Na próxima terça-feira, o país comemora uma data especial, pouco conhecida pela maioria das pessoas. É o Dia Nacional do Cigano, uma conquista recente da etnia que está presente nas terras brasileiras desde a colonização – há registros que o primeiro a chegar foi João de Torres, em 1574, vindo em uma nau de degredados, sob ação do Tribunal do Santo Ofício português. Ao institucionalizar o 24 de maio, os poderes constituídos tentam gerar na sociedade uma ação afirmativa em prol de um grupo segregado, que sempre teve ações e tradições associadas à marginalidade. Mas que, no entanto, sempre despertou o fascínio dos gadjé (não-ciganos) pelos valores que transparecem: a liberdade, a passionalidade e a mística são valores inerentes aos “filhos do vento”.
Em uma conversa com a pesquisadora Cristina da Costa Pereira, me dei conta de um dado interessante: um povo perseguido em todas as instâncias no mundo encontrou no pluralismo brasileiro a sede para expressão de sua natureza mais íntima. E o exercem de forma tão plena a fim de despertarem a admiração de muitos gadjé: somente por aqui temos não-ciganos que se intitulam ciganos, gente que adota (ou se apodera?) de uma cultura tão rica com tamanho fervor a ponto de transformar os hábitos em uma espécie de religião. A natureza desconfiada dos ciganos genuínos geralmente se manifesta na reclusão e nas palavras medidas. Os pseudociganos, no entanto, gritam em todas as direções o que gostariam de ser.
O “mundo cigano” no imaginário popular corresponde às tribos nômades, onde mulheres expressam a sensualidade entre danças, saias e longos cabelos, acompanhadas por maridos provedores e fiéis, onde a sabedoria se manifesta na magia e nos oráculos. Ciganos são livres, astutos e independentes. Não se subjugam, não se retém às normas que não acreditam. Todos esses atributos são verdadeiros. E tudo isso é bonito demais, encantador demais, diante de uma sociedade tão enquadrada como a que vivemos hoje. Ser cigano é praticamente um plano de vida, expressa uma alegria que nem sempre é encontrada no cotidiano.
Encarar essa realidade de forma tão romantizada é como observar um casaco de peles ignorando o sofrimento do animal que forneceu a matéria prima. Os ciganos são tudo isso, sim. Mas o são por serem, antes de qualquer coisa, indivíduos fortes e seguros diante de suas crenças. As origens incertas e a dinâmica nômade sempre os confiaram às margens da sociedade. Milhares morreram no genocídio nazista. Outros milhares ainda sofrem com as oportunidades escassas simplesmente por carregarem os caracteres ciganos – não, não falo da Romênia, e sim do Brasil. Mesmo assim, carregam-nos com muito orgulho – coisas que não encontramos em outras minorias oprimidas que, muitas vezes, se descaracterizam físico e culturalmente numa tentativa de maior aceitação dos “predominantes”, sem perceberem que, assim, apagam a história ancestral. Quem não honra suas raízes não se estabelece com segurança em lugar algum.
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A data da comemoração foi escolhida por celebrar o dia de Santa Sara Kali, a Negra. Segundo a crença, ela era cigana e foi escrava de José de Arimatéia. Eles teriam sido atirados ao mar em uma embarcação, sem remos nem provisões, acompanhados por Maria Madalena, Maria Salomé e Maria Jacobé. Eram punidos por propagarem a fé cristã, logo após a crucificação de Jesus. O grupo estava perdido no mar e, diante do desespero dos demais, ela teria tirado o lenço que levava na cabeça e lançado ao mar, pedindo uma intercessão divina. Como por mágica, o barco teria sido conduzido pelo oceano em total segurança, até atracar na cidade francesa Petit-Rhone – hoje chamada Saintes-Marie-de-La-Mer. Anualmente, ciganos de todo o mundo peregrinam até o local, onde oferecem lenços bordados à pequena imagem de Sara, instalada em uma gruta.