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Psique: Religiosos e céticos concordam: Deus escreve certo por linhas tortas

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Walking direction on asphalt.

Deus escreve certo por linhas tortas. Somos chamados a acreditar nisso, seja por crença religiosa ou como metáfora: como forma de percebermos que nossa vontade pode apontar para equívocos, mas que a vida está atenta e disponível para corrigir as rotas antes que um mal maior aconteça.

É o que chamamos de livramento: o escape diante da nossa cegueira, o anteparo invisível que nos guarda na beira do abismo, a blindagem contra aquilo e aqueles que podem nos tanger dos propósitos de nossa alma.

Deveríamos agradecer devotamente quando isso ocorre, mas nem sempre é o que acontece. Quase sempre, queixamo-nos pelos planos que falharam, pelos contatos não efetivados. Achamos que o mundo está sendo cruel com o nosso desejo.

Essa reclamação parte do ego – uma espécie de gerente prepotente que se acha o dono da loja. Quando as coisas não saem como ele gostaria, faz birra como uma criança mimada: vitimiza-se, insiste no erro, ignora os sinais. E sofre pela própria ignorância.

Daí passa o tempo, senhor de tudo, e a vida mostra que aquela frustração foi um ponto de partida. Percebemo-nos pequenos e conduzidos por uma força maior para algo muito mais pertinente.

Muitos, ao viver isso, refazem os laços com o sagrado. Em suma, isso se dá quando percebemos um sentido maior para existência, quando nos vemos pertencentes e integrantes num sistema bem mais complexo que esse das eleições egoicas.

Por isso, o livramento não é para todos. O mundo nos pede autoria, liderança e controle, valores com os quais o ego tem plena identificação. Não existe assistência se não há espaço para a submissão (estar sob uma missão, mesclar-se a um propósito maior).

Quem, então, nos livraria dos males, se nossa arrogância nos leva a crer que seremos “vencedores” se lidarmos com tudo sozinhos? Ainda assim, sentimo-nos injustiçados quando a falha não sai de nosso caminho.
Feliz daquele que reconhece, em situações graves e nas trombadas corriqueiras, a proteção. Esses não são melhores nem piores, mas estarão mais acalentados fortalecidos diante das adversidades. E, dessa conexão com a alma, encontrarão mais significados para a existência.

Psique: Amigo de verdade suporta sua felicidade, seja ela qual for

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Tendemos a querer adaptar o outro àquilo que somos. Não necessariamente por querer-lhes o bem, mas para que a nossa vida fique mais fácil. A felicidade é um conceito subjetivo. Cada um concebe as próprias imagens de paraíso. Impor as nossas aos demais é um erro.

Fazemos escolhas que podem representar motivo de preocupação, ou desgosto, para quem nos ama. Principalmente por forçarem a assumir uma nova perspectiva. Isso incomoda porque, numa dessas, poderá despontar a percepção de estarem equivocados. E isso é frustrante.

Daí vem sempre aquele argumento da defesa, do prevenir o outro dos males que pode atrair para si. Falamos isso como se o erro não fosse edificante. Ou como se tivéssemos uma visão privilegiada da realidade, capaz de antever fracassos. E nós, também não fracassamos?

Suportar a felicidade do outro, seja ela qual for, é o sinal da verdadeira amizade, a prova do amor fraterno. Com quem se relaciona, o que consome, o que decide fazer, qual a hora certa de entrar ou sair de uma situação? Tudo isso é de responsabilidade de cada um. Cada escolha, boa ou ruim, só compete a quem poderá sustenta-la.

Vender ao outro as nossas verdades é uma atitude tirana. Basta inverter os papeis nesse balcão: como você reage quando a paixão chega (por algo ou por alguém), e vem aquele amigo aconselhar sobre os riscos desse empreendimento? Isso é suficiente para deter o sentimento?

Por mais que algo seja notoriamente negativo, tal situação foi a forma encontrada pelo outro para algum aprendizado. Não é que devemos ser negligentes: advertir é o papel de quem gosta e cuida. Mas é imprescindível que saibamos que é do outro a escolha – e que nossa visão está sempre contaminada por nossos preconceitos. A verdade tem muitas faces.

O bem estar do outro pode nos elevar, servir de estímulo para que busquemos melhorar a vida. Mas também realça o que há de errado conosco, nossas faltas ou excessos. Daí brotam emoções incomodativas, como a inveja e a competitividade. E, como reação, buscamos formas de desqualificar a felicidade alheia – um mecanismo muito comum. Somos terríveis.

Por isso, entenda o verdadeiro amigo como quem que divide o ombro para chorar, mas também sorri ao ver seu sorriso. E que se alegra com suas conquistas, até quando a própria vida não foi capaz de satisfazer-lhe os desejos. Esses merecem respeito e consideração, por saberem que amar é respeitar o outro como ele é.

Psique: Ser ignorante é o caminho mais rápido. Refletir exige tempo

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O que trouxe você até aqui? Quanto tempo você tem para mim? Quanto me suporta ouvir falar, qual o tamanho da sua disposição para chegar ao fim desse texto? Qual a sua disposição para investir tempo naquilo que lhe interessa? O que, de fato, interessa a você?

Poderiam ser perguntas retóricas, mas não são. Conciliar tempo e interesse é um desafio nesse mundo de uma enxurrada de informações inúteis, e cada vez mais breves, que nos dão a falsa impressão de que sabemos de tudo.

No fundo, estamos sendo treinados a assimilar frases soltas a imagens fortes. É certo de que a linguagem visual sempre foi a mais eficaz para gerar impressões. Mas nem sempre são suficientes para desenvolver um raciocínio mais elaborado.

É um método que parece perigoso. Afinal, é das sobras de palavras (uma mera “perda de tempo”) que surgem as grandes reflexões da humanidade. Ulisses, Zaratustra, Dante e outras personagens precisaram de centenas de páginas para reformar o olhar do mundo sobre si mesmo.

E quem tem tempo para centenas de páginas? Elas competem com centenas de inutilidades pontuais. Estas ocupam pouco espaço, mas nos enganam: guardamos o que não serve, com a ideia de que um dia pode ser útil. Aprisionam-nos, assim, no lado raso da vida.

Tudo isso faz parte de um novo paradigma, que não pode ser negado ou evitado, mas não foi assimilado da melhor maneira. Buscamos comer e exercitar o corpo para sermos saudáveis, visando longevidade. Para que, se desconhecemos o que é viver bem?

Relações sempre foram a atividade-fim do ser humano. Elas nos dão elementos para que saibamos, minimamente, quem somos. Observar como reagimos às coisas se chama reflexão – aquilo que nos diferencia dos outros animais. Economizar palavras reforça nossa ignorância.

Num discurso monossilábico, como o que a nova realidade propõe, o mecanismo relação-reflexão se compromete – regrediremos aos grunidos e dedos em riste dos nossos ancestrais mais distantes?  Ou encontraremos no percurso uma solução que preserve o desenvolvimento da consciência?

Ou a vida não teria mais tempo para ser profunda?

Psique: Buscar coerência nas atitudes é uma forma de facilitar a vida

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No último sábado, na Bienal do Livro de Brasília, passei umas duas horas numa fila, para assistir uma palestra do historiador Leandro Karnal. Como é sabido pela maioria, um dos temas preferidos dele é a ética. Do lugar onde estava, a fila era grande para frente e imensa para trás – e o espaço para a apresentação era limitado a pouco menos de 500 lugares.

Uma hora antes do início, a organização passou distribuindo senhas. Do nada, uma nuvem de gente veio lá de trás, com as senhas nas mãos, correndo, para tentar entrar antes daqueles que aguardavam na fila. Talvez realmente fosse mais pertinente deixa-los entrar. Afinal, lá dentro o assunto seria a ética. E era isso que eles precisavam aprender.

Dias antes, uma amiga me procura para “desabafar”. Traz consigo um dilema: conheceu um rapaz interessante, que se mostra também interessado, mas não sabe exatamente se deve engatar o relacionamento. Por que? “Talvez não seja a hora”, “não gosto da forma como ele se veste”, “não sei se a gente combina” – uma série de argumentos vagos, imprecisos, e bem diferentes das queixas anteriores, quando ela se dizia disponível para o amor.

Em comum, essas histórias trazem consigo a incoerência – uma velha conhecida, cada vez mais íntima na medida em que avanço no meu ofício como analista. As pessoas querem, mas não querem. Creem, mas duvidam. Pregam uma coisa, fazem outra. Desdenham e se ressentem quando perdem.

Tudo pra mim
Duvidar não é o problema nessa questão. Na verdade, é um ótimo indicador de saúde psíquica: mostra que a alma encontra brechas na visão unilateral da neurose, minimizando-a. A vida cheia de certezas é mais limitada e, consequentemente, mais propensa a adoecer.
A incoerência aparece quando os atos e escolhas são dissonantes àquilo que defendemos ser ou querer. Pode ser uma consequência de um olhar torpe, equivocado, sobre a própria realidade. Alguém impulsivo, por exemplo, tem mais chances de ser incoerente, se comparado com quem é ponderado.
Há também quem aja dessa forma por ganância. De longe, esse ser parece um grande devorador: alguém ávido para deter e engolir todas as possibilidades, muito angustiado com a possibilidade de perder algo. Acaba sendo o mais nocivo, por atingir o outro diretamente.

Esse comportamento visa compensar algum déficit inconsciente. O mais óbvio é a sombra da incapacidade. As fantasias podem inclinar o indivíduo a querer abraçar todas as chances possíveis, uma vez que não saberá novamente quando estará novamente diante delas. No entanto, não se dá conta de possíveis incompatibilidades que tais oportunidades trazem entre si, ou os choques que promovem com as escolhas prévias.

O resultado: agendas lotadas de compromissos sem sentido, relações igualmente vazias, uma angústia crescente gerada pela insaciedade.

Do que precisamos
A incoerência dá muito mais trabalho, é um desperdício de energia e também uma porta para desentendimentos. Despertará no outro o descrédito, e isso afastará oportunidades do sujeito incoerente – que também poderá ser interpretado como imaturo, oportunista, volúvel. Veja bem, o prejuízo é grande.

A fórmula da coerência parece ser afinar desejo, razão e emoção às circunstâncias. A avaliação criteriosa desses fatores, conciliados ao contexto no qual estamos inseridos, é o que permite ter referenciais mais lúcidos para nossas escolhas.

Acrescente na receita a imprevisibilidade e a paciência para aguardar o momento certo. Descarte as respostas prontas, o medo e a ansiedade. Duvidar é sempre um bom caminho. Como resultado, teremos não só uma vida mais coerente e dotada de propósitos, mas também alguém que se conhece mais, com mais aptidão a viver e contribuir com o mundo.

Psique: Uma triste notícia: somos todos carentes, em maior ou menor grau

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A expressão “vale enquanto serve” impõe uma lei de descarte nas relações humanas. É o que se chama de objetificação do outro – visa retirar dele as características de sujeito (peculiaridades, vontades, emoções, questionamentos etc.) em nome de interesses particulares.

A escravidão é o exemplo extremado desse processo. Nela, o indivíduo tem subtraída a sua humanidade. Sobre ele se impõe uma nova realidade, apontada como certa. É alguém que determina quem ele poderá ser, o que deverá fazer, no que poderá acreditar.

Foi o que vimos com os africanos escravizados que para cá foram trazidos. E que, até hoje, veem seus descendentes sofrendo restrições e imposições decorrentes desse estigma. O principal deles é a negação, o não-reconhecimento da covardia e da crueldade que envolveram esse processo. Nem dos danos que ainda repercutem, em decorrência disso, na população preta.

Essa é uma característica recorrente entre os ‘objetificam’ o outro: tentar impor sobre suas vítimas uma espécie de responsabilidade pelo dano sofrido. ‘Não deveria estar ali naquele momento’, ‘você devia ter sido mais sagaz’, ‘você deve ter feito por merecer’.
Falas atrozes como essas têm uma função primordial nessa dinâmica: retroalimentar a autodepreciação daquele que serve aos interesses originais. Aos poucos, ele acreditará que é um bom negócio estar ao lado de quem usurpa suas potências, pois, somente ali, ele é valorado e reconhecido. O manipulador eficiente saberá encontrar os pontos de maior vulnerabilidade para que essa verdade prevaleça.

Antes mal acompanhado…
A carência é a porta para essa armadilha. Uma triste notícia: somos todos carentes, em maior ou menor grau. Nossa insuficiência faz com que busquemos um ideal de completude (sem sucesso, convém ressaltar). Nunca estamos satisfeitos, e quase sempre não nos conformamos com isso.

Cada um encontrará seus vetores de compensação a tais faltas. Não é por acaso que gostamos tanto de médicos, gurus, prostitutas e advogados – em comum, personagens que nos denotam uma importância, e que, nem sempre, somos capazes de reconhecermos sozinhos.

Felizes dos que recorrem aos profissionais, porque a grande maioria busca fazer essa compensação com pares. E transformam em pares quem lhes der algum aceno positivo. E entregam muito em nome da manutenção dessas relações. São assombrados pela fantasia do desamparo: de não terem em quem encontrar apoio para suportar as dificuldades da vida.

O termo “desvalido” é preciso para descrever esse estado, pois fala daquilo que é desprotegido, mas também daquilo que não tem valor. O carente, um “sujeito objetificável” em potencial, é uma pessoa que não consegue reconhecer os valores que carrega em si. Por isso precisa tanto daquilo que o outro tem a oferecer. E não percebem o preço salgado que cobram para manterem essa relação.

O que chama-se de autoestima nada mais é que o reconhecimento e promoção desses valores e recursos internos. É a antítese da carência – não porque o ser que tem uma boa autoestima não sofre com as faltas, mas sim porque ele consegue enxergar-se para além delas.

Ajuda mútua
Não falo aqui apenas das relações extremas, patológicas. Mas também das imposições dissimuladas, das relações utilitárias do dia a dia – da que nós mesmos, ditas pessoas de bem, praticamos de forma corriqueira, e amenizamos em nossos discursos.

Sem uma ética vigilante, tendemos a usurpar do outro aquilo que tem a oferecer. Somos aproveitadores, pois gostamos do que é bom, farto e fácil. Da mesma forma, também oferecemos aos demais aquilo que nos sobra, quando nos é conveniente. Usamos uns os outros o tempo inteiro, e isso não é problema. É uma fantasia utópica a ideia de independência.

O que aqui chamo de ética é um olhar atento pode ser traduzido como uma medida justa às nossas necessidades. Elas, de fato, são poucas e fazem com que esse “uso cruzado” se configure como uma ajuda mútua – o combinado não sai caro. O bem servir, ou servir para o bem, é capaz de profundas e positivas transformações entre os agentes participantes.

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