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Cérebro e inconsciente: A chave para o inconsciente

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Fui consultor para a grande reportagem  A chave para o inconsciente,  uma edição especial da revista Cérebro e Inconsciente. Eu e especialistas em outras escolas da Psicologia falamos desse assunto fascinante: a força do desconhecido que nos rege, o lado de lá do psiquismo. Ficou bem legal.  Os textos são do Ricardo Piccinato. Os trechos com minha participação estão destacados. 

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Freud explica?

O que a psicanálise e a psicologia analítica de Jung têm a dizer sobre a inconsciência
Imagine um grande porão. Bem grande mesmo. Nele, há um interruptor que acende uma luz, mas ilumina apenas seu começo. O local está cheio de objetos; alguns deles estão iluminados, outros ficam na penumbra. Porém, uma grande parte está onde não há luz, e você nem imagina o quanto permanece no escuro. A grosso modo, esse grande porão representa sua mente. Seu conteúdo são os processos mentais vivenciados desde quando você estava em estação, na barriga de sua mãe, até hoje. Os objetos que consegue enxergar, ou seja, os processos mentais aos quais você tem acesso, formam seu consciente. O que não consegue acessar faz parte de seu inconsciente.

Essa concepção de inconsciente foi concebida pelo austríaco Sigmund Freud. Conhecido como pai da psicanálise, o neurologista que estudava a mente humana formulou que nosso aparelho psíquico é composto de três partes. “Seriam o consciente, o subconsciente que poderíamos acessar com esforço, e o inconsciente dinâmico ou freudiano, uma espécie de porão escuro da mente carregado de pulsões sexuais ou agressivas, inacessível ao consciente”, explica Marco Callegaro, psicólogo, mestre em neurociências e comportamento.

Freud meditou sobre o significado do consciente durante sua carreira inteira. Mais tarde, chegou a distribuir os níveis de consciência e/ ou inconsciência  entre as três entidades que formam a mente humana: o id, o ego e o superego (veja boxe com a comparação a um iceberg). “Para Freud, o ego consciente) é concebido através do id (inconsciente), por uma influência do mundo externo  e da necessidade de adaptação ao mesmo”, diz Roberta Baccarim de França, psicóloga especialista em sociabilidade.

Segundo Roberta, o ego é a principal instância psíquica que funciona como mediadora, integradora e harmonizadora entre as pulsões do id, as  exigências e ameaças do superego e as demandas da realidade exterior. Além disso, o conteúdo do inconsciente é, muitas vezes, reprimido pelo ego. Porém, esse conteúdo nem sempre fica aprisionado nesse grande porão que é o inconsciente: certas vezes, ele dá as caras no nosso dia a dia. Um desses momentos é por meio dos sonhos.

Divisão
Todas as experiências ficam armazenadas em nossa mente todo dia, quer conscientemente ou não. E não apenas as sensações pessoais são abrigadas na parte mais inacessível de nossa psiquê. É o que defendia Carl Gustav Jung. O psiquiatra suíço buscava analisar o homem em sua integralidade, ou seja, levando em conta a comunidade em que vive, sua cultura e todos os eventos ocorridos na humanidade. Por isso, propôs uma divisão do inconsciente
em pessoal e coletivo.

Inconsciente pessoal seria uma representação do histórico de sentimentos, ideias reprimidas e desenvolvidas ao longo da vida de alguém. É considerada uma camada mais superficial em comparação ao inconsciente coletivo, que representa o histórico da humanidade, de uma civilização, sendo herança de nossos ancestrais.

“Esses manifestos de aspectos culturais do processo da civilização humana ocorrem na forma de arquétipos, estruturas que moldam a maneira de um indivíduo expressar sua evolução individual”, esclarece Sérgio Lima, psiquiatra e mestre em psicologia social. Sérgio exemplifica com o arquétipo do “velho sábio”, quando as pessoas vão envelhecendo e tendem a acumular conhecimento e maturidade. Elas desenvolvem características físicas semelhantes mesmo em diferentes culturas, como deixar a barba crescer e desenvolver um olhar e um reconhecimento de pessoas entendidas de assuntos diversos. Conforme a psicóloga clínica Carolina Careta, outra manifestações do inconsciente coletivo é encontrar a alma gêmea, o companheiro fiel que nos satisfaça. “Seria um arquétipo de Adão e Eva; se completam”.

Ainda que o inconsciente abrigue grande parte de nossa psiquê, Jung considerava difícil medir a consciência. O suíço a comparava a uma ilha perdida na imensidão do oceano, que seria o inconsciente. Esse pedaço de terra que emerge sofre todo dia a atuação do mar: as chuvas, os ventos, a vazão das marés… “Da mesma forma, a consciência está o tempo todo sob influência de forças inconscientes: os complexos. Eles muitas vezes se irmanam ao complexo do ego (o princípio gestor da consciência) e o fazem acreditar ser o grande deliberador da psiquê. O ego julgará que decidiu por si só, mas, no fundo, uma gama de fatores alheios à consciência participou daquela decisão – como traumas e experiências anteriores, influências parentais, desejos reprimidos”, complementa João Rafael Torres, psicoterapeuta e analista junguiano.
Novo inconsciente
Em busca de uma concepção aceita atualmente por outras áreas do conhecimento, principalmente as neurociências, a expressão inconsciente cognitivo ou novo inconsciente tem sido mais empregada. “O termo novo inconsciente deixa claro que estamos falando da parte mais profunda da mente, mas sem usar as ideias de Freud, e sim o novo referencial das neurociências e das ciências cognitivas. Nesta nova visão, o modelo de psicoterapia que mais tem a ver é a terapia cognitivo-comportamental, e não a psicanálise”, esclarece o mestre em neurociências Marco Callegaro.

Investigando o que acontece em nosso cérebro e os processos inconscientes, as neurociências tentam entrar e iluminar com uma lanterna a vastidão do grande porão que é a mente humana.

Inconsciente e não consciente
“Inconsciente é uma conceituação usada pelos psicanalistas e os adeptos da psicologia profunda. Não consciente é uma nomeação dos adeptos da psicologia cognitiva para falar de aspectos que não estão na consciência. Ou seja, são nomeações diferentes para os mesmos fenômenos vistos de pontos de vista teóricos diferentes”, esclarece o psicólogo e mestre em ciências Sérgio Lima.

 

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O corpo fala

Por meio de sintomas em seu organismo, o inconsciente se manifesta

Aos quatro anos, a mãe de Sara engravidou. A menina se alegrou, pois logo iria ganhar um novo irmão ou uma irmãzinha para brincar com ela. Infelizmente, meses depois, a mãe sofreu um aborto. Tentando superar a perda e a frustração, explicou à filha que não seria dessa vez que ganharia uma companhia para suas brincadeiras. Apesar de outras tentativas, a mulher não conseguiu ter outro filho.

Anos se passaram, e Sara agora é adulta e está em um relacionamento estável. Há alguns dias, começou a sentir enjoos, dor nas mamas, aumento de peso, além de notar um atraso no ciclo menstrual. A explicação óbvia é que Sara está grávida. Contudo, não foi isso que disse os exames: ela estava saudável, mas nem um pouco grávida.

Você já deve ter ouvido falar que a gravidez psicológica pode acontecer em mulheres com um grande desejo de gerar uma criança. Mas também, ocorrer com quem tem grande receio de uma gestação. Inconscientemente, o cérebro faz o organismo emitir sinais indicando a vinda de uma nova criança. O corpo apresenta sintomas de estar carregando uma criança em seu ventre, e a “falsa grávida” acaba acreditando nisso.
De volta a Freud
O psicanalista austríaco acreditava que a interpretação de acontecimentos negativos durante a vivência das pessoas, como os traumas, seria a fonte de muitas das aflições humanas. No caso de Sara, Freud explicaria que a gestação sem sucesso da mãe ficou no inconsciente da então garotinha. Com receio de sofrer algo parecido, o desenvolvimento de uma gravidez psicológica seria manifestação dessa angústia, que ficou em algum lugar obscuro de sua mente.

Para Roberta Baccari de França, psicóloga especialista em sexualidade,“os sintomas físicos são, por si, manifestações do inconsciente. Por isso, podem estar vinculados a vivências traumáticas do desenvolvimento que, para proteger o ego, foram recalcadas” (saiba mais sobre recalque ao lado).
A psicóloga clínica Carolina Caeta lembra que a personalidade é formada até os sete anos de idade, um período muito determinante em nossas vidas. “Históricos de traição entre os pais, separação, doenças, etc. podem ocasionar momentos difíceis na fase adulta. Vivência de violência, abandono, rejeição e casos de abuso sexual contribuem muito para esse aspecto de insatisfação”, exemplifica.

Eventos como os acontecidos com Sara podem ser explicados pelas memórias emocionais. São lembranças de algo baseado principalmente em emoções intensas do passado, que ficam armazenadas na memória. De acordo com as neurociências cognitivas, existem memórias implícitas ou inconscientes; “Há certos processos de natureza inconsciente que não temos acesso direto; apenas sentimos os efeitos indiretos em corpo, como certas memórias emocionais, que funcionam como arquivos para os quais não temos capacidade de leitura pelo sistema consciente”, explica Marco Callegaro, psicólogo e mestre em neurociências e comportamento.
A gota d’água
Assim como a gravidez psicológica, roer as unhas, morder a pele dos dedos e dos lábios ou outros tiques também podem ser explicados pela psicologia. O psicoterapeuta junguiano e especialista em psicologia analítica João Rafael Torres diz que, geralmente, esses tiques correspondem a predisposições dos complexos inconscientes, ou seja, a uma resposta comportamental associada a uma temática específica, armazenada na psiquê do indivíduo. “Uma vez que essa temática se apresenta novamente diante dele (seja na realidade, seja em suas fantasias), o complexo tende a reagir com o mesmo comportamento no corpo, mas também no pensamento, nas emoções e nas crenças”, analisa.

A psicossomática, vertente da psicanálise se encarrega de explicar essa correlação entre o corpo e a psiquê. Acontecimentos negativos em nossas vidas, ao se acumularem, podem gerar consequências para o corpo e para a mente. Para a psicóloga Carolina Careta, decepções, tristezas, frustrações, raiva e inconformismo são como gotas de água caindo em um copo. Um dia, ele vai encher e, mais do que isso, transbordar. “Transferindo esse exemplo para nosso corpo, quando nosso interior se ‘enche’ desses conteúdos destrutivos, ele começa a gritar de forma somática: dores no corpo, úlceras e gastrites, dores de cabeça, manchas na pele e infecções. Isso pode se estender a doenças mais graves, por exemplo, o câncer e transtornos psicológicos como ansiedade e depressão”, alerta.

João Rafael complementa essa noção de psicossomática fazendo relações com nossos processos inconscientes: “O sintoma (e, posteriormente, a disfunção, a lesão e a morte de um órgão, sistema ou organismo) fala das emoções que não puderam ganhar compreensão na consciência e acabaram por migrar ao inconsciente”.

Para episódios difíceis que o inconsciente acaba manifestando, a psicoterapia é uma boa maneira de enfrentar, esclarecer e lidar com esses sentimentos negativos, segundo a psicóloga clínica Carolina Careta.

Agora, voltando aos acontecimentos da vida de Sara, lá no começo dessa matéria: se você ficou triste ou abalado, não se preocupe. O aborto da mãe e a gravidez psicológica são fatos fictícios, apenas para ajudar a compreender como inconsciente, mente e corpo estão interligados. Pode ficar com a consciência tranquila.

 

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Você não decide

O inconsciente se manifesta em quase todas as ações do seu dia a dia. E ele pode acabar enganando seu cérebro quando você menos esperar

Uma máquina potente, inteligente e capaz de fazer coisas incríveis, que você nem espera ou sequer imagina. Você gostaria de possuir uma máquina dessas? Pois todo mundo naturalmente tem uma: é seu cérebro. Esse órgão tão importante coordena suas funções vitais, como respirar e alimentar-se. Também possibilita o seu raciocínio e sua comunicação com as pessoas diariamente. Capta todas as informações ao seu redor por meio dos sentidos e transmite todos esses estímulos sensoriais a você, mesmo que não perceba ou se dê conta de tudo o que está captando. E tudo isso fica guardado em algum lugar do seu cérebro, pois, em algum momento, você irá precisar – inconscientemente.

“O inconsciente é como um arquivo de processos mentais vivenciados desde o período intrauterino, onde já existem sensações. Em termos gerais, é tudo aquilo que recebemos através dos sentidos, mas de que não estamos conscientes agora; o que eu sei mas não estou pensando no momento; o que lembro, recordo e faço involuntariamente sem prestar atenção”, explica a psicóloga clínica Carolina Careta.

É isso mesmo: a parte consciente do seu cérebro, neste momento, é capaz de absorver, captar e lhe informar o conteúdo desta leitura. Você lê as palavras por meio das letras, da cor do papel e da luminosidade do ambiente. Esses estímulos visuais chegam ao seu cérebro, que transforma os símbolos visuais em ideias e imagens. Então, você acredita estar lendo o texto de uma revista agora. Ao menos, isso é o que seu consciente está comunicando a você. Contudo, neste mesmo período, a quantidade de informações que seu inconsciente está captando é muito maior. O quanto maior? Cerca de 2.000 vezes maior do que seu consciente é capaz de armazenar, segundo estudos da área das neurociências. Assustador, não? “Os nossos sentidos inconscientes são os ‘encarregados’ de vasculhar, perceber e julgar com tamanha rapidez e sensibilidade”, explica a psicóloga.

Cérebro em piloto automático
Se você utiliza um automóvel em grande parte da semana, faz uso de processos que já são inconscientes. Não é necessário parar e pensar em como fazer para ligar o carro, pisar na embreagem antes de engatar a primeira marcha, soltá-la aos poucos e só então começar a pisar no acelerador para
fazer o carro se mover. Você não pensa em cada processo para fazer cada ação: é tudo fruto de informações guardadas em seu inconsciente. “No ato de dirigir um automóvel, se ficarmos prestando atenção em cada ação que fazemos, vamos cometer barbeiragens. A inconsciência da direção automobilística é fundamental para realizar o ato da direção de forma correta”, indica Sérgio Lima, psiquiatra e mestre em psicologia social.

O psicoterapeuta junguiano e especialista em psicologia analítica João Rafael Torres acredita que o ato de dirigir é um bom exemplo de automação de processos inconscientes que vai sendo introjetado com a prática. “Com o tempo, já não precisamos sequer pensar no trajeto feito até nossa casa. Quando percebemos, já estamos lá”.

Usar talheres para comer, pressionar o botão para atender o telefone celular e ligar o chuveiro para tomar banho são outras atividades  que fazemos no dia a dia que já estão nesse tipo de “piloto automático” que conduz nossa vida. Mas não apenas esse tipo de  atividade está associado a processos conduzidos pelo inconsciente. Ele participa  também em decisões e padrões de comportamento  que assumimos diante de determinadas situações. Ou seja, em certos momentos, você faz outras coisas surpreendentes sem pensar.

Uma pessoa que tem medo de rato, ao ver uma sombra pequena passando rapidamente pelo chão, automaticamente encontrará um lugar alto para tentar se proteger. Ela não vai calcular movimentos para subir em uma cadeira. Isso também vale para certas respostas que damos a algumas “provocações” da vida. Quem assumirá a decisão e conduzirá todo o processo será um complexo inconsciente, segundo João Rafael. “Ele vai imprimir um ritmo particular e característico, que atravessa o físico (alterações fisiológicas, mudança na entonação da voz, expressão do rosto, etc.), o mental (padrão de pensamentos), o emocional (quais as emoções evocadas pela situação) e o espiritual (a capacidade de reflexão sobre os acontecidos). Obviamente, tudo isso imprimirá uma nova dinâmica social – por exemplo: pessoas agradáveis mas que, diante da mãe, se tornam irritadiças e grosseiras; namorados que, quando sozinhos, assumem características infantis etc”, explica.

Truques do inconsciente

Você tem consciência de todas as suas lembranças? Tem certeza de tudo que o está aí guardado é real ou, de fato, aconteceu? Voltando à concepção de que o inconsciente também pode ser um banco que armazena nossas memórias, saiba que esse arquivo também pode ser influenciável. E a parte racional de seu cérebro nem se dá conta disso.

As memórias até parecem ser uma representação na consciência de algo vivenciado, mas esse conceito é questionável. “De fato, essa distinção entre consciência e inconsciente só é útil à consciência mas, na psiquê, a distinção não é tão clara assim”, lembra João Rafael. Quando nos deparamos com um acontecimento, o processamento daquela experiência não se dará puramente pela consciência, sem a participação do inconsciente. “Até porque a consciência não costuma estar preparada, disponível, para tudo aquilo com o que nos deparamos. Sempre uma parcela dos conteúdos transbordará e se acomodará no inconsciente”, explica o psicoterapeuta.

“A memória pode ser afetada por aspectos inconscientes, com fusões de aspectos do passado e deformações de coisas percebidas e vivenciadas no passado”, aposta o psiquiatra Sérgio Lima. Quer um exemplo real, ou melhor, não mais tão real assim? Você se lembra perfeitamente do seu primeiro beijo? No dia seguinte a essa experiência, você poderia recordar-se da cor da roupa que a pessoa vestia, como era o local onde estavam, qual a sensação ao tocar os lábios dela, entre outras lembranças. Vamos pular para a este exato momento: você é capaz de descrever exatamente tudo o que aconteceu, da mesma maneira em que se relembrou naquele dia? Provavelmente não. Se a experiência foi ruim para você no dia seguinte, provavelmente parecerá pior hoje. Se foi boa, é possível que diga agora que foi fantástica. Por quê?

Uma situação, quando rememorada, nunca virá à mente como de fato ocorreu. Antes, passará pela interpretação de diversos complexos que assimilaram o ocorrido. “A memória é uma espécie de reconstrução do fato, que sempre virá tingida pelas associações feitas com outros momentos, com as emoções evocadas, com as crenças, etc”; explica João Rafael. Segundo o psicanalista, esse seria um mecanismo de defesa da psiquê, não só para lidar com situações de conflito, mas também para lidar com o excesso de informação. Isso porque seria humanamente impossível registrar e manter ativos na consciência todos os acontecimentos da sua vida, sem que isso nos perturbasse excessivamente – comprometeria inclusive nossa capacidade de viver.

“Imagine só se mantivéssemos vivos todo o mal estar gerado no término de uma relação. Evitaríamos qualquer outra possibilidade de relação pelo medo de reviver esse dissabor. Da mesma forma, histórias crescem, ganham detalhes não ocorridos, tornam-se mais interessantes quando rememoradas. Já sentiu a frustração de visitar o lugar preferido na infância e percebê-lo como bem menor e muito mais comum do que o que se tem na memória?”, exemplifica.

Brincadeiras do sonho

Essa relação entre o inconsciente e a memória de manifesta em processos além dessas recordações que aconteceram no passado. Eles podem se combinar e agir em tudo o que vivenciamos, chegando a manipular nossos sonhos. “O inconsciente nada mais é do que nosso gigantesco bando de dados, que se torna praticamente infinito devido ao fato de que o processamento é combinatorial”, diz Sidarta Ribeiro, neurocientista que atualmente dirige o Instituto do Cérebro na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ou seja, tudo o que você vivencia e é captado tanto pela consciência ou pelo inconsciente pode ser usado e combinado pelo seu cérebro em algum momento, até mesmo durante seus sonhos. É como se fosse um brinquedo de encaixar peças diferentes para formar algo surpreendente.

Por exemplo, você já sonhou com alguém não conhecia? Ou que, conscientemente, nunca viu antes? Isso é possível por causa de seus processos inconscientes, que são combinados com sua memória. “Você pode sonhar com pessoas que nunca viu porque essas representações contêm aspectos de pessoas que efetivamente viu, como num retrato falado, mas muito mais fino na sua forma de combinar fragmentos de repraesentações sensoriais”, explica Sidarta. Ou seja, até em sonho, nosso inconsciente atua, brincando com seu cérebro. (Confira as relações entre sonho e as teorias de Sigmund Freud na página 7)

Sem preconceito. Tem certeza?

Você pode dizer que é livre de preconceitos – ou, ao menos, diz não ser preconceituoso de forma consciente. De fato, há pessoas que dizem ter uma atitude positiva frente a grupos minoritários, mas elas podem se espantar com resultados de testes simples, como o Teste de Associação Implícita. Marco Callegaro, psicólogo e mestre em neurociência e comportamento, relembra um interessante estudo conduzido na Universidade de Harvard em uma área de pesquisa chamada preconceito inconsciente.

O Teste de Associação Implícita é realizado para medir a força deste viés que nem sabemos que temos, mas que afeta nosso comportamento e julgamento dos outros. “Um exemplo seria o preconceito racial, que existe em nível consciente e inconsciente. Um sujeito branco, que afirma não ter preconceito com negros, ao fazer o teste, mostra um forte viés negativo. Mais curioso: grande proporção de negros mostrou ter preconceito inconsciente com negros, mesmo sem saber disto”, relembra Marco.

Para o mestre em neurociências em comportamento, as pessoas geralmente ficam chocadas e contrariadas ao serem confrontadas com a noção de que não sabem o que estão fazendo, agindo de forma diferente das que pensam que estão fazendo. “Nossa mente foi construída para narrar uma história coerente sobre nosso comportamento, e nos colocando sempre como agentes de tudo o que fazemos. Mas, na verdade, agimos por razões inconscientes e criamos uma ficção, uma narrativa, racionalizando e tornando aceitável o nosso comportamento”.

Marco acredita que a questão de sentimos que sabemos por que agimos, e que fizemos escolhas conscientes e racionais sobre nossa forma de agir, seria apenas uma ilusão da consciência. “Pensar sobre isto é algo realmente perturbador, pois temos uma necessidade de estar no controle de nós mesmos. No entanto, pouco sabemos sobre por que agimos”, finaliza.

Nosso inconsciente é assim: surpreendente. Seu poder pode se manifestar nas ações e atividades mais comuns de nosso dia a dia, como nas tomadas de decisões, em nossos sonhos e até na maneira em que exibimos nossos preconceitos. Nas próximas páginas, você irá mergulhar cada vez mais neste misterioso e fascinante mundo do inconsciente.

 

Disney Babble: Eu sonho, tu sonhas, ele sonha…

O canal Disney Babble elaborou uma reportagem sobre sonhos, usando minha consultoria. Ficou assim:

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Eu sonho, tu sonhas, ele sonha…

Depois de uma noite de sono, temos sempre histórias para contar. Mesmo que nem todo mundo se lembre disso

(Foto: Getty Images)
Eu sonho, tu sonhas, ele sonha...

Os sonhos sempre foram motivo de mistério e fascínio para todos. Por esse motivo, também se transformaram em objeto de investigação científica. O que se sabe é que eles são como um dispositivo para processamento de informações e emoções vivenciadas pelo indivíduo.

No entanto, o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung encontrou nos sonhos de seus pacientes uma maior abrangência de funcionalidade, como explica João Rafael Torres, psicoterapeuta e analista junguiano.

Jung concluiu que os sonhos apresentam, com fidelidade, os dinamismos psíquicos que regem o sujeito, usando para isso a linguagem simbólica. Ou seja, todo o conteúdo que se apresenta enquanto dormimos diz respeito ao funcionamento e às questões do inconsciente.

Dessa forma, transforma-se em um interessante instrumento no processo de análise, por revelar aquilo que vai além dos domínios da consciência.

Ele também ensinou que os sonhos:

– trazem sempre uma função compensatória (vão dar expressão àquilo que não podemos viver em vigília, mas também são elucidatórios);

– explicam o que está acontecendo na psique;

– são educativos (ensinam sobre as melhores atitudes a tomar

– e premonitórios: dão prognósticos do que tende a acontecer, apontando para o futuro.

 

Todos somos sonhadores?

Já é provado que todos sonham, mesmo aqueles que nunca se lembram disso. Experimentos mostram que, se privadas do sonho, as pessoas tendem a assumir uma hipersensibilidade, podendo até mesmo desencadear surtos psicóticos.

O especialista João Rafael ainda comenta que estudos anteriores associavam os sonhos apenas à fase REM (Rapid Eye Moviment) do sono, um período marcado pela intensa movimentação dos olhos, que ocorre, em geral, de 4 a 6 vezes por noite.

No entanto, hoje se sabe que há também sonhos fora desta fase. Ou seja, sonhamos muito mais do que conseguimos contabilizar pelas manhãs.

Por que não lembramos?

É fato que não recordamos de tudo devido ao ego, núcleo de administração da consciência, que é o responsável pela triagem dos conteúdos inconscientes que emergem à nossa lembrança.

Nem sempre o conteúdo mobilizado no inconsciente e apresentado no sonho é considerado adequado pelo ego, que tende a rechaçar temáticas e imagens com as quais não está disposto a lidar.

Quando algum desses “proibidos pelo ego” escapa, temos a lembrança dos pesadelos, sempre inspiradores de medo, apreensão e outras emoções não desejáveis.

Em geral, quando damos mais atenção aos nossos sonhos (anotando-os no dia seguinte, por exemplo), a lembrança das imagens costuma ficar mais nítida e constante.

Adriana Rezende nunca ligou para o que sua mãe Candida lhe contava em várias manhãs. “Ela sempre repetia que eu teria dois meninos, um com o cabelo lisinho e outro bem enroladinho. Esse sonho se repetia sempre, desde que eu era adolescente”, diz.

Candida sonhava com Adriana no casamento do irmão, correndo atrás dos dois garotos. “Nunca levei a sério, até porque não tenho tendência de gêmeos na família. Mas o que eu não esperava é que meu marido tinha e não sabia. Ou seja, não é que o sonho da minha mãe estava certo?!”

Hoje Adriana é mãe de dois meninos: Gabriel e João, de 2 anos. “Agora só falta a parte do meu irmão casar e os meninos se divertirem no casamento, como minha mãe sempre sonhou”, observa.

Preste atenção

Lidar com o sonho é uma questão de hábito: no início de processo de análise deles, a amplificação do significado das imagens fica muito a cargo de associações feitas por um analista, mas, na medida em que o tempo passa, o próprio indivíduo, analisando-os, consegue decodificar os símbolos ali apresentados.

Algumas pessoas costumam lembrar mais dos sonhos porque dão importância a eles. Outras, no entanto, não dão tanta atenção e, em alguns períodos da vida, mantêm lembranças oníricas vívidas, noite após noite.

Muito provavelmente, se investigadas, poderemos perceber que eles conciliam com períodos mais conturbados da vida, ou de maior excitação psíquica – no início de um novo projeto, numa crise relacional, após a perda de alguém querido etc.

Ou seja, o sonho aparece aí como um reforço para o processamento de grandes vivências na psique, uma vez que a vigília não permite (ou que haja algum processo de resistência do indivíduo) que impeça a assimilação de tais experiências.

De novo e de novo…

Também há pessoas que percebem que alguns sonhos se repetem. Isso acontece porque essas situações repetitivas costumam apontar para temáticas de mais importância que, por algum motivo, não ganharam a assimilação necessária pela consciência.

Funciona como uma criança que assiste diversas vezes ao mesmo filme: ela pode até já ter decorado as falas dos personagens, mas não extraiu ainda a compreensão necessária da determinada história.

Existe um significado?

“As pessoas tendem a atribuir erroneamente significados fixos aos símbolos apresentados nos sonhos”, afirma João Rafael Torres. Mas, na realidade, o processo de amplificação não se dá de forma tão simplória.

De acordo com ele, é importante buscar o significado pessoal associado às imagens que se apresentam. Por exemplo: sonhar com uma cobra pode remeter a perigos e traição para muitas pessoas, mas para um veterinário pode ter outro significado, pela relação que ele tem com o animal.

Recorrer a dicionários especializados, por exemplo, não é uma boa saída para quem quer usar os sonhos para aumentar o diálogo com o inconsciente.

O mais interessante é começar a amplificação tentando interpretar, metaforicamente, os símbolos apresentados, a partir das associações pessoais e, só então, partir para as interpretações coletivas. Nisso, o uso de dicionários de símbolos sérios pode ser útil.

Ou seja, se quer entender o que se passou durante a noite, observe os sonhos com critério individual, a partir das associações feitas com seu dia a dia.

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Clique aqui para ler a reportagem no site da Disney Babble. 

 

 

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