Não faltam boas referências na mídia sobre o filme O Cisne Negro. Principalmente à atuação impecável de Natalie Portman, favorita ao Oscar de melhor atriz. No entanto, não me coloco aqui no papel de crítico de cinema, e sim de alguém que elogia e analisa a rica simbologia presente no filme. O dilema e o enfrentamento de Nina (Natalie) são indiscutivelmente uma das melhores referências que se pode ter sobre questões do complexo materno, a temática que apresento aqui.
Nina é uma bailarina de 28 anos que, apesar da idade, tem referências distorcidas da própria vida. Ela é extremamente sensível, mas também indefesa e infantilizada. Vive reclusa com a mãe, tendo na dança o trabalho e a única distração. Tem como meta a perfeição e, na tentativa de alcançá-la, mantém uma imagem extremamente polida e autocrítica. Tais características são estimuladas por essa mãe: uma bailarina frustrada, que deposita sobre a filha a responsabilidade de ter-lhe impedido o desenvolvimento na dança. Sua mãe não tem sequer um nome ou atributo que a diferencie do mundo: dialoga com rostos anônimos que pinta, numa tentativa de definir uma identidade.
A relação entre ambas é simbiótica. Nina se esconde na superproteção materna, e, em contrapartida, se submete ao abuso e a tirania. Nem se pode dizer que a filha tenha uma intimidade devassada: ela sequer tem direito a uma intimidade, ao viver em um quarto sem fechaduras. A mãe a despe sem pudores, vigia o seu sono, define planos a seguir. Nina, por sua vez, tem uma autoimagem distorcida, que se manifesta em sintomas. Tem uma urticária compulsiva (incômodo e negação à pele, canal de contato físico com os demais e também de estimulação erógena) e também apresenta rumores de distúrbios alimentares. Ambos são usados por essa mãe, como forma de impor o controle a partir da imagem de cuidado. Ela é o Cisne Branco, asséptico e imaculado, que nada nos lagos formados pelas lágrimas da mãe – assim como é no conto que deu origem ao balé O lago dos cisnes, que embasa a história.
Submetida a esse mundo, Nina desempenha um papel limitado diante da vida. Encontra expressão unicamente na dança e, sabiamente, é a partir da expressão artística que surge uma possibilidade de remissão desse quadro doentio. O diretor da companhia onde dança desperta Nina à necessidade de desenvolver atributos até então negligenciados, quando a convida a desempenhar um papel que é o seu avesso. Os homens tem um papel preponderante no desenvolvimento da mulher: é o que Jung chamou de animus, a parcela masculina que as habitam. O mesmo ocorre com eles, que contam com a anima como oposto complementar na psique. A conexão com esses elementos é feito a partir da projeção: enxergamos animus e anima nos homens e mulheres com quem convivemos.
No caso de Nina, o animus se manifesta no diretor, que assume o papel de herói (a captura da família e a leva para conhecer um novo mundo) e também de professor (oferece lições para seu desenvolvimento). Ele inicia essa jornada despertando-lhe a sexualidade, inerente ao papel do Cisne Negro e negada até então pela protagonista. Ele estimula a autoerotização (com a masturbação, o uso de maquiagem) e também a inspiração nas colegas de companhia, que traziam a dança de forma visceral e espontânea, a detrimento da técnica.
Nessas colegas, Nina vê projetada a própria sombra: tudo aquilo que não quer ou não se permite ser, mas que, nesse momento, é imprescindível para o desenvolvimento. Na medida em que ela se encoraja a encarar essa sombra, na tentativa de admiti-la e integrá-la, o corpo metaforicamente passa por uma mutação e incorpora os caracteres do Cisne Negro. O enfrentamento provoca dor e estranhamento: ela enxerga o próprio rosto em situações até então improváveis. Fica inevitável a ela reconhecer-se transgressora, forte e independente. Agora, pode confrontar a mãe devoradora e libertar-se dela.
O apogeu de Nina se dá na estreia do balé. Num confronto contra a própria imagem, ela crê ter destruído a sombra projetada no exterior. Mas agora o Cisne Negro a habita, reina em si, enquanto o Cisne Branco torna-se incômodo, artificial. No entanto, de tão intenso, o papel sombrio conquista o público. Ela está realizada e, ao avistar a plateia, só consegue enxergar a imagem da mãe, feliz e vibrante. Entende então que, desde o princípio, tudo o que ela lhe desejara era a felicidade, a realização e a plenitude que não conseguiu vivenciar. Nina consegue integrar em si o Cisne Branco e o Cisne Negro. Está confiante o suficiente para saltar rumo ao desconhecido. Só, então, percebe o sentido da perfeição.
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“Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe o quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago
a lua toda
brilha, porque alta vive.”
(Ricardo Reis (Fernando Pessoa), 1933)