Self

Psique: Romances pautados em disputa ou anulação têm de tudo, menos amor

Crédito: Metrópoles/iStock

Hand sweeping heart from the floor with brush cleaner.

Uma verdadeira história de amor não tem preço, não há nada que a substitua. E o amor que eu falo aqui não é exatamente aquilo que pregam os românticos, excessivamente floreados. Refiro-me às relações de verdade, possíveis, recheadas de cumplicidade, afetuosidade, respeito. Tudo feito de maneira recíproca, harmônica, sem envolver medo ou competitividade.

Acho linda a imagem que Rubem Alves usou para descrever o bom funcionamento de uma relação: deve ser uma partida de frescobol, na qual um parceiro deve tentar compensar a falha do outro para manter a bola em jogo – e não uma disputa de tênis, cujo objetivo é fazer uma jogada indefensável. Na prática, entretanto, vemos muito mais Roland-Garros e Wimbledon que brincadeiras à beira do mar.

E o que é pior: muitos ainda confundem concessão com anulação. Em vez de compartilhar a vida, abrem espaço e servem de degrau para que o outro possa se realizar. Fazem do bem-estar do parceiro a fonte prioritária de gratificação – chegam até a esquecer aquilo que trazem como valores genuínos, verdadeiros prazeres, crenças e ambições.

Carentes por natureza
Quando é assim, amar sai caro demais. Tem o preço de uma vida. A frustração de chegar num determinado ponto do trajeto e perceber que somos um engano, que somos personagem na história de alguém, mas não sabemos qual é a nossa própria. É pior que a clandestinidade: é não ter o direito de existir além da relação. É concentrar todo o poder no outro e dele depender para não morrer à míngua.

Nem um, nem dois, nem três. São incontáveis os casos semelhantes que acompanho, já acompanhei – e, bem provável, hei de acompanhar. E não é exclusividade minha. Todos os meus colegas têm histórias semelhantes a relatar.
E por que isso acontece? Porque somos carentes por natureza. Porque não sabemos mais construir relações baseadas na reciprocidade. Porque idealizamos um amor perfeito, imaculado. Porque ficamos apavorados diante da solidão – sem percebermos que, quando estamos em relações dessa qualidade, já vivemos sozinhos. Não queremos perder o que já não temos, uma falácia.

Só mistificamos a dor da solidão quando não confiamos naquilo que somos, na capacidade de nos reinventarmos. Estamos tão acostumados a aplicar nossos recursos para sanar as necessidades do outro, mas nem sempre acreditamos que eles serão suficientes para manter nossa qualidade de vida. Outra falácia.

Silêncio perturbador
Na fantasia, o silêncio e a passividade são uma forma eficaz de evitar um mal-estar. Mas não é verdade. Não é a contestação quem pare o problema, ela só desperta aquele que já está adormecido.

Discutir é a melhor forma de resolver um desentendimento: se cada um apresenta seus argumentos, com o máximo de clareza e a menor passionalidade possível, o que está torto se endireita. Ou será reconhecido por ambos como algo sem solução. Assim, solucionado estará. Deverão chegar a um acordo sobre o que fazer com esse fato.

Não há relação mais importante que a nossa individualidade. Inclusive, se soubermos preservá-la, teremos um romance ainda mais saudável, consensual, maduro – e, principalmente, sem o ranking do quem pode mais. É a receita do frescobol de Rubem Alves. “Ninguém ganha para que os dois ganhem.”

 

Psique: Elke era uma maravilha, paradoxo da fantasia louca e da realidade crua

elke

Elke, excêntrica. Essa era sua mais pura definição: fora do centro, distante do padrão. O rosto lindo e o olhar esperto não eram suficientes para definir seu esplendor. Ela precisava de perucas, maquiagens, pedrarias. De muitas ilusões para que chegássemos perto do tesouro que guardava. Cores e brilhos aguçavam o magnetismo no primeiro impacto. Em seguida, ela se revelava.

Elke, alegria. Sorriso imenso e fala mansa. Chamava a todos de “criança”, porque, de fato, crianças somos (por inocência ou imaturidade). Esse era o lado com o qual ela gostava de se relacionar. Sem ser piegas, nem pedante. Apenas explorava o lúdico, a brincadeira, a criatividade. Com ela, sempre parecia tarde de sábado, dia de bolo com guaraná. Desmontava qualquer rabugice com a espontaneidade.

Elke, inteligência. A coerência do argumento era dada pelos livros, peças e filmes. Rica, profunda em suas palavras. Recusava-se a falar, quando não tinha o que dizer. Estive com ela numa ocasião. Conversamos por telefone outras duas vezes. Em todas, o que gritava era lucidez – um paradoxo à imagem que estampava. Era direta, crua, consistente, surpreendente.

Elke, coerência. Obviamente, sabia que representava um personagem em nosso imaginário. Mas não se deixava tomar pela superficialidade que isso poderia representar. Tinha um olhar filosófico para a realidade, típico das almas lapidadas pela consciência. Pensar o mundo era involuntário. Engajada especialmente na defesa daqueles que ficam eclipsados pelo preconceito. Enxerga força nos indefesos, enquanto vê o ridículo dos que se acham poderosos.

Elke, esperta. “Foi brincar de outra coisa”, num canto que não sabemos qual é, num momento em que o mundo parece estar mais careta e intolerante. “Nossa liberdade é de escolher a prisão em que queremos ficar”, disse. Ao que parece, estamos bem equivocados nas nossas decisões. Ela, sagaz, libertou-se da ignorância, dos jogos tacanhos, do mundo do “eu primeiro”.

Foi preciso morrer para brilhar novamente na memória do brasileiro, para que a enxergassem além da purpurina. Uma injustiça, um desperdício

Elke, exemplo. Um enfeite do mundo, um incremento, um realce – por aquilo que mostrava de fora para dentro, mas principalmente pelo que vinha de dentro para fora. Representa a boa fantasia, encantadora, que revela um mundo além do óbvio. Tantos adjetivos denotam minha óbvia admiração. E também meu desejo de que a alma permita-nos sorvê-la, por inspiração. Carecemos de suas maravilhas.

Psique: Já caçamos pokémons há muito tempo. Eles nos distraem de nós mesmos

realidade aumentada

Foi um tanto impactante ver, no último domingo, um conglomerado de pessoas nas beiradas do parque Ana Lídia. Não imaginava que esse negócio de Pokémon fosse realmente capaz de produzir aquela cena. Milhares de pessoas, a maioria adulta, sem se enxergarem, tropeçando umas nas outras, vidradas numa tela de celular. Em troca de que? Nada.

Esse parágrafo de cima foi escrito pela demagogia. É claro que eu veria o que vi, cedo ou tarde. Até porque já é o que vemos. Essa história de “realidade aumentada” faz parte daquele “museu de grandes novidades”.

Sempre que podemos, damos nosso jeito para acrescentar no que vemos algo que nos distraia, que nos afaste do que nos angustia – em geral, de nós mesmos. O jogo é só um argumento tecnológico para alimentar esse mecanismo. Já somos craques nesse esporte de inventar, e acreditar no que inventamos.

Black mirror
O mundo pela tela do celular é um campo limitado, repleto de informações filtradas e agradáveis. Inserir neste campo um Pokémon é só o começo. Em breve, hão de criar a melhor companhia: superamigos, ainda mais perfeitos do que as imagens que nos povoam as redes sociais, ou amores perfeitos, que nunca nos digam não. Smartpais também podem ter uma boa procura no mercado.

Uma boa pedida para que compreendamos o significado desse novo paradigma que se instala na humanidade é bem representado pela série Black mirror (na foto acima), disponível no Netflix. Vale a pena, mas assista cedo: é daquelas que fazem perder o sono. Fala da espetacularização das relações nas mídias sociais, da conexão entre realidade e mundo virtual, e outros temas afins.

Ou seja, de tudo aquilo que é provocado pelo nosso espelho negro (a tela do celular), do momento em que acordamos até a hora que o sono nos trai. (Inclusive, pesquisas mostram que o tempo de sono tem encurtado graças aos smartphones.) As situações retratadas gritam indagações que não nos fazemos. Em suma: qual é o limite?

Aos poucos, ficaremos cada vez mais enclausurados no campo virtual. E, proporcionalmente, fervilham no inconsciente as perguntas elementares. Para que tudo isso? Qual o sentido da existência? Ao que parece, essa inquietação não quer cessar. Essa tentativa de empurrar para baixo as angústias existenciais vão transformando-as em adoecimento – manifestos no corpo e na alma. É o movimento compensatório da psique.

Imaginar é preciso
A realidade aumentada não deveria ser mais interessante que os desafios que nos são imputados pela vida. Na verdade, são priorizados por serem bem mais simples. Pertencemos a uma safra tecnicamente muito bem qualificada, em busca da excelência, mas pouco capacitada para os mistérios profundos.

Ficamos maravilhados com a possibilidade de nos depararmos com um monstrinho na sala de casa ou na rua. Até no meu consultório já capturaram um troço desses. Curiosamente, quem o fez tem grandes dificuldades para olhar para os próprios sonhos, as produções espontâneas do inconsciente. Talvez por medo de, por lá, encontrar criaturas que não cabem numa bolinha. E de não saber o que fazer com elas.

Mas não adianta fazer um discurso nostálgico ou apocalíptico. Há Pokémons soltos pela cidade, essa é a nova realidade. Logo virão outros seres, cenários, uma nova dimensão. E a psique se adaptará, como se adaptou até agora. Talvez essa seja nova forma que encontramos para lidar com a imaginação, antes de enlouquecermos por completo.

Psique: Toda prepotência encobre uma impotência. O mesmo vale para o contrário

Crédito: Metrópoles/iStock

prepotencia

Quando somos pequenos, achamos que a vida é difícil porque não temos nossos desejos realizados. E a culpa é da fada madrinha, ou do gênio da lâmpada, que se negam a aparecer. A adolescência chega e é a tirania dos pais que desperta a nossa frustração. Se não fossem eles, imaginamos, seríamos muito mais realizados.

Chegamos à vida adulta, e o problema novamente se transfere. Ao chefe que não nos reconhece e recompensa. À pessoa amada, que não se dedica o suficiente ou não corresponde o que esperamos. Os cabelos começam a embranquecer e é a vez do Estado e da sociedade pesarem na balança. Logo depois vem Deus e sua injustiça. O corpo falha, limita nossa capacidade. E morremos frustrados pela vida que “o outro” não nos permitiu viver.

Essa é a história de alguém que não busca se conhecer. Ou, pior: de um indivíduo que insiste em se enxergar passivo diante da própria existência. Um ser que, em vez de acolher a própria falha, acaba por transferi-la a algo que acredita ser externo, fora de si. Ou seja: alguém que não se percebe como parte integrante do mundo.

O que nos torna capazes

Esse pensamento foge do “querer é poder”, lema máximo da autoajuda. Nem sempre o querer é suficiente. Nem sempre o poder é permitido. Não somos tão autossuficientes assim. A realidade é muito complexa para que consigamos detê-la e conduzi-la. Mas não é por isso que devemos permanecer inertes, à espera da resolução automática das complicações que surgem no caminho.

O sofrimento nos chega quando experimentamos algum desses extremos. Se nos enxergamos prepotentes, acreditamos que estamos habilitados para decidir-agir-funcionar em qualquer situação, e que o resultado desejado depende apenas de esforço e dedicação. É mentira.

Da mesma forma, o impotente é aquele que se vê insuficiente para decidir-agir-funcionar diante de qualquer adversidade. Menospreza a própria presença, pois se vê pequeno demais, fraco demais. Nessa visão, o outro é alguém mais capaz. Quando este me serve, dele dependo. Quando me nega, dele me ressinto. Outra mentira.

O meu tamanho

Não precisamos ser demais nem de menos. Temos que encontrar a medida exata das nossas faculdades, e essa métrica não está escrita aqui – nem em lugar nenhum. Na verdade, aprendemos sobre nossos limites e possibilidades em cada passo da vida, quando tentamos escutar como cada momento repercute em nossa alma.

E, para balizar esse instrumento, não devemos ser óbvios (a tendência reducionista do ego) e apegarmo-nos apenas àquilo que faz bem, encoraja e energiza. Carecemos igualmente do incômodo, daquilo que deprime e nos coloca diante da incompletude. É esse repertório de excessos e faltas que nos define enquanto humanos.

Vivenciar a impotência ou a prepotência é algo inevitável. Fixar-se em alguma delas é que é o risco. Até porque surgem como faces da mesma moeda. O esforço para ser ultra compensa apenas algo em que nos sentimos infra, e vice-versa. E, enquanto isso, inúmeras outras possibilidades de realização vão sendo negligenciadas.

nivas gallo