Self

Outras Ondas* – A grande mãe das águas


Na noite da sexta-feira, praias de todo o país ganharão o branco predominante. Entregues ao mar, milhares de flores e presentes. Tudo para saudar Iemanjá, a grande mãe negra do panteão africano, certamente o orixá mais popular do país. Muitos que fazem questão de reverenciá-la na passagem do ano sequer participam de alguma religião de matriz africana, como o candomblé e a umbanda. Mesmo assim, encontram na rainha das águas a acolhida necessária e a confiança para pedidos de um ano próspero.

Iemanjá é uma corruptela aportuguesada de Yemonja. No dialeto ioruba, seu nome significa a mamãe (yeye) cujos filhos (omon) são peixes (ieja). Na África, ela é cultuada no rio Ogum, que nasce na região de Abeokutá. Daí vem a sua principal saudação: odoiyá (odo: rio; iyá: mãe). Mas, no Brasil, assumiu a função de senhora dos mares – posto herdado do pai Olokun.

A ela é atribuída a maternidade de muitos orixás, entre eles Exu, Ogum, Oxóssi e Xangô – o que dizem ser o seu predileto. Essa tendência maternal a levou a adotar Obaluaiyê, quando o mesmo foi abandonado pela mãe Nanã. Iemanjá também tem o título de Iyá Ori, literalmente mãe das cabeças, que confere a ela a função de zelar pelo equilíbrio psicológico dos indivíduos. Graças a esse título, ela é indispensável no ato da iniciação, durante a cerimônia do bori (o culto à cabeça). O ventre materno está ligado a Oxum, mas Iemanjá é responsável pela educação da criança, pelo desenvolvimento da personalidade.

No Brasil, a imagem mais usada para representar o orixá é a de uma mulher bonita, de pele alva e longos cabelos negros, emergindo do mar com vestes azuis e com pérolas escorrendo das mãos. Essa imagem é fruto do sincretismo com a Virgem Maria do culto católico – numa atmosfera virginal bastante dissociada do mito original africano. Por lá, temos Iemanjá representada por uma mulher de medidas fartas, com grandes seios representando a capacidade de amamentar (provimento). A ela são oferecidos presentes que evocam a vaidade, o luxo e a sexualidade, como joias, perfumes e até mesmo roupas íntimas – algo bastante improvável para o culto mariano.

Além da passagem do ano, a Bahia escolheu o dia 2 de fevereiro para render homenagens à Iemanjá. A festa do Rio Vermelho para a cidade de Salvador. Na praia, a maresia dá lugar ao cheiro adocicado dos perfumes de alfazemas. Centenas de balaios recolhem os presentes e ex-votos que, ao fim da tarde, são levados para alto mar pelos pescadores da região.

No inconsciente do brasileiro, Iemanjá assimilou características próprias do mar. É vista como um orixá de comportamento constante, mas que pode surpreender com “grandes ondas” emocionais, capazes de provocar estragos e promover transformações. Aqueles que nascem sob a regência dessa divindade têm a transparência das águas: de tão sinceros, podem ser interpretados como rudes. Assumem os problemas dos outros como se fossem seus. Mas sofrem quando os protegidos escapam de debaixo de suas asas. São capazes de perdoar uma falha, mas não vão esquecê-la com facilidade – e fazem questão de evidenciar que ainda lembram do ocorrido, com riqueza de detalhes. Mentir para Iemanjá é uma tentativa vã: ela entende além do que é dito, lê com naturalidade o que está nas entrelinhas. Seus filhos não são muito dados à modéstia. Numa compra, os olhos são magicamente atraídos pelos produtos mais bonitos e, coincidentemente, mais caros.

No candomblé, os orixás podem se dividir em subgrupos, chamados qualidades. E cada qualidade vai imprimir características peculiares às já pertencentes ao orixá. Entre as Iemanjás, podemos citar Sabá (mais velha, tradicional, calma, possessiva), Sessu (paciente, metódica, desconfiada), e Ogunté (ativa, guerreira, faladeira).

Ao adotar Iemanjá (ou se deixar adotar por ela), as brasileiras resgatam uma importante imagem do feminino: aquela que pode ser mãe sem se esquecer de ser mulher. Divinizá-la é uma forma diferente de aproximação com o sagrado. Iemanjá mantém qualidades e defeitos, sofre e goza, é maternal e sensual. Para os homens, ela também se revela de forma dúbia. Age como mãe e provedora dos pescadores, oferecendo-lhes o sustento e o conforto que vêm de suas águas. Mas também é a sereia bonita e perigosa, capaz de encantar os noivos que elege para satisfazê-la no fundo do mar.

Grande parte da popularidade de Iemanjá se dá às canções praieiras criadas por Dorival Caymmi. Nelas, podemos encontrar Dona Janaína se mostrando como símbolo do encanto, da majestade e da feminilidade. Aprendamos com Caymmi, aprendamos com Iemanjá.

nivas gallo