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Psique: “O bonzinho se dá mal” – generosidade e manipulação

Fonte: Metrópoles

Three red hearts, one broken and stitched, on blue

Você tenta levar sua vida direitinho. Busca ser cordial e ter empatia com o semelhante. Trata o outro bem, pois acha que é assim que qualquer criatura merece ser tratada. Com quem gosta mais, vai além. Se lhe sobra, compartilha. Quando vê o erro, o instinto de proteção passa na frente e você tenta alertar. Se cabem dois, por que ir sozinho? Isso te alegra, então eu fico contente.

A você, tudo isso parece ser natural, orgânico. E daí você se engana. De forma egoísta, acha que tem o direito de retirar do outro o direito de ser quem ele é. Quer recíproca, similaridade, espelhamento de atitudes. Vê injustiça na troca, acha que faz mais e recebe menos. “Trouxa, agora está aí cultivando mágoas. Da próxima vez, farei diferente”. E não reflete sobre tudo o que se passou.

Ser verdadeiramente generoso é uma virtude que contempla um pequeno punhado de pessoas. Em geral, emprestamos em vez de doar. E não fazemos isso por uma debilidade de caráter: a vida se mantém a partir de trocas, tudo só existe em relação.

Pague o que me deve
Quando tentamos oferecer algo gratuitamente, inconscientemente esperamos alguma contrapartida: reconhecimento, carinho, atenção, prestígio, escuta, aprovação. Às vezes, buscamos apenas sermos percebidos e validados naquilo que somos, mas não cremos ser. É bem comum.

Nisso, tornam-se admiráveis os que ajudam desconhecidos, sem se importarem com os problemas dos que estão próximos – a quem poderão cobrar pela generosidade? O mesmo vale para os mercenários: aqueles que sabem dar preço às coisas mais impalpáveis, que encontram equivalência entre dois valores tão díspares, mas deixam as intenções às claras. Só nos sentimos enganados quando não deixamos às claras o preço das nossas atitudes.

A generosidade é uma das formas mais primitivas de manipulação desenvolvidas pelo ser humano. Vem do berço. Mais precisamente, do colo. A nossa primeira referência de doação vem da mãe, ou de quem exerceu esse papel. O bebê, indefeso e incapaz, estará submetido à oferta que provém dessa fonte.

E aí aprendemos o que é chantagem emocional, que mais tarde se traduzirá no duelo entre o “só eu sei o que fiz por você” versus “você poderia ser melhor para mim”. Quem sai vencedor? A culpa. Justo ela, uma das emoções mais tóxicas que povoam nossa alma.

Abusadores e abusados
O comportamento de abuso é fruto desse eixo desestrutural, seja para o abusador ou para o abusado. Há, inclusive, uma espécie de alternância entre esses papeis. Quando o dito generoso se vê menosprezado pelo outro, diz: isso é um absurdo, depois de tudo que eu fiz. Mas não percebe o quanto esse fazer é, em si, uma atitude abusiva. Afinal, quem é você para determinar que o outro não tem condições de se expor a erros e riscos, se é a partir deles que nos desenvolvemos?

Isso não é uma ode ao egoísmo ou à ganância. Mas a partilha saudável é aquela que se dá em acordo, de forma pura. Se não consegue, melhor não ser generoso, para também não ser hipócrita. Ou, pior: emitir faturas para guarda-las na gaveta, à espera da melhor oportunidade de apresentá-la aquele que julgar devedor. Não esqueçamos: são as boas intenções que lotam o inferno.

Outras Ondas* – Mitos e verdades sobre as mães

Quando nasce uma criança, nasce uma mãe. A maternidade é percebida como um dos principais instintos que acompanha a vida, especialmente a dos mamíferos. Afinal, é a mãe quem proverá a sobrevivência do filhote nos primeiros dias/meses de vida. Não é diferente entre os humanos. A consciência que nos diferencia das demais espécies nos oferece um fenômeno único: cultivar o vínculo materno até mesmo após a morte – não existe ex-mãe. O instinto se manifesta até mesmo entre as mulheres mais desajeitadas, que se percebem outras ao ter a cria no colo: a mão acerta a pegada que acalma o bebê, o pulso se transforma no melhor termômetro para testar a temperatura da comida, a mente decodifica o acorde certo do choro de dor, de fome ou de manha. A maternagem surge como um bem inato não só às mulheres que parem – mas também àquelas que se dispõem à maternidade. Mãe é aquela que acolhe, que protege, que defende, que educa.

Mães são todas iguais, só mudam de endereço. Apesar da competição velada que nutrem entre si, as mães parecem constituir um grupo conciso de ideais e práticas – assim acreditam os filhos. Talvez eles estejam certos. Apesar de não terem um acordo declarado, as mães agem tacitamente a partir de um mesmo conceito: promover a felicidade da cria. É bem verdade que cada uma vai buscar os métodos específicos para assegurar-lhes esse bem. Umas empurram o filhote do ninho para ensinar-lhe a voar e lidar com as adversidades da vida. Outras o retém debaixo das asas, sob todos os cuidados, ignorando que a natureza gradualmente os transforma em semelhantes. Até que o caminho se inverte e o filho se torna o cuidador.

Mãe sempre sabe. Por ser aquela que mais acompanha o desenvolvimento da cria, a mãe ganha uma espécie de onisciência. Imbuída nesse grau divino, ela é aquela que mais entende sobre as problemáticas que a cria desenvolve ao longo da vida. Naturalmente, é aquela que mais se preocupa quando percebe que o filhote indefeso patina ao dar os primeiros passos. As mais sábias entendem que, como foi consigo, a prole precisará aprender com os primeiros tombos. As demais tentarão doutriná-los com regras e lições de vida – capacetes e joelheiras para que enfrentem a sociedade dura e competitiva. É a mãe quem descobre os primeiros segredos que a criança elabora e desenvolve: desmascara alguns, guarda outros como cúmplice, tenta esquecer aqueles que não consegue admitir.

A culpa é da mãe. Por ser o ente que mais acompanha a moldagem da personalidade do indivíduo, a mãe acabou recebendo a sina freudiana de ser responsável por limitações no desenvolvimento psíquico dos filhos. Seja pela ausência, seja pelo excesso, elas são julgadas e condenadas pela sociedade sob essa máxima. Não existe um manual infalível para mães – não por falta de tentativas de fazê-lo. É bem verdade que as relações maternas são decisivas na forma como cada um constrói relações subjetivas ao longo da vida. Mas o desenvolvimento também sofre interferências de outros inúmeros fatores. Desculpemos as mães, afinal…

… ser mãe é padecer no paraíso. A vida cobra da mulher a eficiência em todos os papeis que ela se dispõe a desempenhar. E, entre eles, está o de ser uma mãe exemplar, responsável por ensinar aos filhos essa tal eficiência de forma melhorada: os descendentes precisam superá-la em eficácia. Daí a mãe se enche de expectativas e, ao olhar para as crianças (serão sempre crianças), encontra seres humanos falhos. Menos inteligentes, menos independentes, menos bonitos, menos encaminhados… do que as cobranças do mundo. A mãe experimenta a culpa de ser mãe, se questiona onde errou, busca descobrir como fazer diferente para corrigir as imperfeições. Esquece-se, no entanto, que a perfeição não é para os humanos. O desenvolvimento, sim.

Você só descobrirá quando for mãe. O olhar tirano de quem julga se adocica instantaneamente ao ter a própria cria no colo. Só com a maternidade percebe-se que as milhares de regras e tratados são belíssimos e eficientíssimos nos livros. Mas que nem sempre são capazes de entrar em vigor no reino particular – onde a mãe é rainha soberana (pais, não se enganem). Porém, a contrapartida existe e a recompensa é maravilhosa. Só quem materna é capaz também de reter momentos importantes do desenvolvimento dos filhos, lembranças únicas em alegria, que só ela conseguirá compartilhar com a mesma carga afetiva: a euforia diante do primeiro desafio superado, o primeiro presentinho confeccionado com as próprias mãos, a descoberta do amor. Ser mãe vale a pena, garantem.

Mãe é sagrada. Disso eu não tenho a menor dúvida.

nivas gallo