Self

Outras Ondas: Perdoa-me por me traíres

Um ato, um gesto, um pensamento, um desejo. Insistimos em nos acreditarmos capazes de controlar aquilo que nos determina. E, ambiciosos, por vezes queremos expandir essa utopia para o outro, com quem escolhemos partilhar momentos de vida. Partem daí os contratos de fidelidade: da necessidade de nos imaginarmos capazes de monopolizar a vontade de alguém, de nos tornarmos imprescindíveis e insubstituíveis. Saber que o outro é capaz de desejar um terceiro ser se transforma em uma afronta direta ao ego inseguro, incapaz de se validar pelo que reconhece em si.

A fidelidade é uma convenção cultural, mais valorizada em alguns povos e menos em outros. Mas, de fato, a exclusividade na relação não é garantia de sucesso na mesma: o casal pode impedir a realização de traições, e, mesmo assim, manter uma convivência medíocre, fria e distanciada. Nós brasileiros vivemos um conflito ainda maior. O país é regido por duas forças intensas: o machismo, tradicionalista (que aceita a traição masculina sem grandes repercussões, mas não a feminina), e uma sensualidade peculiar, que faz com que o desejo e a lascívia nos influencie diretamente os comportamentos. A resistência à traição é um exercício moral, quando, na verdade, o ideal a reger deveria ser a ética. Ou seja: seguimos códigos de conduta por termos dificuldades de estabelecer parâmetros de bom senso.

Quando um casal combina um modelo de fidelidade, adotam nesse ato uma convenção. Podem até ter um propósito de realização, mas dependem de muitos fatores para chegar a este fim. Além disso, a traição não é necessariamente uma deliberação: um dos agentes pode se envolver com outra pessoa sem ter para isso um planejamento prévio. A paixão costuma ter um caráter surpreendente: antes de perceber, já estamos envolvidos. E daí a traição é somente uma consequência. No entanto, há ainda uma outra classificação: a traição como meio de punição do companheiro ou companheira. Nesses casos, as frustrações do que o outro não é (mas eu desejaria que fosse) pode mobilizar minha atenção para fora da relação. Isso é bem comum em momentos de crise relacional, ou das crises individuais nas quais não se sente o apoio devido por parte do outro. Há também quem traia achando que isso incrementará a relação, ou até mesmo por não conseguir administrar a possibilidade de perder a oportunidade de lidar com novos parceiros. De qualquer forma, soam como faces de uma imaturidade emocional, ou seja, da incapacidade de se responsabilizar e se encarregar por aquilo que sente da forma como sente, sem precisar recorrer a subterfúgios.

Quando efetivada, a traição ocasionará transtornos, dor, prejuízo. Muitas vezes, isso tudo vem acompanhado por promessas de transformação, por pedidos de perdão. Convém ressaltar que perdoar e esquecer não são sinônimos. O perdão ideal seria tratar a traição como um fato que fez parte da história do casal, mas não permitir que ela permaneça mobilizando emoções e comportamentos que determinam a dinâmica do casal. Particularmente, vi isso ocorrer com sucesso em raríssimos casos. Em geral, as pessoas anunciam um perdão (assim como o traidor anunciou a fidelidade), mas a traição não abandona a cena. Um constante clima de desconfiança, a mágoa e a raiva represada não permitem que os dois se vejam como antes se viam. E, muitas vezes, intimamente cultivam tais emoções como um sinal vivo do que ocorreu – não querem superar, mantém a história como um trunfo. Esquecer um evento negativo não é uma decisão com solução imediata, mas cultivar uma lembrança é, sim, uma escolha.

Não quero assumir, com essas palavras, uma postura pessimista. O arrependimento existe, mas ele depende de uma mudança profunda no estilo de vida de cada agente da relação e da própria relação. A traição pode ser um indicativo importante de que o casamento anda mal. Sendo uma espécie de terceiro ser que media os participantes, uma relação desestabilizada sinaliza que todos precisam de revisão e ressignificação de valores.

Além disso, não há uma traição que seja igual a outra – apesar de elas costumarem mobilizar uma teia semelhante de afetos por quem as já experimentou. Em cada caso, ela terá um significado, um sentido peculiar. Há quem “precise” trair para compreender questões familiares profundas. Conheci pessoas que, a partir de uma traição, conseguiram diagnosticar doenças terminais e lutaram para manter a vida. Ou seja, como qualquer outro evento da vida, a traição, em si, é o que menos importa. E sim o que ela quer nos dizer.

Ninguém trai ou é traído porque quer, e sim porque necessita. Condenável como qualquer outro deslize cometido ao longo da existência, ela nos dá a oportunidade de buscar novos significados para o viver. Talvez o mais importante deles é o amor próprio: aquele que alcançamos quando aceitamos e respeitamos nossas limitações e buscamos forças e coragem para transcendê-las. E é só a partir desse afeto que conseguimos olhar o outro como sujeitos, e não como objetos de nossa posse. Até porque quem o vê assim, assim por ele será visto.

Outras Ondas* – O que eu mereço

Uma das grandes críticas do mundo atual é a ausência de valores voltados à coletividade. Vivemos, dizem, em uma civilização pautada no egoísmo, repleta de valores predatórios. No entanto, a cada dia me deparo com pessoas que, por temerem a associação com esses papéis, sofrem justamente pela debilidade do EU. Na ânsia por dar certo nos papéis sociais, esquece-se de destinar o saudável espaço para os momentos de promoção de valores relativos à individualidade. Deixa-se confundir pelo eu-profissional, o eu-mãe, o eu-marido – e uma série de outros eus fragmentários.

Em psicologia analítica, cremos que esse EU se personifica no ego, o eixo que ocupa o centro da consciência. Ele é um complexo, ou seja, um emaranhado de imagens e sentimentos que se forma à medida que o indivíduo experimenta o mundo que o cerca. O ego funciona como o personagem central da história, o responsável pela execução das tarefas designadas pela totalidade psíquica, a quem chamamos self. Jung descreveu a formação do ego como ilhas de consciência que emergem do oceano do inconsciente. Ao se aglutinarem, essas ilhotas constituem a imagem que temos de nós mesmos – seja ela na dimensão corporal, psíquica ou espiritual.

A formação do ego se inicia desde o momento inicial da vida. Porém, ela tem um salto importante quando a criança para de se referenciar como “O Pedrinho” ou “A Carol” e se autointitula “eu”. Nesse momento, ela toma a consciência de que mora no “arquipélago” da consciência, e não mais no inconsciente indiferenciado. Os pais percebem isso claramente: em geral, vem acompanhado por uma fase questionadora, cheia de birras e tiranias, lá pelos 2 anos de idade. O ego ganha um novo upgrade na adolescência (com as mesmas birras e tiranias), onde há uma afirmação de traços da personalidade a partir do desprendimento ou identificação com as características herdadas dos pais. O eixo da consciência se completa por volta dos 21 anos, quando o sujeito se diferencia dos demais a partir de traços únicos de personalidade.

Porém, muitos se esquecem de continuar fortalecendo esse eixo. Deixam de lado elementos que lhe são favoráveis, diria imprescindíveis, para aguentar as adversidades que o mundo impõe. O Eu se transforma num resolvedor de problemas do cotidiano – e valida-se tanto nesse papel, a ponto de esquecer-se de aproveitar as recompensas diante dos feitos heróicos que realiza. A vida competitiva faz com que não haja sossego: a paz ficará para o futuro, quando tudo estiver organizado. Mas e que dia saberemos que o tal futuro chegou? Chegaremos ao dia mágico destinado a descansar e aproveitar a vida?

Nessa roda viva, o eu-herói se encarrega dos próprios problemas, dos problemas dos semelhantes e dos problemas da humanidade. Não defendo aqui a individualidade exacerbada, absolutamente. Mas é preciso saber reconhecer que um soldado ferido pode onerar, e até mesmo prejudicar o andamento de uma guerra. O reconhecimento das próprias feridas tem sido um problema constante. A tendência do mundo é de cobrar que se faça mais, e mais, e mais. Não há mais razoabilidade para admitir-se infalível. No íntimo, o eu-heróico se queixa de ser humanamente imperfeito.

O tempo para refazer-se das batalhas diárias se transforma em frivolidade. Transfere-se os méritos a outros; lidar com troféus torna-se um enfado. É como se fosse proibido ser feliz: deve-se “correr atrás”, pois o tempo passa rápido e é inadmissível deixá-lo escapar entre os dedos. Mal percebem que, quanto mais obstinado se estiver com esse propósito, sobra menos tempo para viver.

O ego é o veículo nessa jornada. E, como tal, merece passar por revisões constantes para que possa se manter funcionando plenamente. Entre os itens a conferir, estão o comprometimento com as atividades que me conferem prazer e descontração, além do respeito com o corpo – que nem sempre diz sim a todos os embates que o herói resolve abraçar. Estar ciente desses fatores é lidar, sem culpa ou constrangimentos, com as maravilhas que o mundo propicia.

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