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Psique: Uma triste notícia: somos todos carentes, em maior ou menor grau

Crédito: Metrópoles/iStock

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A expressão “vale enquanto serve” impõe uma lei de descarte nas relações humanas. É o que se chama de objetificação do outro – visa retirar dele as características de sujeito (peculiaridades, vontades, emoções, questionamentos etc.) em nome de interesses particulares.

A escravidão é o exemplo extremado desse processo. Nela, o indivíduo tem subtraída a sua humanidade. Sobre ele se impõe uma nova realidade, apontada como certa. É alguém que determina quem ele poderá ser, o que deverá fazer, no que poderá acreditar.

Foi o que vimos com os africanos escravizados que para cá foram trazidos. E que, até hoje, veem seus descendentes sofrendo restrições e imposições decorrentes desse estigma. O principal deles é a negação, o não-reconhecimento da covardia e da crueldade que envolveram esse processo. Nem dos danos que ainda repercutem, em decorrência disso, na população preta.

Essa é uma característica recorrente entre os ‘objetificam’ o outro: tentar impor sobre suas vítimas uma espécie de responsabilidade pelo dano sofrido. ‘Não deveria estar ali naquele momento’, ‘você devia ter sido mais sagaz’, ‘você deve ter feito por merecer’.
Falas atrozes como essas têm uma função primordial nessa dinâmica: retroalimentar a autodepreciação daquele que serve aos interesses originais. Aos poucos, ele acreditará que é um bom negócio estar ao lado de quem usurpa suas potências, pois, somente ali, ele é valorado e reconhecido. O manipulador eficiente saberá encontrar os pontos de maior vulnerabilidade para que essa verdade prevaleça.

Antes mal acompanhado…
A carência é a porta para essa armadilha. Uma triste notícia: somos todos carentes, em maior ou menor grau. Nossa insuficiência faz com que busquemos um ideal de completude (sem sucesso, convém ressaltar). Nunca estamos satisfeitos, e quase sempre não nos conformamos com isso.

Cada um encontrará seus vetores de compensação a tais faltas. Não é por acaso que gostamos tanto de médicos, gurus, prostitutas e advogados – em comum, personagens que nos denotam uma importância, e que, nem sempre, somos capazes de reconhecermos sozinhos.

Felizes dos que recorrem aos profissionais, porque a grande maioria busca fazer essa compensação com pares. E transformam em pares quem lhes der algum aceno positivo. E entregam muito em nome da manutenção dessas relações. São assombrados pela fantasia do desamparo: de não terem em quem encontrar apoio para suportar as dificuldades da vida.

O termo “desvalido” é preciso para descrever esse estado, pois fala daquilo que é desprotegido, mas também daquilo que não tem valor. O carente, um “sujeito objetificável” em potencial, é uma pessoa que não consegue reconhecer os valores que carrega em si. Por isso precisa tanto daquilo que o outro tem a oferecer. E não percebem o preço salgado que cobram para manterem essa relação.

O que chama-se de autoestima nada mais é que o reconhecimento e promoção desses valores e recursos internos. É a antítese da carência – não porque o ser que tem uma boa autoestima não sofre com as faltas, mas sim porque ele consegue enxergar-se para além delas.

Ajuda mútua
Não falo aqui apenas das relações extremas, patológicas. Mas também das imposições dissimuladas, das relações utilitárias do dia a dia – da que nós mesmos, ditas pessoas de bem, praticamos de forma corriqueira, e amenizamos em nossos discursos.

Sem uma ética vigilante, tendemos a usurpar do outro aquilo que tem a oferecer. Somos aproveitadores, pois gostamos do que é bom, farto e fácil. Da mesma forma, também oferecemos aos demais aquilo que nos sobra, quando nos é conveniente. Usamos uns os outros o tempo inteiro, e isso não é problema. É uma fantasia utópica a ideia de independência.

O que aqui chamo de ética é um olhar atento pode ser traduzido como uma medida justa às nossas necessidades. Elas, de fato, são poucas e fazem com que esse “uso cruzado” se configure como uma ajuda mútua – o combinado não sai caro. O bem servir, ou servir para o bem, é capaz de profundas e positivas transformações entre os agentes participantes.

Outras Ondas – Os mil tons do masoquismo

Os punhos, imobilizados por uma gravata, situa Anastasia em estado de plena disponibilidade aos desejos de Grey. Enquanto tem os desejos estimulados por uma chibata, percorre suavemente o corpo, até que o suspense se faz: a excitação aumenta a cada segundo entre o momento em que o artefato se afasta do corpo, e quando a ele retorna, agora num golpe seco, definindo quem comanda a cena. Tudo se dá num clima de sedução e mistério, minucioso e envolvente. Vivem tal realidade como num jogo meticuloso, orientado pelo domínio e pela submissão. O clima erótico masoquista que envolve tais personagens arrebatou o mundo, primeiramente a partir do fenômeno editorial da trilogia Cinquenta tons… , escrito pela londrina E.L. James – os livros passam da marca de 100 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo, segundo informações da editora Vintage Books, dona dos direitos autorais da obra. Recentemente, o tema retorna à notoriedade a partir da adaptação do primeiro volume, Cinquenta tons de cinza, para o cinema.

Sem trocadilhos, o masoquismo domina a fantasia de homens e mulheres. Uma pesquisa britânica com mais de 19 mil pessoas mostrou que as fantasias sexuais que envolvem humilhação mobilizam 6% da população. Um percentual de 18% dos homens e 7% das mulheres ingleses (cerca de 5,85 milhões de pessoas) declarou se excitar com a ideia de bater em outra pessoa; 11% dos homens e 13% das mulheres fantasiam em apanhar durante o jogo erótico. É verdade que, em muitos casos, tudo fica num campo de idealização: poucos se identificam com a temática a ponto de leva-la à prática, com seus parceiros sexuais. E também não podemos ficar somente nessa nuance do masoquismo. Além do jogo erótico, ele atravessa diversas outras relações do cotidiano.

No entanto, essa estatística é defasada. Isso porque o contabilizado aí se refere apenas às práticas eróticas e sexuais. Podemos definir o masoquismo como uma dinâmica relacional, ou seja, uma espécie de molde de vínculo entre dois ou mais sujeitos, independentemente da natureza da relação. No caso, as relações de caráter masoquista se caracterizam pela associação entre amor/atenção/carinho/prazer com humilhação/desprezo/agressividade/dor. É uma espécie de distorção, pois depende do sofrimento para a realização da relação. Nessa dinâmica, os agentes se dividem entre masoquizantes (os ativos, que impõem, dominam, humilham) e masoquizados (os passivos, que se submetem, são humilhados). Esses papeis são bem estabelecidos, mas podem se alternar com a convivência. Mas nunca os participantes estão em pé de igualdade: são regidos pelo poder.

Isso faz com que o masoquismo não seja exclusividade dos casais. Ele também pode estar presentes em encontros de outra natureza: chefe e empregado, pai e filho, sacerdote e discípulo etc.. Cinquenta tons são insuficientes: são mais de mil nuances possíveis nessa forma de troca entre dois ou mais indivíduos.  Extremamente comprometidos entre si, os agentes da relação masoquista vivem sob uma espécie de contrato, tácito ou explícito, que delimita os papeis e as prioridades da relação. Relacionam-se de uma forma bem ritualizada, exclusiva, como quem segue scripts. Mantém entre si uma espécie de dependência afetiva, explicitado pelos jogos de manipulação retroalimentados pelos agentes, transformando a relação num elemento validador da existência.

Não visam a dor pura e simples, como pensam os leigos. Na verdade, entendem o sofrimento, a privação, a humilhação etc. como um caminho, um preço razoável a pagar para se sentir cotado, observado, inserido, desejado, querido. Negligenciam o respeito e o amor próprio como valores máximos, acima de qualquer relação. A motivação é uma espécie de carência, muitas vezes que não se conhece exatamente de que. O masoquista teme, antes de qualquer coisa, a perda: evita o distanciamento da fonte de nutrição afetiva e, em nome disso, rende-se ao desejo do outro. Diferentemente do que pensa a maioria, não existe o dito sadomasoquismo: apesar de ambas associarem dor e prazer, tratam de duas dinâmicas muito adversas entre si, impossíveis de funcionar como complementares.

Posso afirmar que, em maior ou menor grau, o masoquismo nos atravessa a todos. Num grau mais ameno, aparece como uma fantasia de imposição ou submissão. Em suas nuances mais escuras, tal necessidade transpõe os limites da razoabilidade, transformando-se numa exigência patológica, quando passa a assumir um caráter compulsivo que impede a realização de vínculos baseados em outras dinâmicas relacionais possíveis. Compromete assim a saúde global: física, moral, psíquica, social, relacional, familiar, econômica, espiritual.

As origens do masoquismo no psiquismo são múltiplas, mas em geral tem franca relação com a infância e as referências parentais, ou seja, com o modelo de relação apreendido dos pais e familiares próximos. Há também casos deflagrados por situações traumáticas, como sujeição a abusos – não exclusivamente de ordem sexual. Independentemente da origem, a situação original dá origem ao complexo masoquista, que tenderá a buscar situações que o corrobore. A depender do histórico e da estrutura, o indivíduo poderá assumir o papel ativo (que impõe) ou passivo (que se submete) na relação. Pode, inclusive, alternar entre essas duas vertentes, a depender do agente complementar que encontre. Por exemplo: impõe-se diante dos funcionários, mas age de forma submissa diante da mulher.

Ao entendermos o masoquismo como uma dinâmica relacional, não podemos considerá-la uma escolha ou eleição, e sim uma necessidade. Até mesmo entre os sujeitos identificados com essa dinâmica, ou seja, os consumidores de algemas e outros apetrechos de sexshops, percebe-se um conflito latente por estarem vinculados a tal vivência. O masoquismo surge como uma estratégia relacional pela ausência de outros referenciais mais saudáveis. Assim sendo, o masoquista não é alguém a quem cabe julgamentos morais ou sociais. Como qualquer ser humano, ele busca a sua realização, o seu ideal de felicidade, a partir dos recursos que conseguiu desenvolver para viver. Observa o mundo com sua óptica particular. A intervenção analítica/terapêutica se dá não com o intuito de cura, e sim de despertar a outras formas de relação possíveis. Dessa forma, pode reduzir os possíveis prejuízos ocasionados pelo masoquismo, pela ampliação da consciência, em nome do bem-estar.

Visto de perto, percebe-se no ato masoquista um escape para a saúde: ele surge na maioria das vezes como uma oportunidade de revisitar situações e temáticas mal assimiladas pela psique, com o intuito de dar a elas um novo significado. Assim sendo, seguem o impulso construtivo do Self, a nossa totalidade psíquica, que sempre aponta à autorrealização do indivíduo como alguém pertinente a si mesmo e pertencente ao sistema no qual se insere. Busca, com isso, nortear a um sentido para a existência.

Veja Brasília: 100 tons de masoquismo

A coluna Nas asas do Planalto, assinada por Lilian Tahan na Veja Brasília, antecipou a publicação do livro que escrevo sobre o masoquismo. Ficou assim:

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Foto: Roberto Castro/Veja Brasília

 

100 tons de masoquismo

Levante a mão (acorrentada) quem sempre achou que o masoquismo se limita às relações eróticas e se enquadra apenas nos encontros de alcova. Engana-se, pois. Tecnicamente, a dinâmica em que uma pessoa escolhe ser o dominador e a outra o dominado é muito mais ampla e pode envolver o vínculo entre amigos, mãe e filho, chefe e funcionário, por exemplo. O assunto virou tema do livro que o psicoterapeuta e analista junguiano João Rafael Torres  lançará até o fim do ano. “Não são só cinquenta tons de cinza, mas 100 tons de masoquismo. Esse processo que confunde cuidado, amor e atenção com violência, imposição, submissão e humilhação atravessa vários tipos de relação em diversas gradações”, alerta Torres. Embora seu livro seja mais voltado para o público especializado, se metade dessas possibilidades de masoquismo já fez muita gente pirar, imagine o que um leque ampliado não pode causar.

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Clique aqui para ler a coluna no site da revista Veja.

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