept of teamwork

Tenho um problema, que cada vez mais tento combater: tomo para mim as brigas de quem amo. Descobri que isso é um problema aos poucos ao buscar refletir mais sobre os acontecimentos e a forma como reajo. Não que meus amigos não mereçam minha defesa. Talvez eles simplesmente não queiram, possam ou precisem.

E isso pode parecer frustrante, quando se tem essa postura de quem quer cuidar. Afinal, é o atestado de incompetência, de ingerência diante da vida do outro.

Mas, tenho aprendido, a justa medida está no esperar que a demanda venha. E saber atender apenas aquilo que, de fato, temos condição. Com simplicidade, sem grandes interpretações ou desdobramentos. Confiar que somente o outro sabe pedir o que quer.

Comecei a tomar consciência disso quando vi dois amigos passarem por situações que me afetaram muito. Um dos casos foi uma relação daquelas manipulações perversas, motivadas pela conveniência de um e pelo desejo do outro de relacionar-se. Eu ficava irado a cada nova história que sabia.

A outra situação era daquelas que chamo de “apropriação indevida de valores alheios”. Gente que se sente no direito de dispor daquilo que não é seu, como se fosse, abusando da boa vontade alheia. Sentia-me no dever de “alertar” a vítima, que sempre se comportava de forma permissiva.

Percebi que os problemas que eu avistava e que me incomodavam tanto faziam mais parte de mim que das pessoas em questão. Eles conviviam bem com tudo isso, gratificavam-se com aquilo que lhes era oferecido. Errado estava eu, em querer cobrar-lhes uma atitude à qual não estavam disponíveis.

O erro que cometi (e, às vezes, ainda cometo) é bastante comum. Difícil é nos darmos conta das razões que o motivam. Sempre que eu me afeto demais com uma história que não é minha, é porque ela reflete algo das minhas feridas. Daí partem as grandes causas que mobilizam a coletividade. Mas também muitos dissabores desnecessários do cotidiano.

Quando a dor do outro dói demais em mim, preciso entender o quanto isso espelha o meu comportamento (seja por similaridade ou oposição). Escondemo-nos no argumento da empatia, sem perceber que este nobre sentimento não costuma vir acompanhado por toda essa afetação.

Ao sermos tomados de forma muito enfática por uma temática alheia, o recomendado é desarmarmo-nos e adiar qualquer ação ou comentário – sob o risco da injustiça. Buscar dentro de si aquilo que corresponde ao mal-estar alheio. Saber do que queremos cuidar e do que carece de cuidado em nós.
Assim, temos mais chance de atravessar o caminho do outro sem excessos, em vez de usá-los para expurgar nossas próprias mazelas. Nesses casos, a adequação não vem apenas da forma, mas principalmente da medida.

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