Self

Psique: Já caçamos pokémons há muito tempo. Eles nos distraem de nós mesmos

realidade aumentada

Foi um tanto impactante ver, no último domingo, um conglomerado de pessoas nas beiradas do parque Ana Lídia. Não imaginava que esse negócio de Pokémon fosse realmente capaz de produzir aquela cena. Milhares de pessoas, a maioria adulta, sem se enxergarem, tropeçando umas nas outras, vidradas numa tela de celular. Em troca de que? Nada.

Esse parágrafo de cima foi escrito pela demagogia. É claro que eu veria o que vi, cedo ou tarde. Até porque já é o que vemos. Essa história de “realidade aumentada” faz parte daquele “museu de grandes novidades”.

Sempre que podemos, damos nosso jeito para acrescentar no que vemos algo que nos distraia, que nos afaste do que nos angustia – em geral, de nós mesmos. O jogo é só um argumento tecnológico para alimentar esse mecanismo. Já somos craques nesse esporte de inventar, e acreditar no que inventamos.

Black mirror
O mundo pela tela do celular é um campo limitado, repleto de informações filtradas e agradáveis. Inserir neste campo um Pokémon é só o começo. Em breve, hão de criar a melhor companhia: superamigos, ainda mais perfeitos do que as imagens que nos povoam as redes sociais, ou amores perfeitos, que nunca nos digam não. Smartpais também podem ter uma boa procura no mercado.

Uma boa pedida para que compreendamos o significado desse novo paradigma que se instala na humanidade é bem representado pela série Black mirror (na foto acima), disponível no Netflix. Vale a pena, mas assista cedo: é daquelas que fazem perder o sono. Fala da espetacularização das relações nas mídias sociais, da conexão entre realidade e mundo virtual, e outros temas afins.

Ou seja, de tudo aquilo que é provocado pelo nosso espelho negro (a tela do celular), do momento em que acordamos até a hora que o sono nos trai. (Inclusive, pesquisas mostram que o tempo de sono tem encurtado graças aos smartphones.) As situações retratadas gritam indagações que não nos fazemos. Em suma: qual é o limite?

Aos poucos, ficaremos cada vez mais enclausurados no campo virtual. E, proporcionalmente, fervilham no inconsciente as perguntas elementares. Para que tudo isso? Qual o sentido da existência? Ao que parece, essa inquietação não quer cessar. Essa tentativa de empurrar para baixo as angústias existenciais vão transformando-as em adoecimento – manifestos no corpo e na alma. É o movimento compensatório da psique.

Imaginar é preciso
A realidade aumentada não deveria ser mais interessante que os desafios que nos são imputados pela vida. Na verdade, são priorizados por serem bem mais simples. Pertencemos a uma safra tecnicamente muito bem qualificada, em busca da excelência, mas pouco capacitada para os mistérios profundos.

Ficamos maravilhados com a possibilidade de nos depararmos com um monstrinho na sala de casa ou na rua. Até no meu consultório já capturaram um troço desses. Curiosamente, quem o fez tem grandes dificuldades para olhar para os próprios sonhos, as produções espontâneas do inconsciente. Talvez por medo de, por lá, encontrar criaturas que não cabem numa bolinha. E de não saber o que fazer com elas.

Mas não adianta fazer um discurso nostálgico ou apocalíptico. Há Pokémons soltos pela cidade, essa é a nova realidade. Logo virão outros seres, cenários, uma nova dimensão. E a psique se adaptará, como se adaptou até agora. Talvez essa seja nova forma que encontramos para lidar com a imaginação, antes de enlouquecermos por completo.

Outras Ondas: Bem, obrigado

Para Daniela Luciana.

Tudo certo, tudo ótimo, tranquilo, sem problemas, nos conformes. Muitas vezes, essas são as respostas automatizadas que damos a quem se interessa por nós. Uns se sentirão aliviados – não virá a enxurrada de problemas. Outros inquirirão com o olhar, por desconfiança. Uma resposta positiva tão imediata não seria uma dissimulação das adversidades que atravessam a vida cotidiana?  Onde foram parar os grandes problemas a enfrentar? Como conceber uma existência sem grandes dramas? Estamos tão permeados pelos conceitos de “estresse”, “problema”, “crise” que o simples ato de viver bem parece se tornar um fator de alerta.

Se as redes sociais são o reduto de ostentação da felicidade e do prazer, é nos contatos pessoais que exploramos com mais vigor as nossas faltas e frustrações. O tempo está curto, o dinheiro também, estamos cercados por corruptos, a vida decepciona. Buscamos, no outro, um semelhante que corrobore nossas queixas. E, se não encontramos o espelho disposto a nos mimetizar as reclamações, tendemos a enxergá-lo como alguém frio, indiferente. Mas, de fato, a maior parte dos objetos de reclamação são grandes aliados, com quem escolhemos coabitar. Servem para validar a escolha por esse papel vitimário.

A felicidade muitas vezes é concebida como uma espécie de tesouro redentor, um estado que, uma vez alcançado, reverberará em nossa existência dando a ela cores nunca antes alcançadas. A questão é que esse é um tesouro perseguido às cegas, apontado em falsos enigmas e mapas. Quando consultados, todos sabem dar pitados para a direção onde encontrá-lo, mas quase sempre se veem distantes do que almejam.  Os bons momentos se constroem muito mais pela atenção que damos a eles do que por uma revelação mágica. A nostalgia do “era feliz e não sabia” faz muito sentido: não vivemos plenamente o que a vida nos oferece no agora, pois estamos desejando o futuro; quando perdemos os bens que nos cercam, vemos o quanto eles nos eram caros.

Não devemos confundir a felicidade com a ausência de problemas. Ela mais se aproxima de um estado de adequação, ou seja, de perceber-se ajustado diante da própria realidade. Dessa forma, ser feliz é mais entender que as nossas falhas, limitações e imperfeições nos caracterizam tanto quanto as virtudes que gostamos de cultivar – e ostentar. O que nos faz infelizes é o desejo torpe de querer ser o que não somos, ou ter o que não temos, enquanto perecem as potências que temos disponíveis. A vida bem realizada é aquela norteada por um sentido maior, um significado que valide a permanência no mundo. E isso não está necessariamente ligado ao acúmulo de ganhos materiais, relacionamentos, poder ou prazeres efêmeros.

Em alguns momentos de mais lucidez, percebemo-nos do tamanho certo que a vida deveria ter. E daí deriva o bem-estar. Ao alcançarmos esse estágio, a luta se intensifica: o mundo nos testa com falsas demandas, o olhar do outro nos reprova pela falta de ambições maiores. Agem como se sentissem traídos em seu projeto de valorizar mais o problema do que as delícias.  Somos tiranizados justamente por estarmos sendo o melhor do que poderíamos ser.

O exercício de resistência a se adotar pode parecer um movimento egoísta: manter-se íntegro e fiel àquilo que de fato traduz minha essência, e não me deixar subverter pelo que é imposto como o melhor. Às vezes, a melhor forma de evitar esse dissabor – em si e no outro – é manter uma distância cautelar daqueles que buscam nos contaminar. Estes o fazem por insuficiência de reger a própria vida. O doce demora horas no fogo para ficar pronto. Uma colher suja é capaz de azedar o tacho inteiro.

Outras Ondas* – O dom de iludir

A mente humana soa, em muitos momentos, como uma carroça sem freios numa ladeira. Basta que uma ideia inicial nos chegue à cabeça para que as rédeas se soltem das mãos. Prospectamos cenários, inventamos diálogos e reações possíveis, criamos toda uma situação propícia à fantasia. Buscamos, empenhados, soluções para problemas imaginários. Alegramo-nos com os resultados, ou nos frustramos quando as conclusões não são aquelas que a vontade inspira. Pensar torna-se uma atividade desgastante, quase exaustiva. Daí, num simples toque, a bolha estoura e percebemos que estamos no mesmo lugar do início da história, sendo a mesma pessoa. E aí, essa experiência pode ser classificada como perda de tempo e de energia?

A fantasia se processa como uma formulação espontânea de imagens, que podem se traduzir com uma autonomia variável – a depender do indivíduo e do momento em que ele se encontra. Imaginar é uma função inata à psique. Relaciona-se com a produção e assimilação de conhecimentos sobre o mundo exterior. Mas também serve para traduzir a dinâmica dos movimentos internos. Assim como os sonhos, mostram-se como manifestações diretas do inconsciente. A diferença é que, nos sonhos, a interferência diante das imagens que se apresentam é bem menor. A fantasia permite condução e interferências com muito mais plasticidade.

Os exercícios de imaginação são fortemente estimulados durante a infância. Transformamo-nos em heróis, princesas, profissionais das mais diversas ordens. No entanto, a vida adulta restringe essa função, em nome das ditas responsabilidades. Surge então uma urgência, cada vez mais crescente, de experimentar o mundo a partir de vivências concretas. Daí, acostumados a este padrão, corremos um grande risco de sucumbir à fantasia, quando ela nos chega.

Temos uma prova cabal disso na atualidade quando vemos o comportamento compulsivo que se estabelece entre os indivíduos e as redes sociais. Apesar de não assumirem capas mágicas e superpoderes, cada um cria um personagem mágico quando se vê diante de um computador. E não falo aqui dos papéis estereotipados de quando surgiram os primeiros chats, quando as pessoas inventavam perfis que, de tão ilusórios, despertavam a desconfiança até nos mais ingênuos. Agora, quando um avatar vale mais que mil palavras, o interessante é estigmatizar a si próprio com suas características mais peculiares: o bom humor, o sarcasmo, a ingenuidade, a militância…

Nesta semana, tivemos uma enxurrada de exemplos a partir dos personagens de desenhos animados que tomaram o Facebook. Cada um tentou remexer no baú das memórias infantis para encontrar o mais curioso, o mais comentável, o mais “curtível”. E o 12 de outubro soou, mais uma vez, como o pretexto ideal para viver a fantasia – como se ela fosse temível demais para ser praticada nos outros períodos do ano.

No entanto, o mais saudável seria viver a imaginação como quem pratica um exercício físico: regularmente e na medida certa, a fim de fortalecer o corpo psíquico e oferecer-lhe a maleabilidade necessária para enfrentar os desafios que lhe são impostos.

Uma fantasia negativa é tão desgastante como um problema enfrentado na vida real, e pode marcar a psique de forma igualmente marcante. Por esse motivo, é importante selecionar os motivos que vão compor nossos devaneios. Exercite a fantasia como uma prospecção das coisas boas que deseja ter na vida. É só lembrar que a mais genial das ideias surgiu de um pensamento aparentemente impossível de se concretizar. E tenha atenção plena quando a mente, com suas armadilhas, insistir em conduzir-lhe a imaginações destrutivas, pessimistas ou, simplesmente, vazias de significado.

Fantasiar é natural e produtivo, na medida em que se diversifica a forma de assimilação dos conteúdos que nos envolvem no mundo, além de promover a criatividade diante daquilo que não conseguimos solucionar com a lógica formal. Mas, para que seja uma prática saudável, a imaginação precisa se conciliar com os desafios da vida real. Dar voz à fantasia não é se autoenganar.

Outras Ondas* – Com que roupa eu vou?

O brasileiro tem na alegria uma das suas marcas diante do mundo. Grande parte desse estigma é resultado do carnaval. A festa é profana, mas tem intensa conotação religiosa: é o momento de cometer excessos, pois em seguida é preciso enfrentar a reclusão e o sacrifício, que antecedem a Páscoa. A felicidade se manifesta na expressão do corpo. É época de acumular os pecados que serão expurgados durante as privações da Quaresma.

Até mesmo quem não é cristão se aproveita, e muito, do carnaval. Cada um escolhe uma fantasia para poder expressar os conteúdos internos mais inconfessos. Nesse período, machão se traveste de mulher, franzino encarna gladiador, Sandy vira devassa. Preconceitos se rebaixam. Nos trajes, a criatividade expressa o que a alma inveja, ao menos por um dia.

O uso das fantasias remota à arte do teatro antigo. Nele, as vestes e as máscaras davam ao ator a potência especial da interpretação: em um instante, a personalidade dava espaço a um ente desconhecido, com voz e pensamentos próprios, capaz de surpreender os demais pela naturalidade e autenticidade dos gestos. No período clássico, tais máscaras eram denominadas com o termo latino “persona”.

Jung aproveitou o termo para designar o instrumento psíquico que usamos para confrontar o mundo. Ela não representa o que somos em essência, mas sim a forma como queremos ser vistos. Tem, assim, uma dupla função: de interação com os outros e, ao mesmo tempo, uma defesa desses mesmos outros. Podemos ter tantas personas quantos forem os papeis sociais que precisamos desempenhar: uma para a família, outra profissional, uma no contexto religioso, outra na reunião de condomínio… Uma pessoa com personalidade bem estruturada sabe encontrar a hora certa de usá-las, variá-las e substituí-las. Outros podem ter um apego demasiado a uma determinada persona. Cristaliza-se assim como um personagem predominante, uma espécie de caricatura de si mesmo.

O exercício de amadurecimento da personalidade pode ser comparado a um descarte dessas máscaras ao longo da vida, ou, ao menos, de uma semelhança maior entre elas e a verdadeira essência do EU – é como se, com o passar do tempo, elas se tornassem cada vez mais transparentes.

No carnaval, o exercício das fantasias é de abandonar as personas mais usuais e dar espaço àquelas que são utópicas. Porém, olhando de perto, é sempre possível encontrar uma relação entre a essência do indivíduo e a fantasia que escolhe para usar. Nelas, encontra-se a permissão necessária para reconhecer e revelar o avesso. Também é a chance de assumir o improvável que se admira, o que se encontra distante demais das possibilidades reais. E assim se espalham milhares de super-heróis e personalidades memoráveis pelo salão. A fantasia também é instrumento de sátira, de escárnio àqueles que criticamos – são as ditas fantasias de protesto. Se optar por uma dessas, pergunte-se também: para que assumir um papel que tanto repudio? O que isso tem a dizer de mim? Oportunidade mais saudável não há para revelar-se o que carregamos por dentro.

Ao fim do reinado de Momo, somos chamados a rasgar a fantasia e guardar os guizos no coração, como diz a marchinha de Lamartine Babo. A realidade se reestabelece e cada indivíduo é chamado a retomar às velhas máscaras, às personas corriqueiras. Porém, com o entusiasmo de saber que é possível transformar-se em outro (ou outros) – algo que inspira às mudanças que queremos processar ao longo do ano. O carnaval nos treina a diversidade do ser.

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! (…)
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que eu vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pregada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho
Já tinha envelhecido.

(Cit. Tabacaria, Álvaro de Campos, 1928)

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