Self

Psique: Ser incompetente não é um problema, o ruim é não admitir isso

Crédito: iStock/Metrópoles

Vários citrinos amarelos com diferentes tamnhos e lapidação

Eu não tenho nenhum talento para esportes. Não funcionou na infância, nem na adolescência. Não seria hoje. Entender isso me poupou muita coisa, especialmente tempo. Pude, com a energia não gasta com a insistência, explorar outras potencialidades. Não fui para os Jogos Olímpicos, mas estou aqui. Analista, tarólogo, escritor.

Mas eu poderia ainda sofrer por aquilo que, na minha fantasia, eu poderia ter desenvolvido. Poderia me imaginar muito mais feliz sendo o que não fui, e o que, provavelmente, nunca hei de ser. Poderia sentir-me um fracassado. Mas, pensando bem, até aqui, foram mais os sonhos desperdiçados que os aproveitados.

Todo esse pensamento desarticula por completo a filosofia Lua de Cristal (“Tudo pode ser, se quiser, será / O sonho sempre vem pra quem sonhar”), assim como todas as teorias de autoajuda barata, que massacram pela ideia de empoderamento irrestrito. Isso é um tormento para pessoas comuns, como eu e você.

Talentos desperdiçados
Nascemos com um repertório muito raro de dons. Ao longo da vida, descobrimos (e nos afinamos com) um ou dois – e olhe lá! É o bom e velho “nasceu pra isso”: a capacidade inata, que beira o divinal. Sai naturalmente, quase perfeito, sem muito esforço. E com reconhecimento imediato dos demais, como se estivéssemos a serviço de algo maior que a nossa necessidade.

Depois disso, temos aí uma carta de talentos possíveis. Aquelas potências, vindas de uma aptidão natural. Mas que aparecem como pedras preciosas em estado bruto: podem render bastante, mas carecem de trabalho para que possam revelar a natureza mais pura.

Abaixo disso, as qualidades ordinárias. Tudo aquilo que a vida exige, que precisamos aprender a desenvolver por necessidade – mas que também não nos marcarão enquanto indivíduos. É o feijão-com-arroz da existência.
O que sobra é nossa teimosia. Aquilo que não nos contentamos em admirar e valorizar no outro, simplesmente, mas insistimos que também somos capazes de fazer. Quase sempre, isso vai nos depredando a vida, somente pela birra de nos admitirmos incompetentes para tal feito. Por que nos gastamos tanto naquilo que não nos cabe, enquanto o que nos cai perfeitamente vai sendo esquecido?

Fora do lugar
Ou seja, grande parte do nosso mal-estar brota de uma leitura superficial de nós mesmos. Negligenciamos talentos, que mereciam ser lapidados. Não valoramos os dons, por não acreditarmos neles ou achá-los insignificantes. E damos uma importância tremenda para aquilo que nunca iremos ter. E, aos poucos, afastamo-nos do conceito de competência.

Ela parte de um princípio básico. Uma macieira não dará laranjas, por mais esforço que faça. Mas poderá produzir ótimas maças, as melhores do mercado. O difícil é não ceder ao chamamento da competência irrestrita. É o complexo do “tutti-frutti”: mimetizarmos o “sabor” alheio, e nos distanciamos do nosso – e sempre soará artificial.

A boa incompetência
Quem vive assim, pronto para tudo, pode até ser legal, mas nem sempre trará resultados. Ou, pior, poderá atrapalhar quem é competente. A incompetência só é problema para quem insiste em se encarregar daquilo que não tem habilidade para desenvolver e acaba interrompendo o fluxo natural das coisas.

Admitirmo-nos incompetentes salvaria o mundo de muitas atrocidades. Isso não é má vontade para melhorar, nem baixa autoestima. É justamente o contrário: preciso aprender a valorizar e fortalecer o que sou e tenho, e não o que está distante de mim.

É essa consciência, inclusive, que não permite que a frustração do que não sou drene a energia do que posso vir a ser, e da diferença que posso fazer no mundo. Até porque, nos epítetos das lápides, ficam gravados o que fomos, e não o que poderíamos ter sido.

 

Psique: Romances pautados em disputa ou anulação têm de tudo, menos amor

Crédito: Metrópoles/iStock

Hand sweeping heart from the floor with brush cleaner.

Uma verdadeira história de amor não tem preço, não há nada que a substitua. E o amor que eu falo aqui não é exatamente aquilo que pregam os românticos, excessivamente floreados. Refiro-me às relações de verdade, possíveis, recheadas de cumplicidade, afetuosidade, respeito. Tudo feito de maneira recíproca, harmônica, sem envolver medo ou competitividade.

Acho linda a imagem que Rubem Alves usou para descrever o bom funcionamento de uma relação: deve ser uma partida de frescobol, na qual um parceiro deve tentar compensar a falha do outro para manter a bola em jogo – e não uma disputa de tênis, cujo objetivo é fazer uma jogada indefensável. Na prática, entretanto, vemos muito mais Roland-Garros e Wimbledon que brincadeiras à beira do mar.

E o que é pior: muitos ainda confundem concessão com anulação. Em vez de compartilhar a vida, abrem espaço e servem de degrau para que o outro possa se realizar. Fazem do bem-estar do parceiro a fonte prioritária de gratificação – chegam até a esquecer aquilo que trazem como valores genuínos, verdadeiros prazeres, crenças e ambições.

Carentes por natureza
Quando é assim, amar sai caro demais. Tem o preço de uma vida. A frustração de chegar num determinado ponto do trajeto e perceber que somos um engano, que somos personagem na história de alguém, mas não sabemos qual é a nossa própria. É pior que a clandestinidade: é não ter o direito de existir além da relação. É concentrar todo o poder no outro e dele depender para não morrer à míngua.

Nem um, nem dois, nem três. São incontáveis os casos semelhantes que acompanho, já acompanhei – e, bem provável, hei de acompanhar. E não é exclusividade minha. Todos os meus colegas têm histórias semelhantes a relatar.
E por que isso acontece? Porque somos carentes por natureza. Porque não sabemos mais construir relações baseadas na reciprocidade. Porque idealizamos um amor perfeito, imaculado. Porque ficamos apavorados diante da solidão – sem percebermos que, quando estamos em relações dessa qualidade, já vivemos sozinhos. Não queremos perder o que já não temos, uma falácia.

Só mistificamos a dor da solidão quando não confiamos naquilo que somos, na capacidade de nos reinventarmos. Estamos tão acostumados a aplicar nossos recursos para sanar as necessidades do outro, mas nem sempre acreditamos que eles serão suficientes para manter nossa qualidade de vida. Outra falácia.

Silêncio perturbador
Na fantasia, o silêncio e a passividade são uma forma eficaz de evitar um mal-estar. Mas não é verdade. Não é a contestação quem pare o problema, ela só desperta aquele que já está adormecido.

Discutir é a melhor forma de resolver um desentendimento: se cada um apresenta seus argumentos, com o máximo de clareza e a menor passionalidade possível, o que está torto se endireita. Ou será reconhecido por ambos como algo sem solução. Assim, solucionado estará. Deverão chegar a um acordo sobre o que fazer com esse fato.

Não há relação mais importante que a nossa individualidade. Inclusive, se soubermos preservá-la, teremos um romance ainda mais saudável, consensual, maduro – e, principalmente, sem o ranking do quem pode mais. É a receita do frescobol de Rubem Alves. “Ninguém ganha para que os dois ganhem.”

 

Psique: Já caçamos pokémons há muito tempo. Eles nos distraem de nós mesmos

realidade aumentada

Foi um tanto impactante ver, no último domingo, um conglomerado de pessoas nas beiradas do parque Ana Lídia. Não imaginava que esse negócio de Pokémon fosse realmente capaz de produzir aquela cena. Milhares de pessoas, a maioria adulta, sem se enxergarem, tropeçando umas nas outras, vidradas numa tela de celular. Em troca de que? Nada.

Esse parágrafo de cima foi escrito pela demagogia. É claro que eu veria o que vi, cedo ou tarde. Até porque já é o que vemos. Essa história de “realidade aumentada” faz parte daquele “museu de grandes novidades”.

Sempre que podemos, damos nosso jeito para acrescentar no que vemos algo que nos distraia, que nos afaste do que nos angustia – em geral, de nós mesmos. O jogo é só um argumento tecnológico para alimentar esse mecanismo. Já somos craques nesse esporte de inventar, e acreditar no que inventamos.

Black mirror
O mundo pela tela do celular é um campo limitado, repleto de informações filtradas e agradáveis. Inserir neste campo um Pokémon é só o começo. Em breve, hão de criar a melhor companhia: superamigos, ainda mais perfeitos do que as imagens que nos povoam as redes sociais, ou amores perfeitos, que nunca nos digam não. Smartpais também podem ter uma boa procura no mercado.

Uma boa pedida para que compreendamos o significado desse novo paradigma que se instala na humanidade é bem representado pela série Black mirror (na foto acima), disponível no Netflix. Vale a pena, mas assista cedo: é daquelas que fazem perder o sono. Fala da espetacularização das relações nas mídias sociais, da conexão entre realidade e mundo virtual, e outros temas afins.

Ou seja, de tudo aquilo que é provocado pelo nosso espelho negro (a tela do celular), do momento em que acordamos até a hora que o sono nos trai. (Inclusive, pesquisas mostram que o tempo de sono tem encurtado graças aos smartphones.) As situações retratadas gritam indagações que não nos fazemos. Em suma: qual é o limite?

Aos poucos, ficaremos cada vez mais enclausurados no campo virtual. E, proporcionalmente, fervilham no inconsciente as perguntas elementares. Para que tudo isso? Qual o sentido da existência? Ao que parece, essa inquietação não quer cessar. Essa tentativa de empurrar para baixo as angústias existenciais vão transformando-as em adoecimento – manifestos no corpo e na alma. É o movimento compensatório da psique.

Imaginar é preciso
A realidade aumentada não deveria ser mais interessante que os desafios que nos são imputados pela vida. Na verdade, são priorizados por serem bem mais simples. Pertencemos a uma safra tecnicamente muito bem qualificada, em busca da excelência, mas pouco capacitada para os mistérios profundos.

Ficamos maravilhados com a possibilidade de nos depararmos com um monstrinho na sala de casa ou na rua. Até no meu consultório já capturaram um troço desses. Curiosamente, quem o fez tem grandes dificuldades para olhar para os próprios sonhos, as produções espontâneas do inconsciente. Talvez por medo de, por lá, encontrar criaturas que não cabem numa bolinha. E de não saber o que fazer com elas.

Mas não adianta fazer um discurso nostálgico ou apocalíptico. Há Pokémons soltos pela cidade, essa é a nova realidade. Logo virão outros seres, cenários, uma nova dimensão. E a psique se adaptará, como se adaptou até agora. Talvez essa seja nova forma que encontramos para lidar com a imaginação, antes de enlouquecermos por completo.

Psique: Toda prepotência encobre uma impotência. O mesmo vale para o contrário

Crédito: Metrópoles/iStock

prepotencia

Quando somos pequenos, achamos que a vida é difícil porque não temos nossos desejos realizados. E a culpa é da fada madrinha, ou do gênio da lâmpada, que se negam a aparecer. A adolescência chega e é a tirania dos pais que desperta a nossa frustração. Se não fossem eles, imaginamos, seríamos muito mais realizados.

Chegamos à vida adulta, e o problema novamente se transfere. Ao chefe que não nos reconhece e recompensa. À pessoa amada, que não se dedica o suficiente ou não corresponde o que esperamos. Os cabelos começam a embranquecer e é a vez do Estado e da sociedade pesarem na balança. Logo depois vem Deus e sua injustiça. O corpo falha, limita nossa capacidade. E morremos frustrados pela vida que “o outro” não nos permitiu viver.

Essa é a história de alguém que não busca se conhecer. Ou, pior: de um indivíduo que insiste em se enxergar passivo diante da própria existência. Um ser que, em vez de acolher a própria falha, acaba por transferi-la a algo que acredita ser externo, fora de si. Ou seja: alguém que não se percebe como parte integrante do mundo.

O que nos torna capazes

Esse pensamento foge do “querer é poder”, lema máximo da autoajuda. Nem sempre o querer é suficiente. Nem sempre o poder é permitido. Não somos tão autossuficientes assim. A realidade é muito complexa para que consigamos detê-la e conduzi-la. Mas não é por isso que devemos permanecer inertes, à espera da resolução automática das complicações que surgem no caminho.

O sofrimento nos chega quando experimentamos algum desses extremos. Se nos enxergamos prepotentes, acreditamos que estamos habilitados para decidir-agir-funcionar em qualquer situação, e que o resultado desejado depende apenas de esforço e dedicação. É mentira.

Da mesma forma, o impotente é aquele que se vê insuficiente para decidir-agir-funcionar diante de qualquer adversidade. Menospreza a própria presença, pois se vê pequeno demais, fraco demais. Nessa visão, o outro é alguém mais capaz. Quando este me serve, dele dependo. Quando me nega, dele me ressinto. Outra mentira.

O meu tamanho

Não precisamos ser demais nem de menos. Temos que encontrar a medida exata das nossas faculdades, e essa métrica não está escrita aqui – nem em lugar nenhum. Na verdade, aprendemos sobre nossos limites e possibilidades em cada passo da vida, quando tentamos escutar como cada momento repercute em nossa alma.

E, para balizar esse instrumento, não devemos ser óbvios (a tendência reducionista do ego) e apegarmo-nos apenas àquilo que faz bem, encoraja e energiza. Carecemos igualmente do incômodo, daquilo que deprime e nos coloca diante da incompletude. É esse repertório de excessos e faltas que nos define enquanto humanos.

Vivenciar a impotência ou a prepotência é algo inevitável. Fixar-se em alguma delas é que é o risco. Até porque surgem como faces da mesma moeda. O esforço para ser ultra compensa apenas algo em que nos sentimos infra, e vice-versa. E, enquanto isso, inúmeras outras possibilidades de realização vão sendo negligenciadas.

Psique: “Será que eu preciso de análise?”, questões que levam pessoas ao divã

Crédito: Metrópoles/iStock

Puzzle head brain concept. Human head profile made from brown paper with a jigsaw piece cut out. Choose your personality that suit you

1. “Lutei muito para chegar aqui, mas acho que não mereço desfrutar desse bom momento, uma vez que meus parentes não alcançaram o mesmo êxito.”
Moça, você precisa de análise. Como você disse, não foi sorte ou desonestidade que levaram você ao êxito – e sim o seu próprio esforço. Não vou questionar o fracasso da sua família (essa questão fica para eles), mas você não precisa se culpar pelo sucesso, e sim recompensar-se com ele.

2. “Quando vi, já tinha comido a geladeira toda, bebido o que tinha em casa. Mas não estou fazendo mal a ninguém e posso parar assim que quiser.”
Moço, você precisa de análise. Hábitos compulsivos e autodestrutivos falam de uma dificuldade para encontrar algum sentido para a vida. Não tente normalizar aquilo que já foge do seu controle.

3. “Não é possível que não reconheçam meu talento, enquanto promovem aquela pessoa estúpida.”
Moça, você precisa de análise. Quem precisa reconhecer o tamanho do seu talento é você mesma. De duas, uma: ou você não é tão eficaz como imagina, ou não está valorando seu potencial e se mantém atrelada a um lugar que não lhe respeita. Vamos refletir um pouco sobre uma decisão a tomar, em vez de apenas reclamar?

4. “Cada vez que fulano posta uma foto, fico mal. Queria trocar com vida com ele, nem que fosse por um dia. Por aqui tudo é meio sem graça”.
Talvez fulano dissimule melhor os problemas que enfrenta. Estabelecer redes sociais como parâmetro de bem estar é uma ilusão: os filtros farão sempre a vida do outro mais interessante. Será que você deve levar isso tão a sério? Qual a falta que gera seu sofrimento hoje? Moço, vamos agendar um horário?

5. “Vivo para meus filhos, com prazer. Não gosto nem de pensar no dia em que eles saírem de casa.”
Moça, você precisa de análise. Anular-se tem origens em uma baixa autoestima, e principalmente numa expectativa projetada sobre o outro. Uma hora, seus filhos deixarão de depender de você. Ignorar isso é abrir uma porta para o adoecimento – físico ou psíquico, muitas vezes usado para que eles se sensibilizem e devolvam os cuidados que você os empenhou. Melhor prevenir.

6. “Quero procurar um feiticeiro para que minha namorada não deseje outro homem.”
Moço, você precisa de análise. Nada contra o feiticeiro, mas achar que é normal querer anular a vontade de outra pessoa, a seu bel prazer, parece não ser uma boa. Não sei se é uma questão de autoestima baixa (afinal, vovó já dizia “quem não me quer não me merece”), ou de egoísmo exacerbado (quem é você para achar que merece controlar alguém?). Ou das duas coisas juntas.

7. “Tenho dedo podre, não arrumo ninguém que preste, não tenho sorte no amor”.
Será que você quer mesmo se relacionar, e lidar com todas as renúncias que isso gerará? Seu grau de tolerância para o outro está satisfatório? Você está disposto a mudar, a acessar os seus lados mais contraditórios? A desarmar-se da competição, a compartilhar, a confiar? Acho que você já sabe, né?

8. “Análise é uma besteira, pagar para alguém me ouvir e sequer dizer o que devo fazer? Já tenho amigos. Ninguém é capaz de determinar o que é melhor para minha vida.”
Concordo com esse final, moça. Mas, sim, você precisa de análise. Seu discurso soa um tanto rancoroso, parece que perdeu a crença no outro. A análise vai além de uma conversa: nela, exercitamos a escuta e a reflexão. Por exemplo, percebemos quantas oportunidades desperdiçamos, ou quanto insistimos em erros, além de entendermos sobre a força do inconsciente no nosso cotidiano.

9. “Sou analista e não preciso mais disso. Leio muito e, com isso, consigo entender plenamente dos meus problemas, controlar as situações.”
Jung nos diz que a teoria é fundamental, mas que ela não deve matar a sensibilidade. Pelos olhos do analista, entramos em contato com personagens internos, até então desconhecidos. Este outro olhar nos ajuda, inclusive, a escaparmos da inflação: a fantasia de que estamos acima do bem e do mal. Moço, talvez você seja dos que mais precisam.

nivas gallo