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Psique: Dia das mulheres. Não é à toa que sabedoria é um substantivo feminino

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Enganam-se aqueles que pensam que o dia de hoje é de comemoração. Ou quem acha que é uma tolice, uma deferência boba para agradá-las. Quem acha que uma rosinha ordinária, oferecida da boca para fora, encobre o violento silêncio, a cantada barata, a diferença salarial, o menosprezo, a sobrecarga.

São inúmeros os perigos que cercam as mulheres. O principal deles é a desconfiança sobre quem são, sobre a capacidade que têm. Negar-lhe a condição de paridade, fazê-las acreditar que são inferiores. E que, como tal, devem se submeter às condições mais espúrias.

Na condição de homem, falo aqui de atrevido. Muito provavelmente por repetir, ainda que munido da melhor intenção, a ideia de que elas precisam ser defendidas, acolhidas, por serem frágeis. Percebo, ao escrever, o quão impregnado estou pelo espírito machista, por esse traço perverso do inconsciente coletivo.

Eu deveria simplesmente calar, deixar que falem por si. Mas não dá, não consigo. Especialmente eu, que delas tanto dependo. São meu sustentáculo afetivo e espiritual. Profissionalmente, tenho mais pacientes mulheres que homens, mais leitoras que leitores. E, de onde estou, vejo o quanto são abusadas, desde cedo, incessantemente. Por homens e por outras mulheres que aderiram ao esquema de opressão.

Recebo em meu consultório mulheres envergonhadas, em contradição. Duvidosas da capacidade de conquistar benefícios. Submissas, dominadas pelo medo do que seriam se perdessem seus companheiros. Cumprindo o enfado de constituírem o tal sexo frágil.

Também chegam armadas até os dentes. Masculinizadas, competitivas, impositivas. Predadoras de homens débeis. Com grandes bandeiras empunhadas, e intimamente sofridas pela falta de identificação com aquilo que defendem. Desejosas por “coisas de mulherzinha” – confessam constrangidas, referindo-se à saudade da feminilidade perdida.

Muitas vezes, apenas repetem as referências transmitidas por suas semelhantes. Calar, gritar, falar grosso – sem saber exatamente por que agem assim.

O exercício de ampliação da consciência quase sempre parte de uma premissa: identificar os temas que estamos representando na vida para diferenciar-se dele. Ou seja, tirar o indivíduo do lugar comum e levá-lo a compreender sobre as potências que a vida lhes reserva. Fazer emergir da alma nossa natureza mais particular e profunda.

E nesse movimento elas levam vantagem. Não só pela sensibilidade inegável que têm, mas principalmente por terem coragem para enfrentar a dor em nome de um bem maior. Elas estão predispostas naturalmente a fecundar, gestar, parir, cuidar. Sejam pessoas, projetos, relações.

Isso predispõe a mulher a acreditar, a apostar no futuro. Não sucumbem facilmente à dor e ao sofrimento. Repousam sobre eles, ouvi-los, retirar-lhes um significado. Coisa que nós, homens, só fazemos com muito custo. Somos ávidos por soluções imediatas, mulheres compreendem o tempo das coisas. E assim ensinam por que sabedoria é um substantivo feminino.

Psique: Se você é bom, não precisa provar isso para ninguém

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Quando nós, analistas, começamos a receber no nosso consultório uma leva de clientes com queixas semelhantes, uma luz de alerta se acende. É sinal de que devemos olhar para a forma como lidamos com a questão. Escrever pode me ajudar a compreender, e pode ajudar você também.

Inclusive, a palavra em questão é ajuda. Contemplar o outro, fazer o bem.

Servir bem para servir sempre – a máxima do comércio – também se aplica à vida. Só que nem sempre estamos atentos de que isso não deve se aplicar de forma irrestrita. Há certos senhores que não precisam ou merecem ser servidos. Eles, logo adiante, serão algozes.

Parecer bom é, muitas vezes, uma tentativa de despertar o interesse do outro. Erramos, pois, ao agirmos assim, conquistamos pelo que podemos fazer, e não quem somos. E, quando nosso comportamento não mais condiz com as expectativas alheias, experimenta-se o descarte.

Esse comportamento retroalimenta a ideia de menos valia. A mesma que deu origem a esta engrenagem toda. Afinal, parecer ser bom somente para sermos desejados aponta para uma descrença nos valores genuínos, aqueles que provêm e traduzem nossa alma. Deixo de ser quem sou para ser o que pode ser mais agradável aos demais.

O personagem que criamos para sermos aceitos não durará eternamente. E, quanto maior for o esforço para mantê-lo vivo e atuante, mais se acentua a crença de que somos uma farsa. Tem algo de errado se escutamos que somos ótimos, mas, no íntimo, não acreditamos nas nossas capacidades.

Talvez essa seja a tal questão do “amor próprio”, que tanto ouvimos por aí. Amar é um verbo impreciso, de difícil definição, graças à subjetividade que o envolve. Mas, em geral, podemos pensar no amor como algo acolhedor, compreensivo, integrativo. Em todas as culturas, Deus traduz o amor justamente por conter, em sua imagem, o símbolo da totalidade.

A falta de amor denuncia uma dissociação. Ou seja, a incapacidade que temos de correlacionar aspectos aparentemente distantes, mas que são pertinentes quando enxergamos o todo. Querer bem ao outro, apesar do outro.
Não posso dizer que amo quando gosto de um aspecto de alguém, mas não consigo aceitar/tolerar/respeitar características das quais divirjo. Posso até não concordar, mas não posso querer dissuadir ninguém de ser quem é. Quando nos unimos somente ao agradável, isso não é amor, é conveniência.

Da mesma forma, é em nome da conveniência que muitos mutilam sonhos, desejos, crenças e valores. Deixam, assim, de determinar a própria história, de realizar os propósitos mais profundos da existência. Quem vive assim sente-se à margem, na solidão, por não compreender que se esqueceu de ser bom para quem mais precisa: a si mesmo.

Psique: Às vezes é necessário dar um tempo das coisas. Experimentei isso agora

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traveler woman just arrived to destination with her suitcase

Às vezes é necessário dar um tempo das coisas. Experimentei isso agora, depois de passar 20 dias de férias, isolado de tudo. Um tempo do celular, das conversas vãs, dos estímulos vazios do mundo. Um tempo do que e de quem amamos. E também das chateações cotidianas.

Nesse período, pude reciclar o significado do silêncio – logo eu, sempre tão inundado por palavras, faladas e escritas. Percebi que as coisas mais bonitas, o que verdadeiramente vale a pena, resguarda-se no que não pode ser dito. Somos pobres em expressão, por isso queremos tanto falar.

Dar um tempo das atitudes também foi muito simbólico. Entender o ritmo das coisas, o quanto estamos despreparados para agir naturalmente. Trocamos o relógio da vida pelos critérios sociais. Origem, essência, interior: significados que o mundo trata de embaralhar sob o argumento do progresso.

Ir dormir quando o corpo pede. Ouvi-lo também para saber a hora de despertar. Entender que não fazer nada não é perda de tempo. Concentrar-se nas atividades disponíveis, por mais banais que possam parecer ser. Estar presente, aqui e agora.

Fazer do que parece simplório um ato grandioso. Alimentar-se com reverência ao que come, a quem prepara o alimento. Aceitar o que está no prato. Descobrir novos sabores, desacostumar-se de outros. Encontrar o gosto da água, o valor do sal.

Pensar menos. Esquecer-se de pensar, de avaliar, de interpretar. Difícil pra caramba, especialmente para quem vive disso, como eu. No começo, sentimos um estranhamento, como se todo o intelecto cultivado fosse se esvair. Depois, torcemos para que o excesso escoe.
E, quando tudo parece calar dentro de si, o olhar se transforma. Deixa de buscar respostas em tudo que vê e simplesmente entende que as coisas são o que são – e que esse é o correto. Perdemos o impulso besta de achar que devemos transformar o outro no que idealizamos. Rimos, até, das nossas idealizações.
Não precisei ir ao Nepal, ou fazer caminhadas intermináveis seguindo gurus, para viver tudo isso. No fundo, esse foi o grande ganho: perceber que essa conquista não passa de um estado de espírito, independente das circunstâncias.

Não voltei iluminado, não me considero uma pessoa melhor ou superior. Minha experiência serve somente a mim – e nunca isso fez tanto sentido. Mas parece que estou mais conciliado com o tempo das coisas – mais distante do passado, menos ansioso pelo futuro. Ao menos por enquanto.

Psique: Tudo que não encontramos na família projetamos na figura de Deus

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deus totalidade

Na semana passada, fiz um paralelo sobre as dinâmicas psíquicas e a imagem de Deus desenvolvida pela humanidade ao longo da história. No entanto, ficou de fora a questão funcional da divindade. Afinal, o que esperamos de Deus? E o que podemos esperar?

Ninguém teve os pais que desejou. Eles sempre poderiam ser mais alguma coisa, menos outra coisa. Da mesma forma, as circunstâncias de nossa vida também nos geram uma série de queixas. Assim como as relações que estabelecemos com o mundo.

Tudo isso é resultado da nossa natureza inconstante. Até quando alcançamos nossos desejos, a satisfação do ego se manifesta de forma fugaz, extingue-se em segundos. Logo, ele estará novamente à espera de algo melhor, idealizando felicidades.

Para isso, a imagem que projetamos de Deus se transforma num agente muito útil. Tanto para justificar nossos insucessos, como para que nos mantivemos num papel passivo diante de nosso desconforto. Queremos a salvação divina, sermos filhos prediletos a quem estão reservadas as melhores dádivas.

Assumimos, diante dessa imagem de totalidade, uma postura mesquinha, de eterna barganha ou lamentação. Isso quando não nos iramos pela injustiça com a qual a divindade nos trata – como se pudéssemos subestimar o arquétipo da inteligência e sabedoria. Somos crianças bobas.

E, assim como criamos deuses para atender esse propósito, também criamos e empoderamos seus opositores: personagens malignos, do insucesso e da destruição, que muitas vezes validam nossa própria maledicência. Transferimos a eles, deuses e demônios, o arbítrio de quem fomos, somos e seremos. Bem conveniente.

Cada vez que assim fazemos, perdemos a mais rica função da imagem divina: a da complementaridade. Tudo aquilo que não encontramos nos papeis e personagens que cruzaram nossa vida podem ser projetados, positivamente, na figura de Deus.
Ela pode ocupar o lugar da boa mãe, que cuida, acalenta e nutre. Também pode ser o bom pai, que limita, orienta e incentiva. Pode ser o juiz que defende e restitui aquilo que nos foi tomado, e até castiga quando nosso erro precisa ter fim. O médico que repara nossas feridas, do corpo e da alma. O filho que nos ensina a cuidar.

No Deus também cabe a segurança quando nos sentimos vulneráveis, desamparados, à mercê. A esperança para a oportunidade que não recebemos. A providência diante das nossas necessidades. A resignação para o que não conseguimos solucionar. A alegria que sustenta na adversidade.

Nesse somatório, Deus ocupa uma função curativa indispensável ao desenvolvimento psíquico. Não é à toa que a imagem divina transcende o tempo e o espaço, manifestando-se na humanidade desde os primórdios, sem ser superado. É a origem da ética, que norteia o bem viver e a boa relação com o outro.

Deus é o recurso natural que o homem encontrou para sanar nosso mal-estar existencial: a insuficiência humana, a consciência de sermos incompletos, falhos e limitados. Ele cumpre tal tarefa desde quando o criamos – ou o percebemos.

Psique: Deus participa efetiva e intimamente da vida psíquica da sociedade

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Open Bible on a wood table with light coming from above. ( church concept ).

Um dia desses, fui questionado por um leitor sobre citações sobre Deus que faço em meus textos. Alegaram que isso poderia diminuir a credibilidade dos escritos. Como se Deus não participasse efetiva e intimamente da vida psíquica.

Jung foi um profundo conhecedor das religiões, ocidentais e orientais, por compreender que nelas está a espinha dorsal das culturas e civilizações. Ao observá-las, percebeu um fator comum: a representação de um ser que centraliza e unifica todos os acontecimentos.

Da mesma forma, percebeu que existe um princípio de autorregulação da psique, que tende à unidade, à compensação e à harmonia – veja a semelhança: atributos semelhantes aos da divindade.

Jung chamou esse princípio de Self – ao mesmo tempo, o centro e a totalidade psíquica. É ele quem guarda o sentido maior da existência de cada ser e busca estratégias para realiza-lo.

Assim, é como se em cada um de nós habitasse um deus – ou uma centelha divina, como defendem praticamente todas as religiões. Ele vai para além das determinações do ego. Ou seja, daquilo que conseguimos perceber, identificar, nomear e interpretar nos nossos processos internos ou externos.

Assim como ocorre nos mitos divinos, essa relação entre ego e Self acaba sendo sempre conturbada. Nem sempre o eu é capaz de compreender e submeter-se àquilo que a psique pede. Teimamos e, assim como um deus que não é cultuado, o Self se impõe. Ele tem um propósito para a existência e não medirá esforços para alcançá-lo.

Sintomas, boicotes e perdas – coisas que frustram muito a eterna expectativa de sucesso do ego – aparecem como estratégias psíquicas para a realização desse propósito maior. São correções de curso, para conter a prepotência e tirania egoica. Quando investigamos, percebemos que eles nunca estão descontextualizados, desprovidos de um significado maior.

O Self não age de forma impiedosa. É justamente o contrário: assim como as punições divinas, também se dão por misericórdia – para que o ego do sujeito possa compreender as próprias limitações e estar disponível a algo maior. E, assim, transcenda à vaidade e revele um legado, a contribuição que cada um de nós tem com o mundo.
Da mesma forma, a consonância entre ego e Self pode se revelar da forma mais benevolente e aprazível. Alertas contra ciladas, acesso a conteúdos profundos e pacificadores, atração de pessoas e oportunidades que facilitam nossa vida. A vida flui. Em troca, o Self pede aquilo que qualquer deus exige de seus fieis: fidelidade e a reverência do pequeno diante do imenso.

É isso que Jung atesta na abertura de sua autobiografia, quando diz “minha vida é a história de um inconsciente que se realizou”. Foi também no fim da vida que, quando questionado se acreditava em Deus, ele respondeu “eu não preciso acreditar, eu sei.” Jung não foi quem gostaria, ele foi quem deveria ser. E esse é o nosso desafio a cada dia.

nivas gallo