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Psique: Por um mundo de faz de conta

crédito: Metrópoles

faz de conta

 

Era uma vez um mundo perfeito. Por lá, as coisas funcionam bem. As pessoas pensam como eu, parecem adivinhar minhas vontades. Antes mesmo de eu dizer, sabem exatamente o que quero. E atendem à minha vontade. Os processos seguem um fluxo ininterrupto, sem chateações. A vida parece completa, sem espaço para dúvidas ou angústias.

Nesse mundo, impera a lei do menor esforço. O prazer e o poder se alternam na governança: ora tudo converge ao meu deleite, ora me conduz para frente e para cima. Tristeza é crime; dúvida é pecado. Afinal, não há por que questionar minha importância. Basta uma ligeira reclamação para sanar qualquer indício de desconforto.

Este é o mundo que todos, intimamente, ambicionam: o reino dos desejos, uma espécie de utopia de plenitude, que perseguimos como heróis. É a imagem de perfeição do Éden, que idealizamos com uma falsa nostalgia – de fato, nunca conhecemos uma dimensão da vida inabalada pelos problemas, pelas contrariedades, pela insuficiência do que somos.

Entender o mecanismo do desejo é um exercício fácil. Basta olhar para o pensamento mágico que conduz as crianças em suas ambições. Os pequenos têm uma facilidade enorme para querer aquilo que está longe de suas capacidades. E querem agora. A incapacidade de lidar com a espera faz com que assumam uma postura birrenta, ou de fracasso, diante das dificuldades que se atravessam entre elas e o que buscam.

Quantas vezes não adotamos postura igualmente desesperada diante dos empecilhos? Fugimos, negamos, desqualificamos – cada um encontra uma postura para lidar com aquilo que perturba esse mundo idealizado.

Outra coisa: crianças querem seus desejos realizados, não querem realizar seus desejos. Ou seja, depositam uma expectativa de saciedade no exterior. Mãe, pai, fada madrinha, gênio da lâmpada. Não falta quem se encarregue das minhas prioridades. Para os adultos, uma sutil adaptação: acrescente aí Deus, o Estado, o cônjuge, os filhos… Depositamos no outro a esperança do nosso sucesso. E nem nos damos conta do egoísmo que isso representa.

Tanta ânsia vem de uma crença ilusória: se for saciado, meu querer me conduzirá ao nirvana, à extinção do sofrimento ocasionado pela falta. Em vão. Desejar é como matar insetos no verão: damos fim a um e, tão logo, outro aparece para substituí-lo. É um ciclo natural, que só pode ser minimizado pela reflexão: afinal, o que verdadeiramente buscamos nessa idealização de felicidade?

Verdadeiramente, a plenitude só pode ser vislumbrada no ato da morte. Ali não há mais espaço para o desejo, não há comparação entre o melhor e o papel que ocupamos. Não é uma visão fatalista, é só uma forma de compreender que conviveremos sempre com a sensação de falta. À espreita, ela nos tenta a buscar uma série de atributos que, de fato, não nos aplacará a fome existencial.

Essa necessidade não será saciada com a idealização de um mundo perfeito, que nem mesmo meus sonhos conseguem projetar – preste atenção nos seus, há sempre um conflito latente que pode ensinar algo. Para se realizar, a existência exige de nós dois atributos: submissão, para compreender o melhor lugar a ocupar no mundo, e dedicação, imprescindível para atender a esse chamado.

 

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Psique: Se tiver algo a pedir a Deus, peça coragem

crédito: Metrópoles
eu te desejo coragem

Pode ser aniversário, casamento, Natal, trabalho novo. Em qualquer ocasião, tenho me percebido repetir um voto: coragem. Irrestritamente, a quem quer que seja. Dos mais amados, aos meros conhecidos, até mesmo para quem não carrego muita simpatia. E o faço por perceber que o mundo está carente desse atributo.

Coragem é diferente de valentia de brigão, de quem se justifica pelo fogo nas ventas. Esses aí estão muito mais comprometidos com a afronta do que com o resultado que deriva da batalha. Sofrem mais com a ideia de serem julgados incapazes diante do outro. Mas não sabem exatamente o que querem fazer com os recursos que têm. Perdem tempo tentando provar que são fortes. E isso também não é força.

A etimologia latina da palavra ensina que quando a ação (-aticum) brota do coração (cor-), essa será uma atitude corajosa (coraticum). Para os gregos, era no centro do peito que moravam nossas emoções. E dali partia o ímpeto que conduzira à ação – a tal da “força de vontade”.

Inveja é covardia
Uma boa vida depende de coragem para se realizar. O indivíduo covarde é aquele que foge do enfrentamento das limitações que lhe são impostas. É verdade que nem toda barreira pode ser transposta. Ser corajoso é compreender isso também. E que, para que algo se dê, um preço será cobrado. Ciente disso, cabe arriscar. Perder é sempre uma possibilidade, mas nem sempre uma certeza. A vida do corajoso se foca no acerto.

Quando falo em enfrentamento, não estou aqui seguindo o discurso do “matar um leão por dia” – é um pavor viver assim. Só temos um bicho a encarar: o que nos habita. Ele nos consome pelo comodismo, pela procrastinação, pela ambição descomunal diante do esforço que nos dispomos a empreender. O mundo cerceia a todos. O corajoso se diferencia por não usar esse argumento para justificar sua situação.

Uma boa régua para medir a covardia é a inveja – no caso, com medidas inversamente proporcionais. Quanto mais invejoso, menor a capacidade de se deixar envolver por aquilo que planeja. Quem consegue de fato torcer pelo sucesso do outro é o verdadeiro valente. Maior ainda é a valentia de quem vê o outro crescer sem se desesperar.

Desenvolva a virtude 
Coragem é a chave-mestra, melhor que qualquer reza ou simpatia. Abre os caminhos para o trabalho, leva à entrega a um novo amor, desperta a saúde no corpo adoecido, revela o lado obscuro da alma. Permite as reviravoltas que levam a vida pra frente. Se tiver algo a pedir a Deus, peça coragem. Com ela, o resto vem.

A covardia, por sua vez, é como uma maldição. Tudo fica mais difícil, o fluxo estanca. Destacam-se os inimigos que cobiçam o que é seu. Até a feiura se realça: nada pode ser feito para deter o destino cruel. A reclamação vira fiel companheira – uma parceria bem egoísta, daquelas que exige exclusividade. Sim, gente covarde acaba sempre só. No máximo, cercada por semelhantes.

Dizem que coragem é questão de sorte, ou de temperamento. Acredito que é como fazer um destro escrever com a mão esquerda: uns terão mais facilidade para aprender, outros não. Mas, a priori, todos são capazes de desenvolver. Aos que ainda não atentaram a essa necessidade, eu desejo coragem. Aprendi a querer para o outro o que quero para mim.

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Psique: O refúgio de Aylan

Hoje inicio uma nova parceria. Desta vez, com o portal Metrópoles, que nasce no Distrito Federal. Assino a coluna semanal Psique, com textos inéditos sobre as coisas do eu e do inconsciente.  

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A paramilitary police officer carries the lifeless body of a  migrant child after a number of migrants died and a smaller number  were reported missing after boats carrying them to the Greek island of Kos capsized, near the Turkish resort of Bodrum early Wednesday, Sept. 2, 2015. (AP Photo/DHA) TURKEY OUT

Crédito: Metrópoles

Difícil mesmo é encarar o dia depois de olhar para o corpinho de Aylan, banhado pelo Egeu, pela inocência e pela vulnerabilidade. Perturba por sabermos que ali não está retratada a tragédia de um menino. Tampouco a de um povo oprimido pela guerra. A imagem, que faz cortar o coração de qualquer um que o tenha, fala da sensação de desterro que atravessa a humanidade. Estamos todos em busca de um refúgio, num mundo que parece encolher a cada dia.

A competitividade é um valor típico que atravessa a humanidade. Gostamos muito de certezas, ao mesmo tempo em que temos uma dificuldade enorme para aceitar e respeitar certezas diferentes das nossas. E dessa intransigência derivam comportamentos nocivos, capazes de aniquilar etnias, culturas, ideais. O Estado Islâmico, que expulsou a família de Aylan da Síria, é um exemplo extremado do que falo. Mas a incapacidade de aceitar o outro está por toda parte – inclusive dentro de mim e de você.

Não há santidade ou psicologia que nos imunize do preconceito. Nossa psique funciona a partir de referências prévias: tudo o que vivemos busca uma correlação com eventos anteriores. E tendemos a reagir a partir dessa bagagem de experiências, não só nos atos mas principalmente nas emoções. É o que chamamos de complexos. Quando um determinado complexo é ativado, ele assumirá uma predisposição imediata. É o que a sabedoria popular traduziu como “gato escaldado tem medo de água fria”.

Quanto menor for nosso nível de consciência, mais estaremos à mercê dos equívocos inspirados pelos complexos. Ampliar a nossa capacidade de reflexão nos defende dessas armadilhas: com ela, exercitamos a compreensão – a capacidade de agregar, em si, novos valores que, a partir de então, passam a fazer parte do nosso sistema de crenças.

A deficiência desse exercício é o que deixa o mundo apertado. Assustados com a ameaça de escassez (de tempo e de outros recursos), desaprendemos a capacidade de empatia com o outro. Somos duros, frios, impessoais. Desmerecemos a verdade do outro em nome daquilo que cremos. Confundimos austeridade com superioridade, individualidade com egoísmo.

Daí precisa vir Aylan para nos lembrar da fragilidade experimentada quando os papeis se invertem. Assim como ele, todos já nos vimos exilados das possibilidades de crescimento. Metaforicamente, o outro também nos empurra para longe, sufoca, expõe ao frio e à fome. Sentimo-nos fora da nossa terra, à míngua, diante de um mundo que impõe o que é certo, e diz: “este não é o seu lugar”. Somos banidos a cada vez que presenciamos a injustiça, a impunidade.

Aylan sobre a areia, como quem dorme, acorda nossos complexos mais tenebrosos. Com ele, experimentamos o medo do abandono, da incerteza no amanhã. Definitivamente, não estamos protegidos ou livres de um fim semelhante. A cena da praia se repete e se repetirá, dia após dia: crianças das nossas vizinhanças também veem minguar a oportunidade de experimentar um mundo melhor – distante da fome, da educação deficitária, do tráfico, da sexualização precoce. E muitas vezes nos calamos diante dessa triste realidade. Queremos todos um novo lugar para viver – mas pouco fazemos para construí-lo. A paz que o menino sírio parece experimentar desorienta nossas ilusões.

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