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Costumamos ter um discurso pronto sobre nós mesmos. Somos capazes de elencar características, limites, opções. Fazemos isso como se tivéssemos plena ciência daquilo que somos, daquilo que expressamos pelo nosso fazer.
Daí vem um comentário de alguém e nos atravessa como uma flecha. Ficamos surpreendidos com algo que nos apontam. Isso nos perturba, incomoda. O tempo passa e percebemos que a fala era pertinente. O outro foi capaz de enxergar e nomear algo que sempre esteve aqui, mas que, sem ele, não teríamos clareza suficiente para fazê-lo.
A visão do ego é comprometida por uma perspectiva estreita. E é justamente por isso que necessitamos tanto da presença dos demais em nossas vidas: é a partir deles que podemos amplificar esse capacidade de visão. São eles que colocam em confronto as certezas do eu com a pluralidade da existência.
Casa de espelhos
Uma boa forma de entender esse mecanismo é compará-lo com uma casa de espelhos, daquelas de parques de diversões. Nelas, cada espelho tem distorções próprias. Uns alongam nossa imagem, fazendo-nos parecer maiores do que verdadeiramente somos. Outros pressionam: ganhamos quilos a mais. Há ainda os que destacam alguma área do nosso rosto. Enfim, cada um apresentará uma versão própria daquilo que somos.
Assim funciona nas relações. Nenhum interlocutor é capaz de nos apresentar uma imagem nítida, reta, fiel e proporcional daquilo que somos. Refletem nosso espectro a partir da forma que têm. Estão todos comprometidos com a própria composição, com o molde que seguem.
Quando compreendemos isso, percebemos que o outro não será eficaz para me mostrar aquilo que sou. Mas será uma importante referência: a partir dele, poderei conhecer mais sobre minha anatomia – algo que o posicionamento dos nossos olhos (literal e metaforicamente) nos impede. Os espelhos revelarão aspectos que, até então, são desconhecidos. Mesmo que isso nos seja mostrado sempre com distorções.
Localize-se no mundo
O trabalho da psique é de reunir tais referências, mesmo que distorcidas, e elaborá-las, para que cheguemos a uma autoimagem mais aproximada daquilo que somos. Nem se anime para a possibilidade de um autoconhecimento pleno: geralmente aquele que pensa saber tudo sobre si mesmo é quem está mais passível de decepção.
Ou então pensa isso por não se permitir olhar para os espelhos. Se não me exponho a outras referências, serei conduzido por aquelas poucas que guardo comigo. E isso costuma ser muito ruim: há quem acredite ser muito melhores do que verdadeiramente são (quando foram apontados como pessoas “muito especiais”), ou que desconheçam uma série de potências que possuem, pois não contou com ninguém para sinalizar tais talentos.
Ao fazer essa elaboração de forma saudável, somos gratos ao outro por tudo aquilo que nos apresentam sobre nós mesmos, até mesmo quando o tempo nos mostra que a imagem que ele refletia era tão distorcida, que pouco correspondia a minha alma. Isso também ensinará sobre quem sou, onde estou, quais são os meus valores.
Tudo isso moldará a superfície do espelho que somos. Quando nascemos, herdamos um mundo. Ao morrermos, deixaremos outros que nos sucederão. E, nesse hiato em que a vida se dá, também refletiremos imagens aos demais.